Crise do capital e fim da política

Salem Arif Quadri, Paisagem da saudade, 1997-9
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Por VINÍCIUS MATTEUCCI DE ANDRADE LOPES*

Primeira parte da “Apresentação” do livro recém-lançado de Alex Demirović

O fio da história

Os dois textos de Alex Demirović – Populismo autoritário como estratégia neoliberal de superação das crises e Democracia de conselhos ou o fim da política – compõem um arsenal crítico sofisticado que abarca um diálogo com diversas dimensões teóricas. Entre elas, no primeiro texto, com a análise do marxista jamaicano radicado em Londres, Stuart Hall, um dos fundadores da New Left Review, o primeiro a caracterizar o período da política econômica implantada por Margaret Thatcher como uma forma de domínio orientada pelo “populismo autoritário”; em outro momento, polemiza com a reposição teórica da clássica relação populismo/democracia apresentada pelo cientista político Jan-Werner Müller.

Já o texto sobre os conselhos inicia afastando-se da interpretação republicana-liberal de Hannah Arendt sobre a vinculação entre formação de conselhos e revolução e passa a apresentar a discussão sobre a tradição crítica em torno da democracia de conselhos vinculada à Revolução Alemã de 1918; nesse texto, como contraponto teórico e ponto de imersão em elementos fundamentais de uma crítica da política na forma burguesa, é apresentada também a clássica leitura de Marx sobre a Comuna de Paris.

Diante desse amplo leque de inflexão e reflexão, o traço que desenha as diversas possíveis mediações que configuram os dois instigantes textos de Demirović é o próprio fio da história. É bastante clara a conexão existente entre 2018, momento em que o autoritarismo popular, ou o extremismo de direita, torna-se uma manifestação relativamente comum e articulada da burguesia global e os diversos processos de configuração de uma resolução autocrática das variadas formas burguesas de “superação” das crises ao longo do século XX: nazismo, fascismo, formas ditatoriais latino-americanas, etc. Menos evidente é a compreensão das dimensões que projetam um diálogo entre o atual momento político-econômico mundial e as lições da conjuntura que delimitam a Comuna de Paris em 1871 e da tentativa de implementação dos conselhos na Alemanha.

À primeira vista, a dinâmica de dominação que está por trás da lógica Trump-Bolsonaro – enquanto um amplo projeto de reorganização da burguesia mundial diante da crise financeira iniciada em 2008 – é inquestionável, assim como sua íntima conexão com a dinâmica neoliberal. Uma conexão que, levada à sério, é indissociável também do período Lula-Dilma. Os governos do PT poderiam ser caracterizados, valendo-se do termo utilizado por Demirović na linha de Nancy Frazer, como um neoliberalismo progressista.

Uma análise da relação entre o contraditório desenvolvimentismo, ou neodesenvolvimentismo[i] do PT, e a força neoliberal internacional não permite, é claro, qualquer subsunção automática à realidade brasileira. Ainda assim, não é difícil supor que aos futuros historiadores do Brasil restará claro que a conjuntura pós-ditadura deve ser lida como um fenômeno único, não apenas por Bolsonaro ressuscitar os porões da ditadura, mas também como expressão de um processo amplo de reorganização e contingenciamento da burguesia mundial.

A burguesia, que tem como uma de suas principais características constitutivas não ser homogênea e estática, enquanto constante processo do devir das personificações do capital – o capital industrial participa de uma forma diversa do capital comercial na produção de mais-valia [ii] –, definitivamente aprendeu com a catástrofe que define todo o século XX, a necessidade de gerir o mundo. É preciso dominar a dominação capitalista. Tudo agora é uma questão de “governability of the democracies[iii], na fraseologia neoliberal utilizada pela Comissão Trilateral (1973).

Em um nível abstrato, Marx já sabia, recepcionando criticamente a simbiose entre economia-política clássica e filosofia política moderna, que a própria existência de um modo especificamente burguês, cosmopolita – mundialmente burguês [Weltbürgerlich] – como dizia Kant em 1784[iv], representação de uma suposta universalidade humana, é tão frágil quanto suas próprias autoilusões. A pandemia que colapsou o mundo em 2020 revela a verdade dessa fragilidade da forma mais cruel, ela funciona como lente de aumento da verdade da barbárie.

No fio da meada da história, apoiando-se nos geógrafos Jaime Peck e Adam Tickell (Neoliberalizing Space), Demirović aponta três fases do neoliberalismo que, apesar de mudanças dos processos, não expressam necessariamente saltos qualitativos de organização, mas momentos de reorganização, deslocamento e racionalização da lógica de dominação burguesa. A crise do Welfare State, do período caracterizado pela tentativa de reconstrução da economia europeia sob o comando norte americano no pós-guerra, como se sabe, chega a um ponto decisivo quando o presidente Nixon decreta em 1971 o fim da paridade ouro-dólar e o sistema Bretten Woods se encerra em 1973.

Os quase 30 anos de tentativa de recuperação econômico-social da Europa e a expansão da relação-capital nas Américas, Ásia e Oriente Médio[v] – vale lembrar, fenômenos diversos, ainda que dois lados da mesma moeda – antes de serem entendidos como uma “nova” fase do mundo burguês, são expressão de um processo fundamental que articula dinâmicas estruturais da lógica capitalista. Tudo muda para que nada mude.

A definição apressada de uma ideologia própria e restrita à “sociedade industrial avançada”, em que teriam sido alteradas a estrutura e a função do proletariado e da burguesia, como indica Marcuse na sua clássica análise escrita justamente na intersecção entre Estado de bem-estar social e neoliberalismo,[vi] muitas vezes impede o acesso à estrutura que sustenta a relação-capital. É um lugar-comum para algumas tradições marxistas assumir diferenças qualitativas entre fases e ciclos de acumulação, sem levar em conta o movimento interno estrutural da relação-capital. Um tema clássico, próprio ao que desde de Hilferding, e posteriormente com a, ainda hoje incontornável, leitura de Lênin sobre o imperialismo, que se iniciou com a caracterização do capitalismo como organizado na abertura do século XX. [vii]

As diferenças entre as conjunturas, evidentemente, não deixam de ser claras, os pontos de pressão da luta de classes operam em espaço-tempos diversos, assim como as novas dinâmicas geopolíticas. Basta lembrar, por exemplo, que do fim da Segunda Guerra até 2020, os EUA, enquanto o maior império da Era burguesa, participaram direta ou indiretamente de todos os acontecimentos politicamente significativos do século XX. Mesmo tendo esse aspecto em vista, e justamente por ele, é possível adiantar uma resposta: enquanto a relação-capital for baseada na distorção dialética capital-trabalho, enquanto essa mediação transcorrer sob a forma assalariada e enquanto o lucro for o motor aparente de funcionamento do sistema – não importa se a média ideal (esperada) do processo de exploração regule mais ou menos as rotações do ciclos de produção/acumulação, ou as interações entre relação de produção e de distribuição se alterem – ainda estaremos presos na mesma dinâmica, seja ao longo do século XIX Europeu, seja no século XXII, caso cheguemos até lá.

