O Brasil diante do genocídio palestino

Imagem: Youssef Elbelghiti
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Por GILBERTO MARINGONI*

O Brasil repete na política externa a conduta ambígua, recuada e pusilânime diante de situações complexas

Em dez meses, o governo Lula mudou a face do Brasil. Saímos de um governo fascistizado e obscurantista, responsável por centenas de milhares de mortos na pandemia e por nos tornarmos párias no sistema internacional, e voltamos a tempos menos infames. No entanto, a administração federal mostra seus limites ao não entrar em nenhuma bola dividida na seara política e econômica e ao ceder a todas as pressões da direita e da extrema direita.

Não se explicam comportamentos hesitantes e defensivos apenas pela ampla frente política que sustenta o governo. Há diretrizes emanadas do próprio gabinete presidencial que agora evidenciam sérias inconsistências naquilo que já foi a mais alardeada joia dos governos petistas, a política externa. Comecemos falando de alguns contrastes.

No início da quarta semana de ataques de Israel à população palestina da faixa de Gaza, três países sulamericanos resolveram tomar medidas corajosas contra a brutalidade sionista.

A atitude mais ousada coube ao governo boliviano, liderado por Luís Arce. “A Bolívia decidiu romper relações diplomáticas com o Estado de Israel em repúdio e condenação à agressiva e desproporcional ofensiva militar israelense, que está sendo levada a cabo na Faixa de Gaza”, disse o vice-ministro das Relações Exteriores, Freddy Mamani, na terça (31).

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, por sua vez, chamou seu embaixador em Tel-Aviv de volta a Bogotá, sob o seguinte argumento: “Se Israel não parar o massacre do povo palestino, não poderemos estar lá”. O gesto de chamar o embaixador denota séria crise diplomática. É o passo anterior ao fechamento da embaixada e rompimento de relações entre dois países.

No mesmo dia, o Chile, presidido por Gabriel Boric, repetiu o gesto. O Ministério das Relações Exteriores lançou nota denunciando “as violações inaceitáveis do Direito Internacional Humanitário que Israel cometeu na Faixa de Gaza”. Lá vive a mais numerosa comunidade palestina fora do Oriente Médio. No dia seguinte, a Jordânia, maior aliada de Israel no Oriente Médio fez a mesma coisa.

Se contarmos com a elevação do tom das críticas de autoridades da Turquia, da África do Sul, da China e da Rússia entre outros, e a crescente onda de manifestações populares mundo afora, uma constatação pode ser feita: Israel começa a perder a batalha na opinião pública global e se isola juntamente com os Estados Unidos. É possível que, no campo militar, comece a enfrentar problemas na invasão terrestre em Gaza. A limpeza étnica em curso tem pontos de contato com a busca do chamado espaço vital que as forças armadas nazistas fizeram, na tentativa de roubo de territórios ao Leste, a partir de 1941.

Qual o comportamento do Brasil e de sua “diplomacia ativa e altiva”, num enfrentamento que começa a mostrar ramificações globais? Apesar da histórica vitória sobre a extrema-direita há um ano, o desempenho do governo Lula nessa área começa a decepcionar. Repete-se na política externa a conduta ambígua, recuada e pusilânime diante de situações complexas. Aparentemente não temos mais a diplomacia que “não fala grosso com a Bolívia e nem fino com os Estados Unidos”, como disse Chico Buarque em 2010. Agora quem fala grosso com os fortes é justamente a Bolívia, enquanto o Brasil volta a falar fino com o outro lado.

O ministro das Relações Exteriores Mauro Vieira proferiu um discurso na segunda (30), na última reunião do Conselho de Segurança da ONU presidido pelo Brasil. Alegando sentir “um profundo sentimento de urgência e consternação”, o chanceler contou que o conflito entre Israel e Palestina foi “tragicamente reacendido pelas ações terroristas do Hamas”.

E segue: “A situação atual em Gaza é profundamente terrível e indefensável por qualquer padrão humano e à luz do direito humanitário internacional. Uma catástrofe humanitária alarmante desenrola-se diante dos nossos olhos, com milhares de civis, incluindo um número esmagador e intolerável de crianças, a serem punidos por crimes que não cometeram. Em três semanas, assistimos a este conflito ceifar a vida a mais de oito mil civis, dos quais mais de três mil são crianças”.

