Por ERIK CHICONELLI GOMES*
Considerações sobre o impacto do livro de Harvey J. Kaye na historiografia brasileira
The British Marxist Historians, de Harvey J. Kaye, publicada em 1984, representa um marco significativo na compreensão do desenvolvimento da história social e do papel dos historiadores marxistas britânicos, com destaque especial para E.P. Thompson. Este livro não apenas analisa a contribuição de E.P. Thompson, mas também contextualiza seu trabalho dentro de uma tradição mais ampla que inclui figuras proeminentes como Christopher Hill e Eric Hobsbawm.
A recepção desta obra no Brasil e seu impacto na historiografia brasileira merecem uma análise detalhada, considerando a influência duradoura que exerceu sobre os estudos históricos no país.
A penetração de The British Marxist Historians no contexto acadêmico brasileiro ocorreu em um momento de significativa transformação na produção historiográfica nacional. O final da década de 1980 e o início dos anos 1990 foram marcados por uma crescente abertura a novas abordagens teóricas e metodológicas, em parte impulsionada pelo processo de redemocratização do país. Neste cenário, a obra de Harvey J. Kaye encontrou um terreno fértil para discussão e aplicação, oferecendo insights valiosos sobre como a tradição marxista britânica poderia informar e enriquecer a pesquisa histórica brasileira.
Um dos primeiros historiadores brasileiros a reconhecer a importância de The British Marxist Historians foi Sidney Chalhoub. Em seu influente trabalho Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte (1990), Chalhoub faz referência direta à obra de Harvey J. Kaye, destacando como a abordagem dos historiadores marxistas britânicos, particularmente E.P. Thompson, influenciou sua própria metodologia de análise das experiências dos escravos e libertos no Rio de Janeiro do século XIX.[i]
A historiadora Maria Célia Paoli, em seu artigo “Os trabalhadores urbanos na fala dos outros: tempo, espaço e classe na história operária brasileira” (1984), também demonstra uma clara influência da tradição dos historiadores marxistas britânicos, embora sua publicação seja contemporânea à de Harvey J. Kaye. Maria Célia Paoli enfatiza a importância de se considerar a agência dos trabalhadores na construção de sua própria história, um tema central na obra de Thompson e outros historiadores analisados por Harvey J. Kaye.[ii]2
O impacto de The British Marxist Historians na historiografia brasileira não se limitou aos estudos sobre trabalho e classe operária. A obra também influenciou significativamente a história cultural e a história das ideias no Brasil. Neste contexto, o trabalho de Marcelo Badaró Mattos merece destaque. Em E.P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo histórico (2012), Marcelo Badaró Mattos não apenas discute a obra de Kaye, mas também a utiliza como ponto de partida para uma análise aprofundada da contribuição de Thompson para o marxismo e para a historiografia de modo geral.[iii]
A contribuição de The British Marxist Historians para a historiografia brasileira é multifacetada. Primeiramente, a obra ajudou a consolidar uma compreensão mais nuançada do marxismo como ferramenta de análise histórica, distanciando-se de interpretações mais dogmáticas ou economicistas. Isso se refletiu em uma nova geração de estudos que buscavam integrar as dimensões culturais e subjetivas da experiência histórica à análise das estruturas econômicas e sociais.
Além disso, o livro de Harvey J. Kaye contribuiu para uma maior apreciação da história vista de baixo, um conceito central na obra de Thompson e outros historiadores marxistas britânicos. Esta abordagem encontrou ressonância particular no contexto brasileiro, onde historiadores buscavam dar voz e agência a grupos historicamente marginalizados, como trabalhadores, escravos, mulheres e populações indígenas.