Os dois textos de Demirović, como ficará claro ao leitor, permitem desconfiar de qualquer cisão teórica e histórica entre crítica do neoliberalismo e o próprio fundamento da forma política burguesa. Particularmente em relação à crítica ao neoliberalismo, os pressupostos conjunturais, em termos de apresentação de dados econômico-sociais e das particularidades históricas em relação à Europa, podem ser encontrados na reflexão escrita em conjunto com Thomas Sablowski em 2012, um aspecto bastante conhecido da crítica de uma sociologia do trabalho marxista, a inter-relação entre reestruturação produtiva e superação das crises: “Para escapar da crise que atingia a lucratividade na época, o capital seguiu diversas estratégias: o deslocamento da produção para a periferia ou a semiperiferia do capitalismo; o ataque direto à classe trabalhadora nos centros (demissões em massa, enfraquecimento dos sindicatos, queda dos salários, desmonte dos benefícios sociais, precarização) e a abertura de novas possibilidades de investimento do capital através da desregulamentação, da liberalização e da privatização.” [viii]

Com temas diversos, os artigos se conjugam, como indicado, pela própria historicidade da relação-capital, pelo próprio fio da história – principalmente considerando a leitura histórico-teórica sobre a democracia de conselhos e a análise de Marx sobre a Comuna de Paris – , antes de tomar como a priori de um modo de consideração marxista da história da relação-capital, a falsa oposição economia/política, ou mesmo democracia/mercado, dissolve-se e se explicita como uma dinâmica interna do permanente processo de acumulação do capital e suas (re)composições sempre cada vez mais orgânicas. Qualquer discussão sobre governamentabilidade, pautada em uma falsa oposição democracia x autoritarismo, que não considera a complexidade desse processo, expressa-se, antes de tudo, como sintoma conjuntural de um mesmo movimento. Captar a diferença específica desses sintomas no interior da dialética conjuntura-estrutura, continua sendo a tarefa fundamental da crítica.

 

Fases do neoliberalismo e o curto-circuito do populismo autoritário

A primeira fase transcorre entre 1973 e meados de 1980, o chamado neoliberalismo de rollback, desregulador. Por representar o primeiro confronto com o Estado de Bem-estar social, essa fase tornou-se a mais emblemática do neoliberalismo: privatização e alteração sistêmica do papel do Estado são suas principais características. A segunda fase, de meados de 1980 até 2008, o chamado neoliberalismo de roll out, imprime um reajuste e intensificação do processo de introjeção sistemática da lógica neoliberal no interior da sociedade civil. Significativo desse período é o impacto do lean-production como uma resposta à crise do fordismo. A terceira fase, por sua vez, inicia-se com a crise financeira de 2008, ela abre o período de predominância do “populismo autoritário”.

Na leitura crítica dessas fases, Demirović apresenta duas teses fundamentais. A primeira tem como pressuposto crítico algo do que é apresentado no artigo sobre a democracia de conselhos. O chamado “curto-circuito” entre as forças burguesas e os subalternos. O duplo sentido desse curto-circuito que contraditoriamente aproxima forças estruturalmente antagônicas, por mais que já tenha ocorrido de maneira pontual em outros períodos como no nazismo e fascismo, ainda não havia se tornado, como agora, um projeto de mobilização permanente e progressivamente consciente da burguesia mundial.

Demirović não busca esclarecer os fundamentos desse encurtamento, restringe-se apenas a mostrar suas características. Ele argumenta que o elemento central para explicar a ascensão do populismo autoritário, não pode ser apenas (!) a mudança das condições de vida da classe trabalhadora europeia e norte americana causada pelo aumento do desemprego com o acesso à mão de obra mais barata em países periféricos após o fim da guerra fria; ou as alterações das relações familiares, cada vez mais atomizadas e refletindo a precarização e mudança do padrão de vida intensificado pela crise de 2008. Demirović defende que ocorreu, na realidade, uma “cisão nacional-conservadora dentro da classe dominadora orientada para a direita, cisão esta que faz parte da dominação e consegue influenciar a agenda burguesa e a formação de vontade política com seus imensos recursos”. Não se trata, portanto, de um elemento completamente novo e externo, trazido por uma alteração conjuntural a partir de 2008, mas de um desdobramento interno e necessário das fases anteriores.

O que o período neoliberal permite verificar é uma potencialização – e aqui essa palavra é importante – dos impulsos internos da burguesia (que se efetiva entre progressismos de esquerda e extremismos de direita). O deslocamento para uma falsificadora guinada contra a abstração sistema político, ou a corrupção do Estado, é estratégico para “ultrapassar o limite da legalidade e da política oficial e reunir as várias atividades da direita nacional-conservadora e fascista-nacional-socialista”.

O curto-circuito também remete a uma dimensão imanente do mundo burguês, dada, por exemplo, a desmedida entre capital variável e capital constante na formação da composição orgânica do capital, o núcleo da produção da mais-valia. Simplificando muito, seria possível dizer que a “corrente elétrica” força de trabalho é sempre muito maior do que a “resistência” composição orgânica do capital. A forma política burguesa, desde de metade do século XIX europeu, busca ora alterar a corrente ora alterar a resistência.

A outra tese, desdobramento interno desse curto-circuito, é apresentada como uma crítica ao texto de Jan-Werner Müller, Was ist Populismus? Ein Essay (2016), por meio da qual a clássica oposição entre democracia e formas autoritárias é questionada. Contra Müller, afirma que o mesmo “ignora que o populismo autoritário – diferente da extrema direita – não se opõe à democracia, mas se apropria dela e argumenta agir em nome de uma democracia verdadeira”. Basicamente e de modo direto, pressuposto da crítica de Demirović e de todo marxista sério: a democracia jamais será verdadeira no mundo burguês. A questão clássica da teoria política moderna de uma vontade unificada representativa da soberania popular que se sustentaria na pluralidade de vontades individuais já fora definitivamente criticada por Marx.

A comunidade ilusória política, na qual o Estado representativo substitui formalmente a religião como fundamento para circulação e efetivação de uma vontade soberana/unificada mantém o ponto de referência, que pode contradizer as vontades individuais, “fora” do próprio processo de formação da vontade. O Estado baseado em uma lógica de representação teológica (que formalmente, enquanto lógica representacional, mantém-se do absolutismo ao Estado burguês), deixa de ocupar um lugar central e de unificação do chamado elemento político, na medida em que a estrutura moral religiosa se torna cada vez mais um fenômeno limitado à “pequenez-privativa [Beschränktheit] mundana” (MEW I, 352).

Na juventude, antes da conhecida investigação e exposição da “anatomia da sociedade civil-burguesa”, Marx já havia indicado que a lógica da política burguesa mantém uma dimensão autoritária, isto é, o que define a emancipação política burguesa é justamente a manutenção de um arbítrio sistêmico que precisa se concretizar como dominação de classe, ao mesmo tempo, em que se legitima como forma política universal. Mais à frente voltaremos a isso na exposição de Demirović a alguns aspectos da crítica de Marx à forma política burguesa.