Fortes palavras, fraco conteúdo. O chanceler é um ás em construir frases tonitruantes sem sujeito. Se perguntarmos, com base em sua algaravia, quem ceifou oito mil vidas, a resposta já está dada: “o conflito”. Claro! Lógico, quem mais? O culpado de tudo é o maldito conflito.

Há mais: “Desde 7 de Outubro, reunimo-nos diversas vezes e apreciamos quatro projetos de resolução. No entanto, continuamos num impasse devido a divergências internas”.

Quem gerou o impasse? “As divergências internas”, óbvio. Malditas divergências, só servem para atrapalhar! Vieira é aquele diplomata caricato, gestos contidos, olhar indecifrável, que não demonstra emoções e que lê discursos com a empolgação de quem narra uma bula de remédio. Faz drama, mas não aponta caminhos: “Os olhos do mundo estão fixos em nós e não se afastarão da nossa angustiante incapacidade de agir”. A intervenção de Mauro Vieira pode ser lida aqui.

Já o presidente Lula decidiu fazer analogias entre a matança em Gaza e a vida doméstica, no último dia de outubro, aproveitando a cerimônia de sanção de lei que garante pensão a órfãos de vítimas de feminicídio. “Resolver o problema em torno de uma mesa de negociação, em torno de uma conversa, é muito mais barato, é muito mais fácil, é muito mais econômico. Um casal dentro de casa, quando tiver algum problema de desavença, sente numa mesa, converse, discuta. Não é possível a gente chegar as vias de fato por uma divergência, por ciúmes”.

A fala de Lula é – com todo o respeito – um escárnio. Há uma mesa de negociação que se chama Assembleia Geral da ONU, em que os dois lados se fazem presentes. Na semana passada, o embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, além de não querer negociação alguma, ainda pediu a renúncia do secretário-geral da Organização, o moderado português António Guterres. O motivo? António Guterres afirmara dias antes que a ação do Hamas não acontecera “no vácuo”. Em torno da mesa, o sionista decidiu virar a própria.

Lula sabe dessa situação e lança palavras ao vento. Mais grave é o presidente comparar uma tragédia de 75 anos – motivada pelo roubo de terras, expulsão de palestinos, matança indiscriminada e apoio de Washington – a uma briga de casal. É tentativa de fazer graça com catástrofe alheia.

Mas Lula não para por aí. Adiante, ele revela: “Estamos vendo pela primeira vez uma guerra em que a maioria dos mortos são crianças e ninguém tem responsabilidade. A gente não consegue fazer uma carta da ONU convencendo as pessoas que estão guerreando e parem. Pelo amor de Deus, parem!”.

“Pelo amor de Deus parem?” Como assim? Lula é um cidadão sem poder ou prerrogativa alguma, sem alternativas a não ser suplicar ao Altíssimo para que intervenha neste vale de lágrimas? Ou é mandatário de um dos maiores países do mundo, com plenas condições de tomar decisões incisivas na cena global? Depois do apelo a Deus vem mais uma oração sem sujeito: “A maioria dos mortos são crianças”. Morreram por ato divino? Pela insondável mão do Destino? Ou alguém as matou? Quem? “A guerra”, assim como “o conflito” e as “divergências”, mencionadas pelo ministro das Relações Exteriores.

Lula e Mauro Vieira falam a mesma língua, a da tergiversação. Com suas palavras parecem confessar ter sido um mau negócio o Brasil assumir a presidência do CSUN justamente no meio dessa confusão. O país teve um gesto positivo ao tentar construir uma resolução consensual, vetada pelos EUA, mas em momento algum apontou responsabilidades pela matança. E foi eficiente em trazer de volta brasileiros que estavam nas regiões de conflito.

Mas em nenhum momento fez a Israel acusação semelhante à desfechada contra o Hamas. Sequer convocar o embaixador de Israel no Brasil para externar protesto foi feito. Temos uma política externa que mais se aproxima de uma dinâmica de relações públicas e retórica vazia, mas incapaz de ter lado. O Brasil voltou, mas o mundo ficou mais complicado. E parece que não nos preparamos para isso.

Nem sempre a diplomacia brasileira exibiu a atual ambiguidade em relação a Israel. O país se colocou claramente contra o principal aliado dos EUA no Oriente Médio nos tempos tenebrosos da ditadura militar. Ou seja, até naqueles anos duríssimos tivemos uma diplomacia mais objetiva.