Um exemplo notável da aplicação desta perspectiva pode ser encontrado no trabalho de Silvia Hunold Lara. Em Campos da violência: escravos e senhores na capitania do rio de janeiro, 1750-1808 (1988), Silvia Hunold Lara demonstra uma clara influência da abordagem thompsoniana, buscando compreender as relações escravistas não apenas como um sistema de dominação, mas também como um campo de negociações e resistências cotidianas.[iv]
A obra de Harvey J. Kaye também teve um impacto significativo na forma como os historiadores brasileiros passaram a conceber a relação entre teoria e prática na pesquisa histórica. A ênfase dos historiadores marxistas britânicos na necessidade de um diálogo constante entre evidência empírica e reflexão teórica encontrou eco em uma historiografia brasileira que buscava superar tanto o empirismo estreito quanto o teoricismo abstrato.
Neste sentido, o trabalho de João José Reis é particularmente ilustrativo. Em Rebelião escrava no brasil: a história do levante dos malês em 1835 (1986), João José Reis demonstra uma habilidade notável em combinar uma pesquisa arquivística minuciosa com uma análise teórica sofisticada, claramente influenciada pela tradição dos historiadores marxistas britânicos.[v]
A recepção de The British Marxist Historians na academia brasileira não foi, contudo, isenta de críticas e debates. Alguns historiadores questionaram a aplicabilidade direta dos modelos e conceitos desenvolvidos no contexto britânico à realidade histórica brasileira. Este debate produtivo levou a uma apropriação crítica e criativa das ideias apresentadas por Harvey J. Kaye, resultando em adaptações e reinterpretações que enriqueceram ainda mais a historiografia nacional.
Um exemplo deste processo de apropriação crítica pode ser encontrado no trabalho de Ciro Flamarion Cardoso. Em seu artigo “História e Paradigmas Rivais” (1994), Cardoso discute as contribuições e limitações da abordagem dos historiadores marxistas britânicos, incluindo as análises apresentadas por Harvey J. Kaye, no contexto mais amplo dos debates historiográficos contemporâneos.[vi]
A influência de The British Marxist Historians também se fez sentir na formação de novas gerações de historiadores brasileiros. A obra tornou-se leitura obrigatória em muitos cursos de pós-graduação em história, contribuindo para a disseminação das ideias e abordagens dos historiadores marxistas britânicos entre jovens pesquisadores. Isso resultou em uma proliferação de estudos que, de diversas maneiras, dialogam com as questões levantadas por Harvey J. Kaye e pelos historiadores que ele analisa.
Um exemplo desta influência pode ser observado no trabalho de Alexandre Fortes. Em sua tese de doutorado, posteriormente publicada como livro, Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas” (2004), Alexandre Fortes demonstra uma clara influência da tradição dos historiadores marxistas britânicos, particularmente na sua abordagem da formação da classe trabalhadora e na atenção às experiências cotidianas dos trabalhadores.[vii]
É importante notar que a recepção de The British Marxist Historians“
no Brasil não se limitou ao campo da história. A obra também teve um impacto significativo em outras disciplinas das ciências sociais, como a sociologia e a ciência política. Isso reflete a natureza interdisciplinar do trabalho dos historiadores marxistas britânicos e sua relevância para uma compreensão mais ampla dos processos sociais e políticos.
Neste contexto, o trabalho do sociólogo Ricardo Antunes merece menção. Em Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho (1999), Ricardo Antunes faz uso extensivo das ideias de E.P. Thompson e outros historiadores marxistas britânicos, demonstrando a relevância contínua dessas abordagens para a análise das transformações no mundo do trabalho contemporâneo.[viii]
A contribuição de The British Marxist Historians para a historiografia brasileira também se manifesta na forma como ajudou a promover um diálogo mais profundo entre a produção historiográfica nacional e internacional. A obra de Harvey J. Kaye serviu como um ponto de referência importante para historiadores brasileiros que buscavam situar seu trabalho em um contexto global de produção historiográfica, facilitando intercâmbios e colaborações internacionais.