 

Algumas questões estruturais da relação-capital tendo em vista o neoliberalismo

Na primeira fase do neoliberalismo, como primeiro marco de autorreflexividade burguesa nessa conjuntura, por assim dizer, é bastante revelador o questionamento da comissão trilateral justamente sobre a capacidade de “governabilidade” do Estado de bem-estar social. Uma investigação interna desse período, enquanto relação de produção/distribuição particular, normalmente é encoberta pela geopolítica da guerra fria. Em relação a isso, forçando uma simplificação, dois pontos centrais e evidentes: (1) O Estado de Bem-estar social é, antes de tudo, um movimento de tentativa de superação da crise da era da catástrofe, particularmente dos efeitos da guerra hegemônica, ela mesma expressão do múltiplo universo que compõe a concorrência capitalista. Uma guerra, na essência, de disputa da burguesia europeia e norte americana entre si, não uma luta do capital contra o trabalho, portanto dificilmente representaria um movimento no interior dessa contradição;[ix] (2) O Estado de

Bem-estar social não deixa de ser também produto da correlação de forças da luta de classes que a existência da União Soviética provoca no pós-guerra. Aqui não é preciso lembrar, algo bastante conhecido, ainda que sempre deslocado pela distorção histórica burguesa: qualquer dimensão humana e social do capitalismo vem da luta dos trabalhadores, embora possa não “aparecer” assim. O Estado de Bem-estar social não seria o que foi sem a ameaça concreta do “socialismo real” da União soviética, mesmo com todas as suas contradições.

Considerando o primeiro ponto, e sem aqui aprofundar o complexo problema da temporalidade específica do capital na sua historicidade entre crises, expansão e rearticulação das bases de produtividade é importante notar que a assim chamada “era de ouro”,[x] jamais colocou, por meio de uma ameaça concreta, em perigo o funcionamento e a dinâmica de acumulação do capital. Qualquer oposição estrutural entre democracia/Estado social intervencionista e economia de livre mercado é falsa. Apesar dos ciclos de acumulação, de unidade contraditória da circulação capitalista, da queda tendencial da taxa de lucro, isto é, do caráter imanente da crise enquanto momento da expansão/retração da processualidade capitalista, é preciso levar em conta que – considerando a organicidade específica entre forças de produção, relações de produção e relações de distribuição, isto é, do fato de que durante uma crise todos esses setores precisam ser afetados – a própria aparente autonomia da unidade necessária entre produção (relação de articulação interna das forças produtivas, por exemplo, diferença entre capital constante e variável) e relações de distribuição (taxa de lucro, sistema de credito, concorrência intercapitalista, etc.) é um fator intrínseco da imanência formal da crise, da “forma mais abstrata da crise”.12

As ditaduras latino-americanas, como se sabe, configuram o quadro de surgimento do neoliberalismo e de rearticulação dos processos de distribuição do mais-valia e são um exemplo histórico dessa aparente autonomia entre força produtiva (consolidação do modelo fordista na América do Sul) e relações de distribuição (controle e distribuição do mais-valor produzido, sistema de créditos, etc. na Europa e Estados Unidos). Ao considerarmos o exemplo brasileiro, a influência da conjuntura internacional se reflete no apoio direto de empresas aos governos ditatoriais, fato muito bem documentado.[xi] Para além da evidente influência da guerra fria, a crise que abre o neoliberalismo costura uma outra relação no Brasil.

A ameaça do particular “Estado de Bem-estar social” de João Goulart e seu plano trienal passa a ter um papel importante na retórica do golpe de 64. Como apontou Paul Singer, esse papel se intensifica a partir de meados da década de 60 com a alteração da divisão internacional do trabalho, quando “os países exportadores de capital passaram a realizar parte da mais-valia produzida no exterior, importando produtos de subsidiárias de suas próprias empresas”.[xii] Vale aqui retomar a importante afirmação de Antônio Rago, algo que, pelo momento que estamos vivendo, precisa ser relembrado: “Não há que reduzir a ditadura a um simples exercício de um poder arbitrário de uns sobre os demais. A ditadura está na própria anatomia da sociedade civil, nas relações sociais de produção. A ditadura do capital sobre o trabalho logra o seu máximo objetivo: como alcançar altas taxas de crescimento econômico com a elevação da produtividade e a diminuição politicamente forjada do valor da força de trabalho. Os operários a explicaram com uma simples expressão: a política do arrocho salarial”.[xiii]

Adiantando um apontamento que exigiria uma reflexão mais extensa, seria possível dizer que o neoliberalismo desregulador da Europa e EUA se realiza na ditadura brasileira por meio de uma espécie de neoliberalismo de servidão[xiv], herdeiro da conhecida via/forma colonial. Como sabemos, a condição histórica de exportador de matéria prima desdobra no Brasil do século XX uma dinâmica particular de adaptação sistêmica do trabalho escravo em assalariamento. O neoliberalismo de servidão concentra no Estado a mediação das inter-relações entre o grande capital internacional e a burguesia nacional. No nível internacional, a privatização, destituição do Estado como agente econômico com privilégios, cortes de gastos públicos e desburocratização nos locais em que os processos contínuos de formação dos centros financeiros do capital (atração de capitais regulamentada por um sistema de crédito que garante certa estabilidade de reprodução), na Europa e EUA essencialmente, permitiu uma concentração específica do capital no Brasil, um processo de concentração dos meios de produção e de comando mais ordenado sobre o trabalho exportado para fora das fronteiras da Europa e EUA.

Sobre esse aspecto é importante atentar para algo fundamental, muitas vezes deixado de lado por muitas absolutizações histórico-sociológicas da complexa problemática da expansão/acumulação da relação-capital: a concorrência e centralização compõe-se por uma espécie de necessidade relativa, enquanto processos, ao mesmo tempo, autônomos e condicionados: “Na medida [Maß] em que se desenvolve a produção e acumulação capitalista, na mesma medida [Maß] desenvolvem-se concorrência e crédito, as duas mais poderosas alavancas da centralização. Justo a isso, o progresso da acumulação multiplica a matéria centralizável, isto é, os capitais individuais, enquanto a expansão da produção capitalista cria aqui a carência social, acolá os meios técnicos, para aquelas poderosas empresas industriais cuja realização se vincula a uma centralização prévia do capital. Hoje, portanto, a força de atração recíproca dos capitais individuais e a tendência à centralização são mais fortes do que em qualquer ocasião anterior. Mas, embora a expansão relativa e o ímpeto do movimento centralizador sejam determinados até certo ponto pela grandeza já atingida da riqueza capitalista e pela superioridade do mecanismo econômico, o progresso da centralização não depende, de nenhum modo, do crescimento positivo da grandeza do capital social. E especialmente isso diferencia a centralização da concentração, que é apenas outra expressão para a reprodução em escala ampliada. A centralização pode ocorrer por meio de mera mudança da distribuição de capitais já existentes, mediante mudança simples do agrupamento quantitativo dos componentes do capital social. O capital pode crescer aqui numa mão até formar massas grandiosas, porque lá ele é privado (entzogen) de muitas mãos individuais” (MEW 23, p.655).