Vamos mencionar alguns exemplos dessa conduta externa, descritos no artigo “O lugar de Israel e da Palestina na política externa brasileira: antissemitismo, voto majoritário ou promotor de paz?”, de Tullo Vigevani e Guilherme Casarões, publicado em 2014.

O primeiro episódio é de 1974, no Governo Geisel e se materializa no discurso do chanceler Azeredo da Silveira na abertura da 29ª. Assembleia Geral da ONU. Ao se referir à Guerra dos Seis Dias, de 1967, que resultara na ocupação do Sinai, Gaza, Cisjordânia e as Colinas de Golã, Silveira a classifica como “guerra de conquista” por parte de Israel. Com a palavra o ministro: “A objeção à guerra de conquista é uma constante na história do Brasil, é um preceito inscrito em nossa Lei fundamental. Consideramos absoluto o direito à integridade territorial e a obrigação de respeito à soberania. Em consequência, acreditamos que a desocupação dos territórios ocupados é, insofismavelmente, parte integrante da solução do conflito”.

Casarões e Vigevani seguem adiante: “A sinalização mais forte da posição interpretada como pró-árabe brasileira viria, contudo, no ano seguinte, em novembro de 1975. O Brasil foi uma das três nações sul-americanas (junto com Cuba e México) a votar favoravelmente à decisão de declarar que o sionismo representava uma forma de racismo e discriminação racial, através da Resolução 3379 da AGNU. Ao condenar Israel naquilo que era por esse Estado considerada a essência de seu movimento nacional, o governo brasileiro unia-se a vários outros países em desenvolvimento naquela que para alguns foi a decisão mais controversa tomada no âmbito das Nações Unidas”. O Brasil desafiou abertamente Washington e os países da Europa Ocidental.

A resolução seria revogada em 1991 por pressão de Israel e de seus aliados, como pré-condição para as tratativas de paz que culminaram com os acordos de Oslo, em 1994 (e que Israel jamais cumpriu).

O terceiro exemplo está no discurso do chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro na abertura da 36ª. Assembleia Geral da ONU, em setembro de 1981, já no último e caótico governo da ditadura, o de João Figueiredo: “Meu Governo adere com firmeza a esse propósito para a obtenção das condições que considera indispensáveis para a paz: a retirada completa das forças de ocupação de todos os territórios árabes; o exercício do direito de o povo palestino retornar à Palestina e o reconhecimento de seu direito à autodeterminação, à independência e à soberania; a participação da Organização da Libertação da Palestina nas negociações de paz; e o reconhecimento do direito de todos os Estados da região de existirem em paz dentro de fronteiras reconhecidas”.

Em 27 de setembro de 1982, o próprio general João Figueiredo vai abrir a Assembleia-Geral. Seu discurso é direto ao se referir ao massacre dos campos de refugiados de Sabra e Chatila cometidas por milícias maronitas dez dias antes, em território ocupado por Israel. O número de assassinatos pode ter chegado a 3,5 mil: “Vejo, com enorme apreensão, a persistência da crise no Oriente Médio, cujos aspectos mais salientes são, neste momento, o conflito entre o Iraque e o Irã e as sequelas da ação militar que vitimou o Líbano, país com que mantemos profundas e fraternas relações. Ainda recentemente, a opinião mundial ficou profundamente chocada com o massacre de civis palestinos em Beirute. Sabemos todos que a questão do Oriente Médio só encontrará solução quando forem desocupados os territórios árabes hoje sob ocupação militar e for reconhecido o direito do povo palestino a um Estado soberano, assim como o direito de todos os países da região, inclusive Israel, a viverem em paz, dentro de fronteiras reconhecidas”.

O espantoso dessas intervenções é que elas se deram – vamos repetir – quando o Brasil vivia os anos de chumbo de uma ditadura militar. O país tinha importância muito menor na cena global e boa parte da sociedade se batia contra o autoritarismo e a ausência de democracia. Além do Brasil de quase meio século atrás, países menores como Bolívia, Colômbia e Chile, deixam de ambiguidades e hesitações para apontar o responsável pelos crimes contra a Humanidade cometidos em Gaza.

O que falta para o governo Lula deixar de lado uma inexplicável neutralidade que em nada ajuda na resolução do cataclismo sionista? Essa equidistância favorece a quem? Pensemos numa oração com sujeito para responder.

*Gilberto Maringoni, é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).


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