Um exemplo notável deste intercâmbio pode ser encontrado na colaboração entre o historiador brasileiro Emília Viotti da Costa e o próprio E.P. Thompson. Embora esta colaboração tenha precedido a publicação do livro de Kaye, ela ilustra o tipo de diálogo internacional que The British Marxist Historians ajudou a fomentar e consolidar na historiografia brasileira.[ix]
Em suma, a recepção de The British Marxist Historians de Harvey J. Kaye na historiografia brasileira foi marcada por um processo de apropriação crítica e criativa. A obra não apenas introduziu os historiadores brasileiros a uma tradição historiográfica rica e influente, mas também estimulou reflexões importantes sobre a prática da história no contexto brasileiro. Seu impacto pode ser observado na diversificação temática e metodológica da produção historiográfica nacional, na ênfase renovada na agência dos sujeitos históricos, e na busca por uma integração mais profunda entre teoria e pesquisa empírica.
A influência duradoura de The British Marxist Historians na historiografia brasileira é um testemunho da relevância contínua das questões levantadas pelos historiadores marxistas britânicos e da habilidade dos historiadores brasileiros em adaptar e reinterpretar essas ideias para seu próprio contexto. Ao fazê-lo, eles não apenas enriqueceram a historiografia nacional, mas também contribuíram para o desenvolvimento contínuo de uma tradição historiográfica global e diversificada.
*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.
Referência
KAYE, Harvey J. The british marxist historians: an introductory analysis. Cambridge, Polity Press, 1984, 316 págs. [https://amzn.to/486KFFK]
Bibliografia
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
CARDOSO, Ciro Flamarion. História e Paradigmas Rivais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma História das Últimas Décadas da Escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FORTES, Alexandre. Nós do Quarto Distrito: A Classe Trabalhadora Porto-Alegrense e a Era Vargas. Caxias do Sul: Educs, 2004.
LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
MATTOS, Marcelo Badaró. E.P. Thompson e a Tradição de Crítica Ativa do Materialismo Histórico. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012.
PAOLI, Maria Célia. Os Trabalhadores Urbanos na Fala dos Outros: Tempo, Espaço e Classe na História Operária Brasileira. In: LOPES, José Sérgio Leite (Org.). Cultura e Identidade Operária: Aspectos da Cultura da Classe Trabalhadora. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987.
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
VIOTTI DA COSTA, Emília. Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue: A Rebelião dos Escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Notas
[i] CHALHOUB , Sidney. Visões da Liberdade: Uma História das Últimas Décadas da Escravidão na Corte (São Paulo: Companhia das Letras, 1990), pp. 23-25.
[ii] PAOLI, Maria Célia, “Os Trabalhadores Urbanos na Fala dos Outros: Tempo, Espaço e Classe na História Operária Brasileira,” in Cultura e Identidade Operária: Aspectos da Cultura da Classe Trabalhadora, ed. José Sérgio Leite Lopes (Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987), pp. 53-101.
[iii] MATTOS, Marcelo Badaró, E.P. Thompson e a Tradição de Crítica Ativa do Materialismo Histórico (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012), pp. 78-82.
[iv] LARA, Silvia Hunold, Campos da Violência: Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808 (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988), pp. 15-18.
[v] REIS, João José, Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835 (São Paulo: Companhia das Letras, 2003), pp. 8-12.
[vi] CARDOSO, Ciro Flamarion, “História e Paradigmas Rivais,” in Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia, eds. Ciro Flamarion Cardoso and Ronaldo Vainfas (Rio de Janeiro: Campus, 1997), pp. 1-23.
[vii] FORTES, Alexandre, Nós do Quarto Distrito: A Classe Trabalhadora Porto-Alegrense e a Era Vargas (Caxias do Sul: Educs, 2004), pp. 30-35.
[viii] ANTUNES, Ricardo, Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho (São Paulo: Boitempo, 1999), pp. 102-105.
[ix] COSTA, Emília Viotti da, Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue: A Rebelião dos Escravos de Demerara em 1823 (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), pp. 13-15.
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