Não resta dúvida que compreender o capital como uma medida [Maß] – qualitativamente como processo de acumulação, de produção de mais-valia (na aparência como produção de mercadorias socialmente necessárias) e reprodução da força de trabalho com finalidade de valorizar o capital (na aparência como parte necessária e equivalente do tempo de trabalho socialmente necessário para produzir mercadorias socialmente necessárias) – implica apreender o movimento da reprodução ampliada de muitos capitais individuais que concentram o controle de produção de mais valor, na mesma medida em que a centralização proporcionada pelo sistema de crédito permite, por exemplo, deslocamentos sistemicamente arbitrários de massas de dinheiro, enquanto capital, de outros ramos, adiantamento ficcional dos ciclos de reprodução que garantem a estabilidade de um mais-valor fictício (projetado para o futuro) de um ou mais ciclos reprodutivos, podendo garantir o lucro abaixo da produtividade quando necessário ou um investimento de um capital adiantado para elevação tecnológica da composição técnica do capital.

A concorrência capitalista, “livre”, sempre foi o mesmo do outro lado da monopolização capitalista. Detentor do poder, o capitalista, enquanto personificação do processo de acumulação, pode atuar como se exercesse um controle racional do futuro relativamente descolado de seu movimento interno. Aqui a crítica de Chesnais (La Mondialisation du capital, 1994) ao elemento político do regime de acumulação com dominância financeira – ainda que possamos discutir a validade dos conceitos, “regime de acumulação” e “modo de regulação” – ganha contornos mais claros, afinal permite entender como dentro dessa figuração interna da concorrência, o capitalista acionista pode influenciar não apenas na distribuição de capitais, mas também alterar diretamente a organização do processo produtivo: “O que Chesnais destaca como inédito é o protagonismo que a propriedade e o rentismo assumiram, bem como o alojamento dessa posição de exterioridade à produção no seio da própria produção. Assim, a patologia congênita do capitalismo assentada na contradição entre capital e trabalho combina-se agora com as contradições que se originam da centralidade da finança: de um lado, a acumulação é lenta e, de outro, a finança é insaciável no nível de suas punções”.[xv]

O neoliberalismo regulador e o de servidão são dois lados da mesma moeda. Apesar de bastante conhecida, vale lembrar, essa relação implica a integração do capital global e de sua regulamentação internacional. A complexidade da dinâmica das relações de distribuição da mais-valia, mostra como a própria efetivação da relação-capital no âmbito global, não importa o período, permite singulares “perversões” no seu modo de realização. No caso do Estado burguês brasileiro, que somente com a ditadura ganha sua forma mais acabada, estar subordinado aos desígnios do tio Sam é regra. A saída da ditadura e o processo de redemocratização coincidem, não por acaso, com a segunda fase do neoliberalismo, atingindo seu auge a partir do primeiro governo Lula, momento em que se consolida no Brasil mais uma aberração capitalista: o “keynesianismo privatizado” e privatizante.

No “neoliberalismo progressista” o Estado precisa voltar a atuar de modo mais regulativo do que na fase anterior, não para garantir direitos sociais ou assegurar um interesse comum, mas para integrar o indivíduo cada vez mais ao modo de produção capitalista, aumentar sua aparência de naturalidade e espontaneidade. A particularidade dessa integração depende, evidentemente, do papel que um país ocupa na reprodução global do capital. Como se essa “nova” “simbiose” entre trabalhador e processo produtivo expressasse uma unidade anterior: “Os indivíduos devem assegurar-se da própria competitividade e manter a sua employability por iniciativa própria. Assim devem monitorar o “portfólio” de suas competências e mantê-los em alto nível, mostrar-se flexíveis para novas exigências; elaborar, avaliar, e otimizar a própria capacidade e agir com responsabilidade própria”.[xvi]

Considerando essa segunda fase do neoliberalismo, um aspecto importante do que se desenhou foi justamente um arranjo sistêmico de “reestruturação produtiva global”. [xvii] A retomada neoliberal do toyotismo dos anos 1930 no final da década de 1980 pelo o just-in-time-production ou lean-production, mencionado por Demirović, expressa esse movimento. No lean-production, em geral, visa-se aumentar a produtividade por meio de métodos de produção que, entre outras finalidades, buscam integrar cada vez mais o trabalhador ao processo produtivo, otimizando o espaço de trabalho pela qualificação dos trabalhadores em menor número, aumentando a fluidez da introdução de novas tecnologias, etc. De um modo sucinto: trata-se da busca de um ponto máximo de racionalização do processo de produção da mais-valia relativa.

A grande crise do fordismo e do Welfare State, é expressão da dinâmica de autorreprodução do capital social mundial que se reflexiona pelo alto da aparência da concorrência capitalista, pelo direcionamento das relações de valorização e desvalorização: é isso que significa restabelecer a governabilidade das democracias. O fato de um trabalhador assalariado, em plena estagnação de crescimento da economia – entenda-se: acumulação do capital em níveis menores do que esperado -, ter acesso gratuito à saúde, além de tirar o dinheiro de circulação de um possível ramo, influencia na diminuição da composição orgânica do capital, implica um limite interno a ser superado pela própria lógica do capital manifesto pela concorrência capitalista.

As armas de superação são variadas, mas todas se constroem sob um chão comum, que não é novo: direcionar a consciência de classe para fora da classe trabalhadora,[xviii] dissolver o antagonismo de classe – a distorção [Verkehrung] sistêmica entre capital e trabalho – em personificações atomizadas, individuais, da relação-capital. O individualismo e egoísmo, cada vez mais naturalizados e mundializados na era neoliberal, não são meros produtos de uma perversão [Verkehrung] psicológica ou moral, mas de uma necessidade sistêmica.

 

A dialética produção-distribuição entre catástrofes

A crise estrutural (Meszáros, Mandel) que articula o pós-guerra do século XX, como amplamente conhecido, estabelece, na sua gênese, o deslocamento da “pátria” da lógica burguesa,[xix] a Europa ocidental, em direção ao imperialismo norte-americano. Entre Hiroshima e Nagasaki e a guerra do golfo de 1991, o centro de gravidade que movimenta a indissociabilidade – sistêmica, não contingente! – entre política, economia e guerra que caracteriza a “maquinação de acumulação” [xx] capitalista é o mesmo. Tomando a clássica frase de Clausewitz: se “a guerra nada mais é do que a continuação da política do Estado [die fortgesetzte Staatspolitik][xxi] por outros meios”, é possível afirmar, como já indicado, que a segunda guerra mundial nada mais foi do que a realização da concorrência capitalista por outros meios. Uma analogia que se ratifica ao considerarmos que, apesar das diferenças específicas, a ilusão da concorrência e da política compõe o mesmo movimento da ilusão do modo de produção capitalista.

Esses elementos são importantes para entendermos o desdobramento da segunda tese defendida por Demirović. O período de tomada de poder da extrema direita e suas várias representações com a crise que eclode nos EUA em 2008 não representa o fim de uma conjuntura que expressa um novo sentimento de insatisfação presente em todas as camadas sociais, acentuada na indeterminada classe média, com a política e com suas insuficiências administrativas.

