Sofia, filosofia e fenomenologia

Ricardo Hamilton, Crescimento e forma, 2014
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Por ARI MARCELO SOLON*

Considerações sobre o livro de Alexandre Kojève

1.

Este manuscrito, escrito entre novembro de 1940 e 1941, foi finalmente traduzido de uma maneira surpreendentemente clara e bela por Rambert Nicolas. Trata-se, aliás, do primeiro volume, sendo que o segundo volume será publicado em um ano.

Como tudo na vida de Alexandre Kojève, há mistérios que o circundam. Na visão do tradutor, trata-se de manuscrito depositado com o amigo Georges Bataille, na Biblioteca Nacional Francesa, e apenas recentemente reencontrado. Na visão ainda mais misteriosa anglo-saxã, trata-se de carta escrita por Alexandre Kojève a Joseph Stalin, depositada na embaixada soviética de Paris, com seu amigo Léon Poliakov, futuro historiador do antissemitismo, mas destruída no incêndio da embaixada pelos nazistas.

Em que pese o suspense, esta é uma tradução tão clara que permite retomar as teses principais da filosofia de Alexandre Kojève a seguir elencadas.

O único erro de Alexandre Kojève (2025) ao longo do manuscrito que ora é publicado foi apontar o desastre, o tempo todo, do trotskismo.

Pensamos, pelo contrário, que a revolução traída é válida.

Ao contrário do livro redigido pelo humorista Queneau, neste manuscrito Alexandre Kojève aponta como erro de Hegel o reconhecimento se deu com o fato de que o fim da história ocorreu com Napoleão. Na verdade, a fenomenologia de Hegel não se completou. Foi Marx que a completou e a reconheceu pela primeira vez.

2.

O reconhecimento social da fenomenologia de Alexandre Kojève se dá no país dos soviets. Aparece em 1917, na Rússia, mas a lacuna cronológica, entre 1906 e 1917, não é uma lacuna fenomenológica, pois Hegel captou o novo deste período, o liberalismo democrático.

A atividade histórica de Napoleão não é o fim da história, mas Hegel mostrava corretamente o fim a que essa efetividade perseguia.

Corretamente, Alexandre Kojève afirma que a revolução socialista de 1917 realiza o reconhecimento social de que falava Hegel. Desse modo, do ponto de vista hegeliano-marxista, a história da humanidade terminou. Ela esgotou todas as suas possibilidades históricas.

A descoberta de Hegel consiste em preservar a concepção judaico-cristã-dialética do homem, suprimindo o conceito teológico. Em outro sentido, o hegelianismo não é outra coisa que não o judeu-cristianismo ateu.

O homem torna-se o livre criador dele mesmo e de seu mundo, ou seja, como algo mágico o homem pode mudar de aparência ao seu gosto.

Quanto a isso, o homem hegeliano não depende da natureza. Nesse sentido, é diferente do homem grego, ao mesmo tempo em que não depende da divindade, logo não é mais o homem judeu-cristão. Este é o pensamento que Hegel passou a Marx.

A fenomenologia de Hegel não difere da fenomenologia de Edmund Husserl, apenas Husserl não estava familiarizado com Hegel e com Marx. O método fenomenológico que Edmund Husserl descobriu, método puramente descritivo, não se distingue em nada em relação ao que Hegel aplicava em sua filosofia, especificamente acerca de sua fenomenologia.

Os trabalhos de Edmund Husserl (2012a; 2012b; 2019) e de seu discípulo mais importante, Martin Heidegger (2015), são, de um ponto de vista estritamente filosófico, o que o pensamento burguês produziu de mais importante desde Hegel.

A fenomenologia de Hegel é mais próxima a Platão do que a Kant. Platão estudava não o conhecimento e opiniões abstratas, mas os homens de carne e osso. A física indeterminista contemporânea é compatível com a fenomenologia de Hegel, ao contrário da física clássica galileana.

Por outro lado, a filosofia da natureza de Hegel pode ser descartada, pois tentou introduzir a dialética no mundo não humano. Assim, a física de Werner Heisenberg não é filosofia, pois inclui o sujeito como um homem abstrato. Diferentemente do modo concreto como Hegel o faz.

Já a fenomenologia de Hegel é materialista, não no sentido vulgar, pois está do lado do real, tendo ainda uma existência ideal. Por exemplo, o Estado. Nisso foi seguido por Karl Marx (2023) e Vladímir Lênin (1977).

É o que afirma Hegel no prefácio da obra A fenomenologia do espírito: trabalhar para que a filosofia se aproxime do fim consistente em colocar o seu nome, amor ao saber, como um saber efetivo.

*Ari Marcelo Solon é professor na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prisma). [https://amzn.to/3Plq3jT]

Referência


Alexandre Kojève. Sophia: Philosophie et phénoménologie. Tradução: Rambert Nicolas. Paris, Gallimard, 2025. v. 1, 544 págs.

Bibliografia


HEGEL, G. F. W. A Fenomenologia do Espírito. Petrópolis, Vozes, 2014.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes, 2015.

HUSSERL, E. Ideias Para uma Fenomenologia Pura e Para uma Filosofia Fenomenológica. São Paulo: Ideias e Letras, 2012.

HUSSERL, E. Investigações Lógicas – Fenomenologia e Teoria do Conhecimento: Investigações Para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

HUSSERL, E. Meditações Cartesianas: Uma Introdução à Fenomenologia. São Paulo: Edipro, 2019.

LÉNINE, V. I. O Estado e a Revolução. In: LÉNINE, V. I. Obras Escolhidas. 5. ed. São Paulo: Editorial Avante, 1977. Tomo II. p. 219-305.


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