Pelo contrário, o movimento que estamos vivendo indica um processo de reorganização e tentativa de manutenção dessa mesma lógica, ou como o próprio título indica, uma estratégia neoliberal de superação/dominação [Bewältigung] das crises. O caráter sistêmico da expansão da relação-capital, muitas vezes assumido como um a priori por certos “marxismos”, perdendo assim sua complexa especificidade, não pode ser confundido com uma metafísica da expansão do poder em si mesmo, como se o domínio do homem sobre o homem tendesse sempre, em qualquer época e qualquer sociedade, à expansão!

Nesse sentido, é preciso ter em mente como, apesar das contingências imanentes ao caráter expansivo e sempre constitutivo do mundo burguês, a multiplicidade de causas aparentemente diversas expressam o mesmo processo. Por exemplo: a transformação da crise de representatividade em um resultado exclusivo e causal de supostas ineficácias políticas, administrativas, isto é, de escolhas subjetivas de indivíduos no poder e da alteração da consciência dos que não estão no poder (essa cisão já é em si mesma uma falácia!), travando sua compreensão como um processo inerente à incapacidade da lógica burguesa de eliminar a pobreza, a desigualdade e a miséria – fraseologia que une a conjuntura do Welfare State e do neoliberalismo.

Mesmo que a “falta de liberdade democrática confortável, tranquila, razoável que prevalece na civilização industrial avançada”, sinal do “progresso técnico”, da predominância da racionalidade tecnológica, como acentua Marcuse, possa ser considerado um elemento de determinada alteração da autorreflexividade da relação capital-trabalho, não significa que o núcleo de reflexividade tenha sido, em si mesmo, alterado, ou que a forma de dominação tenha sofrido uma mutação qualitativa, afinal a camada de realidade que serve de base para representações estabelece cotidianamente falsos parâmetros e construtos baseados em pontos de referências impostos pelas determinações práticas que reproduzem as relações de produção.

Um exemplo histórico bastante ilustrativo, que aponta para uma dinâmica interna dessa sempre reposta crise de representatividade política, é o efeito estrutural complexo do entre guerras e da crise de 1929 na formação das representações cotidianas, por exemplo na Alemanha, da massa que forma a força de trabalho, dividida essencialmente em “trabalhadores [Arbeiter], os que “estão do lado de fora das fábricas” e empregados [Angestellten], “os que habitam nas lojas, escritórios, ruas da própria cidade grande”.[xxii]

Ao repercutir o quadro da crise na “cidade grande” da Alemanha dos anos 1920 em uma resenha ao livro de Siegfried Kracauer de 1929 (Os empregados), Bloch chama atenção para os nuances na formação de uma consciência de classe. Sem tratar aqui as diferenças sociológicas, por assim dizer, entre “trabalhador” e “empregado”, e problematizar a redução do trabalhador ao proletário de fábrica, é bastante evidente que ambos compõem, como assalariados, a mesma camada social de agentes históricos obrigados a vender força de trabalho. Ainda que Kracauer e Bloch indiquem que os últimos estão mais inclinados a confundir a hierarquia das empresas com uma supostamente espontânea-natural hierarquia de mundo, principalmente nos momentos que essa “naturalidade” se movimenta na crise dando a impressão de estar viva e também devorar mesmo aqueles que se curvam diante da “religião da vida cotidiana”.

A vinculação dessa nova classe média burguesa[xxiii] à ascensão nazista não decorre, portanto – de forma alguma – de um elemento externo, de uma particularidade do ethos de um povo, pelo contrário, ela é expressão dos impulsos espontâneos das determinações práticas das relações de produção. O ethos do povo é articulado como meio de canalizar as representações cotidianas na medida da historicidade particular da formação das relações de produção na Alemanha dos anos 1920.

Mais de meio século após essa convulsão europeia, a disputa de hegemonia do mundo com o desmembramento da União Soviética e a ascensão meteórica da China como uma potência mundial desde meados de 1990 desenha um cenário que aparece como novo, porém movimenta a mesma essência da relação-capital. Nesse sentido, buscando reabilitar essa ideia de que o populismo autoritário – aperfeiçoado há mais de 30 anos dentro do EUA – é expressão de uma ruptura interna de redirecionamento da burguesia mundial, saindo dos textos de Demirović, apresentarei uma pequena digressão teórica para que possamos entender como a burguesia, ou a complexa estrutura que compõe a classe dos capitalistas, consegue determinar direcionamentos estratégicos sempre mais eficientes, já que o princípio de dominação, por mais que no mundo burguês todas as formas de governo possam remeter a momentos anteriores a ele, segue uma lógica de autoridade própria em que a dominação social, pode aparecer como desvinculada da “dominação política ou teocrática”[xxiv]. O efeito principal não é uma novidade e já há muito explicitado por diversas tradições críticas derivadas de Marx e comprovado pela luta de classes do século XX: o antagonismo social não pode aparecer como constitutivo de sociabilidade.

Em termos estruturais, um dos principais aspectos da magia da “mão invisível” – que, como indicado, sempre expressa dois lados da mesma moeda, como “livre” concorrência, por um lado, e como concentração/centralização (monopólio), por outro – é justamente o processo de distribuição da mais-valia produzida pela totalidade do capital social entre os capitalistas individuais. Dimensão que repercute na clássica explicitação de Marx de como, no devir do mundo mercantil medieval em mundo burguês, a visibilidade histórico-sistêmica da formação do valor como mais-valor e lucro, e da força de trabalho como trabalho assalariado e salário, torna-se invisível na distribuição propriamente capitalista, quando o lucro é naturalizado como motor de sociabilidade e o trabalho assalariado como fator de “humanização”.

Se voltarmos à conhecida introdução dos Grundrisse, é possível encontrar o prelúdio de uma crítica importante a conceitos básicos da economia clássica: produção, consumo e distribuição. A impossibilidade de separá-los enquanto um todo orgânico articula-se com a necessidade sistêmica de uma autonomia relativa de cada uma dessas relações. A universalização e naturalização da produção capitalista como reflexo de instintos naturais-civilizatórios da humanidade é associada aos processos da distribuição enquanto resultado de momentos históricos de organização das sociedades. O alvo de Marx é a confusão apologético-científica da economia clássica – sempre por ele criticada – que, a partir da gradação de produtividades dos povos, estabelece o “cume” [Höhe] de um “povo industrial” como o “cume” da história.[xxv]

A consciência-de-si burguesa é indissociável de sua auto-distorção histórica, aspecto mais que evidente já para o jovem Marx.28 A história dos vencedores enquanto medida – pressuposta e velada – da história dos vencidos. A parte geral dos livros de Economia (Marx tem em vista Mill e Smith nessa passagem) introduz as “condições universais” de toda e qualquer produção como prova do progresso do presente. “Para os economistas”, acrescenta, “nessa parte geral/universal não se trata apenas disso. A produção, antes de tudo, deve ser – veja, por exemplo, Mill – diferentemente da distribuição etc., apresentada como incrustada [eingefaßt] nas leis naturais eternas, independentes da história, oportunidade na qual as relações burguesas são, in abstracto, empurradas por debaixo do pano como leis da natureza irrefutáveis. Na distribuição, em sentido contrário, os homens devem ter se permitido, de fato, todo tipo de arbítrio”.[xxvi]

A distribuição seria resultado de fatores externos ao processo histórico, elementos pré-econômicos, portanto, determinantes a priori da produção. À distribuição corresponderia a divisão e repartição da terra, distribuição do salário e lucro, à produção, respectivamente, terra, trabalho e capital. A luta e desenvolvimento histórico organizariam a distribuição e determinariam a produção, como se um modo de produção já nascesse historicamente legitimado. “Caso se considere as sociedades como um todo, a distribuição parece ainda, por outro lado, preceder à produção e determina-la; como se fosse um fato pré-econômico [anteökonomisches fact]. Um povo conquistador divide a terra entre os conquistadores e impõe assim uma forma e divisão determinada da propriedade fundiária; determina, consequentemente, a produção. Ou faz dos conquistados escravos e assim torna o trabalho escravo fundamento da produção. Ou, um povo, por meio da revolução, despedaça a grande propriedade de terra em parcelas; confere assim à produção, por meio dessa nova distribuição, um novo caráter. Ou a legislação perpetua a propriedade fundiária em certas famílias ou divide o trabalho [como] privilégio hereditário e o fixa em castas. Em todos esses casos, e eles são todos históricos, a distribuição não parece articulada e determinada pela produção, mas, ao contrário, a produção aparece articulada e determinada pela distribuição”.30

Como indicado, Marx afasta qualquer cisão entre distribuição e produção, demonstra inclusive a funcionalidade sistêmica dessa separação e como a relação histórica entre distribuição e produção necessariamente compõe um mesmo movimento indissociável.31 Mas desse ponto, dando um salto para os manuscritos que compõe o livro III de O capital, o processo de distribuição, em uma dimensão diversa da crítica da introdução aos Grundrisse, ganha um novo lugar sistêmico, tanto na exposição de Marx quanto no desenvolvimento histórico do mundo burguês,32isto é, no devir interno da relação-capital.

A distribuição é – considerando essa origem na inter-relação distribuição/produção particular aos diversos modos de produção anteriores ao modo de produção capitalista – internalizada por um movimento historicamente inédito, por meio do qual a concorrência especificamente capitalista produz um “centro de gravitação” arbitrário para determinar os deslocamentos e mobilidade de expansão e determinação das relações de produção.

O processo de “equalização/compensação” [Ausgleichung], muito mais do que apenas determinar a taxa de lucro entre os ramos de produção, de constituir um mecanismo social de determinação dos preços por uma mera relação entre oferta e demanda ou, na essência, de distribuição da mais-valia,33 pode ser considerado como a potência sistêmica que particulariza a forma do elemento político burguês, momento em que na reprodução total o modo de produção capitalista consegue garantir o exercício do arbítrio pela classe dos capitalistas. A exposição dessa questão ultrapassa os limites aqui propostos, importa apenas reter que o arbítrio, antes considerado fator da contingência histórica – “na distribuição, em sentido contrário, os homens devem ter se permitido, de fato, todo tipo de arbítrio” –, sem perder esse caráter, passa agora a operar no interior do processo de concorrência entre os capitalistas, como um elemento de racionalização da competição entre capitalistas, que agora movem e direcionam a história, mas em um espaço de deslocamento próprio.

Não se trata, certamente, de problematizar a sempre reposta questão da relação entre política e economia, ou da organização explicativa crítica da falta da possibilidade de se entender por um desdobramento interno – mesmo que histórico – as relações jurídicas, como “formas do Estado”, “A análise cientifica do modo de produção capitalista demonstra, pelo contrário, que ele é um modo de produção de tipo característico, que pertence a uma determinidade [Bestimmtheit] histórica específica, o qual, como qualquer outro modo de produção determinado, pressupõe um grau dado das forças sociais produtivas e de suas formas de desenvolvimento enquanto sua condição histórica [.] Uma condição que é, ela mesma, o resultado e o produto histórico de um processo anterior e do qual parte o novo modo de produção enquanto fundamento dado; de tal modo que as relações de produção correspondentes a esse modo de produção específico, isto é, historicamente determinado – relações que os homens contraem em seu processo de vida social, ou seja, na criação de sua vida social -, têm um caráter específico, histórico e transitório; e que, finalmente, as assim chamadas relações de distribuição são essencialmente idênticas a essas relações de produção, sendo um lado torcido [Kehrseite] delas, de modo tal que ambas partilham o mesmo caráter historicamente transitório.” (MEGA II 4.2, p.895).

Uma das questões principais da obra de Marx, isto é, da crítica do mundo burguês e seu desenvolvimento histórico, passa por entender, antes de tudo, que a relação-capital não é uma entidade metafisica que opera segundo um autômato insuperável, ora representado como o Estado, ora como História, ora como alguma forma de direcionamento transcendente do mundo. Não se trata, é sempre importante lembrar, da crítica que considera os simulacros de libertação que o cotidiano oferece, seja sob a regência das diferenças entre as classes sociais, ou sob uma suposta pluralidade dos interesses “individuais”, como um mero problema sociológico, político ou filosófico. Pelo contrário, a relação-capital é composta por uma dinâmica complexa que, apesar de múltipla, constitui um centro de gravidade concreto que sempre retroalimenta ou oxigena suas diversas representações sociológicas, políticas e filosóficas.

A grande conjuntura neoliberal, pautada pela equalização que a concorrência capitalista impõe no período, é, antes de tudo, a explicitação da progressão dos mecanismos de controle dos antagonismos sociais constitutivos da política burguesa. Mecanismos que são tão antigos quanto a dinâmica de equalização é imanente ao modo de produção capitalista. A alteração das formas de controle, das “situações [Zustände] do modo de produção capitalista”, não implica a mudança de suas condições, mas às avessas. A expressão das articulações de manutenção das condições é ressaltada por Marx em uma passagem que poderia ser transcrita literalmente para elucidar a dinâmica de dominação neoliberal, não apenas sua “fase liberal” normalmente restrita ao século XIX: “O capital alcança uma estabilidade dessa equalização, em maior ou menor grau, quanto maior for o desenvolvimento capitalista em uma dada sociedade nacional; isto é, quanto mais em um país estiverem adequadas as situações [Zustände] do modo de produção capitalista. Com o avanço do modo de produção capitalista, suas condições [Bedingungen] também se desenvolvem, ou ele submete o todo às condições sociais no interior das quais o processo de produção avança em relação a si mesmo, ao seu caráter específico e às suas leis imanentes. A contínua equalização [Ausgleichung – compensação] das contínuas desigualdades [Ungleichheiten] realizam-se mais rapidamente: (1) quanto mais móvel for o capital, isto é, quanto mais facilmente puder ser transferido de uma esfera para outra; nisto está incluída também a mobilidade espacial; (2) quanto mais rapidamente o trabalho puder ser lançado de uma esfera para outra e de um local de produção para outro.

O item (1) pressupõe completa liberdade de comércio (free trade) no interior da sociedade e eliminação de todos os monopólios, exceto os naturais, isto é, decorrentes do próprio modo de produção capitalista. E ainda mais: desenvolvimento do sistema de crédito, que concentra o capital social flutuante (floating) como massa inorgânica do capital social diante dos capitalistas individuais; subordinação das diversas esferas da produção sob capitalistas, (isso incluído no pressuposto, se for assumido, de que se trata da transformação de valores em preços de produção em todas as esferas de produção exploradas de modo capitalista; no entanto, esta própria equalização encontra maiores obstáculos se numerosas e massivas esferas de produção não operadas de modo capitalista se interpõem e se entrelaçam nas novas esferas operadas de modo capitalista.) Certa densidade da população.

No item (2) a superação [Aufhebung] de todas as leis que impedem os trabalhadores de migrarem de uma esfera da produção para outra ou de uma local de assentamento de produção para outro qualquer. Indiferença do trabalhador diante do conteúdo de seu trabalho. Redução máxima possível do trabalho em todas as esferas da produção a trabalho simples. Eliminação de todos os preconceitos profissionais. Sobretudo, submissão do trabalhador ao modo de produção capitalista, etc. detalhes adicionais ultrapassam nossos limites, já que devem ser desenvolvidos em um tratado “Sobre a concorrência”.[xxvii]

Ao contrário do que supõe a clássica leitura de Pollock [State Capitalism: Its Possibilities and Limitations, 1941][xxviii] em relação à primazia do político sobre o econômico na fase do assim chamado capitalismo de Estado, a equalização não é uma “lei” particular à economia de mercado ou uma resposta à intervenção do Estado na economia, seja na forma nazifascista de um capitalismo de Estado ou no Welfare State pós-guerra. Assim como o mercado especificamente capitalista, para além da circulação mercantil, pressupõe algum grau de concorrência, o elemento político especificamente burguês, pressupõe a “equalização” enquanto o centro de pulsão da subjetividade do “sujeito automático”[xxix], do valor que se valoriza, como movimento da autorreflexividade da consciência de si da individualidade do capitalista. Partindo concretamente da contingência, da “falta” de previsibilidade controlada do mercado, que parece inserir e igualar a todos enquanto possuidores de mercadorias no acaso do vir a ser da história, no qual a desigualdade, mantida como um “plano de Deus” pelo nascimento – afinal como se diz, ninguém escolhe se nasce rico ou pobre! – é compensada pelo “arbítrio” da concorrência enquanto motor aparente da história, enquanto ilusão da potência universal do arbítrio.

Entre sucessivas catástrofes – da naturalização do fascínio da acumulação inerente à violência do sistema colonial, pressuposto constitutivo do modo de produção capitalista, até a apatia apoteótica da pandemia de 2020 que aparece, por sua vez, como se fosse um acaso externo ao processo global de produção [xxx]– as “condições sociais no interior das quais o processo de produção avança em relação a si mesmo” são pervertidas cotidianamente enquanto “situações” aleatórias, aparentemente alheias, e são mistificadas como algo em si. E aqui sem desdobrar com a devida seriedade que os textos de Marx exigem essa sutil diferença entre “condição” e “situação”, é importante deixar claro que, enquanto “um sujeito automático” [ein automatischer Subjekt], isto é, como movimento de reposição de seus pressupostos pelos ciclos de acumulação, o capital não reproduz imediatamente as vontades de seus membros, mas reproduz a si mesmo condicionando a vontade de indivíduos e grupos à sua reprodução. Esse aspecto, bastante conhecido sob diversas abordagens nos marxismos, é fundamental para apreender o elemento político burguês: este não se forma por um mero reflexo do modo de produção capitalista ou por algum tipo de processo ideológico superestrutural adaptativo, tampouco pode ser explicado unicamente pelos rastros históricos da relação free (slave) trade / (european) free will constitutiva do liberalismo moderno, desde sempre autoritário[xxxi]; pelo contrário, é a própria autorreprodução do capital que abstrai o elemento político.

E abstrair aqui não significa simplesmente derivar algo do real, conformar uma representação falsa ou verdadeira, mas expressa o movimento que traciona para fora um momento interno a si mesmo: “A contínua equalização” [..]

“das contínuas desigualdades”, ou seja, a reposição do arbítrio em um nível sistêmico “supera” (naturaliza e neutraliza) seu caráter individual entre os capitalistas que, ao realizarem “livremente” seu arbítrio, pensam estar seguindo a autoridade de uma necessidade comum, universal: “Enquanto, na base da produção capitalista, à massa dos produtores imediatos se contrapõe o caráter social de sua produção na forma de uma autoridade estritamente reguladora e de um mecanismo social do processo de trabalho e uma hierarquia completamente articulada – autoridade esta que, contudo, só recai em seus portadores como personificação das condições de trabalho diante do trabalho e não, como em formas anteriores de produção, como dominadores políticos ou teocráticos –, entre os portadores [Lenker] dessa autoridade, os próprios capitalistas, que só se defrontam como possuidores de mercadorias, reina a mais completa anarquia, no interior da qual o vínculo social da produção apenas se torna válido [geltend machen] como lei natural preponderante [übermächtig] em relação à arbitrariedade individual”. [xxxii]

A validação do vínculo social da produção como lei da natureza aparece como negação do arbítrio. Uma “negação” específica, já que o processo de validação nega realizando o vínculo sob outra forma, isto é, o potencializa através [über-mächtig] do arbítrio da individualidade capitalista que, na base do modo de produção, é a personificação da “condição de trabalho” – uma autoridade que não é a personificação do transcendente (“dominadores políticos e teocráticos”), mas da necessidade transcendental constituída pela historicidade da formação do processo de trabalho. Um movimento complexo que conflui uma relação que desdobra uma camada histórico-espacial organizadora e reprodutora da totalidade da vida social, incluindo os fluxos de formação das vontades e interesses.[xxxiii]

*Vinícius Matteucci de Andrade Lopes é doutorando em filosofia na USP.

 

Referência


Alex Demirović. Crise do capital e fim da política: populismo autoritário, neoliberalismo e democracia de conselhos. Tradução Isabelle Sanders & Vinícius Matteucci de Andrade Lopes. Goiânia, Editora Phillos Academy, 2021. Disponível em: https://phillosacademy.com/crisedocapitalefimdapoliticapopulismoautoritarioneoliberalismoedemocraciadeconselhos

 

Notas


[i] Dilma, Temer e Bolsonaro: crise, ruptura e tendências na política brasileira. [recurso digital] / Armando Boito Jr.. Coleção Párias Ideias: Orgs. Antônio Camêlo; Virgínio Gouveia. – Goiânia-GO: Editora Phillos Academy, 2020.

[ii] Marx trabalha essas diferenças no livro III de O Capital (MEW 25, MEGA II 4.2 ).

[iii] GROZIER, M. J.; HUNTINGTON, S. P.; WATANUKI, J. The Crisis of Democracy: Report on the Governability of Democracies to the Trilateral Commission. New York University Press, 1975.

[iv] KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Martins Fontes, 2011

[v] Processo mediado por todos os lados pela geopolítica da guerra fria.

[vi] MARCUSE, H. One-Dimensional Man. Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society. (1964).

[vii] O conceito aparece pela primeira vez em um ensaio de Hilferding publicado na revista do órgão teórico dos socialistas austríacos, “Der Kampf” (1915), “Arbeitsgemeinschaft der Klassen?”. Cfr. Organisierter Kapitalismus. Voraussetzungen und Anfänge. Hrsg. Heinrich August Winkler. Götttingen.Vandenhoeck. Ruprecht, 1974.

[viii] DEMIROVIĆ, Alex e SABLOWSKI, Thomas. A crise na Europa e o regime de acumulação com dominância financeira. Trad.:Kristina Michahelles e Simone Goncalves. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2015, p. 32 / Finanzdominierte Akkumulation und die Krise in Europa., 2012. (disponível em: https://www.rosalux.de)

[ix] Evidentemente não há concorrência capitalista sem o antagonismo capital-trabalho e a conjuntura é mais complexa em termos de arranjo da correlação de forças no entre guerras, considerando a pequena história que leva à eclosão da Segunda Guerra: o papel da socialdemocracia como defensora do parlamentarismo representativo e do Estado; a distorcida oposição entre mundo liberal e formas de vida autocráticas burguesas, que revela, na realidade, uma passagem de desenvolvimento interno do mundo liberal; o papel dos efeitos revolução bolchevique na auto-reflexividade do modo de funcionamento da relação política/econômica, etc. A simplificação que adotamos serve para que não se perca de vista a macroestrutura do movimento da história no interior do devir da relação-capital, principalmente a partir da era da catástrofe.

[x] HOBSBAWN, Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad.: Marcos Santarrita: São Paulo: Companhia das Letras. 1995.p. 223 e ss. 12 Sem generalizar enquanto formula, a questão da “forma mais abstrata da crise”, que normalmente, aparece na unidade contraditória entre valor de uso e de troca, ou entre “desenvolvimento das forças produtivas e caráter limitado do consumo” (REICHELT, H. Zur logischen Struktur des Kapitalsbegriff, Europäische Verlagsanstalt, Frankfurt am Main,

1971, p. 188). “Possibilidade universal [allgemeine], abstrata da crise – significa nada mais do que a forma mais abstrata da crise, sem o conteúdo, sem um motivo capaz de preencher o conteúdo da mesma. Compra e venda podem se separar. Elas são enquanto crise potentia, e sua coincidência permanece sempre um momento crítico para a mercadoria. Elas podem, porém, converter-se uma na outra de modo fluido. Se mantém como um momento crítico, portanto, de tal modo que a forma mais abstrata da crise (e assim a possibilidade formal da crise) é a própria metamorfose da mercadoria que contém, apenas como movimento desenvolvido, a contradição, encerrada na unidade da mercadoria, entre valor de uso e valor de troca, e consequentemente entre dinheiro e mercadoria.” (MEW 26.2, p. 510)

[xi] Cf. À espera da verdade. Empresários, juristas e eleite transacional. Histórias de civis que fizerama ditadura militar. MOTELEONE, J. [Et. alii]. São Paulo. Alameda Editorial, 2016.

[xii] “Estas alterações constituem, na verdade, um desdobramento de tendências que têm sua origem na reorganização do capitalismo em escala mundial, sob a hegemonia dos Estados Unidos, após a segunda guerra mundial. Com os acordos de Bretton Woods, em 1945, o capitalismo mundial foi dotado de uma série de órgãos e instituições, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT), que permitiram a gradual liberalização das trocas internacionais, da qual resultou intensa expansão do comércio internacional. Numa primeira fase, esta expansão se deu sobretudo entre os países capitalistas adiantados, desdobrando-se, a partir da década de 60, numa gradual abertura dos mercados destes países às exportações

de manufaturas de países menos industrializados.” (SINGER, Paul – A Crise do “Milagre”.7ª Edição. RJ: Paz e Terra,

1982, 89-90, Apud RAGO, ANTONIO. A ideologia 64: os gestores do capital atrófico, pp. 358 e 359.)

[xiii] RAGO, ANTONIO. A ideologia 64: os gestores do capital atrófico, São Paulo: Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1998, p. 362.

[xiv] A utopia de uma capitalismo brasileiro autônomo foi levada abaixo pelo golpe de 1964: “A internacionalização da economia completou e aprofundou sua subsunção econômica, conferindo-lhe os limites de sua acumulação industrial, que se concretizou na distorção e na incompletude, determinando a total e definitiva impossibilidade de qualquer fantasia quanto à autonomização do sistema capitalista nacional.” (CHASIN. J. “Hasta cuando”? A propósito das eleições de novembro. In: Ensaio n. 10, São Paulo, 1982)

[xv] PAULANI, L. M. “A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil”. In: Estudos Avançados 23 (66), 2009, pp.27-8: “Quando se fala em dominância da valorização financeira, isso não significa que a valorização financeira seja quantitativamente mais importante que a valorização produtiva, ainda que, como veremos adiante, a riqueza financeira venha crescendo exponencialmente nos últimos 30 anos. A prevalência da valorização financeira é qualitativa mais do que quantitativa. O fato de sua exterioridade em relação à produção ter se alojado no seio mesmo da esfera produtiva é que explica um sem-número de mudanças aí ocorridas, seja na relação de trabalho (crescimento do trabalho precarizado e informal, do número de trabalhadores temporários, autônomos e em tempo parcial etc.), seja na forma de gestão do processo de trabalho (trabalhadores flexíveis, toyotismo), seja ainda na organização do processo produtivo como tal (generalização do just in time, costumeirização da produção, deslocalizações produtivas).”

[xvi] DEMIROVIĆ, Alex. Crise do capital e fim da política: populismo autoritário, neoliberalismo e democracia de conselhos. Trad. Isabelle Sanders/ Vinícius Matteucci de Andrade Lopes. Coleção Párias Ideias – Goiânia-GO: Editora Phillos Academy, 2021, p. 91.

[xvii] SAWAYA, R. Poder econômico, desenvolvimento e neoliberalismo no Brasil. In: Revista da sociedade brasileira de economia política. 39/outubro 2014, p. 130.

[xviii] O antagonismo entre capital e trabalho não para de produzir e reproduzir consciências de classe, adjudicas, imputadas (Lukács) pelo dever de sobrevivência no sistema, delimita-se pela inevitável auto-reflexividade da consciência, não importa em que grau se desenhe, afinal a consciência de classe é imposta, o que justamente impossibilita a espontaneidade de sua mobilização.

[xix] No capitulo 25 do livro I, A teoria moderna da colonização, Marx explicita isso: “Na Europa do oeste/ocidental, a pátria (Heimatland) da economia política, o processo da acumulação originária está mais ou menos realizado”. (MEW 23, p. 792)

[xx] “O [sistema colonial] proclamou a maquinação da acumulação [Plusmacherei] como a última e única finalidade da humanidade”. (MEW 23, p. 782). O Plusmacherei não é simplemente a “produção/extração” do Plus (Marx não usa o termo “valor” em nenhum momento aqui), mas a “maquinação” [Macherei], a ação que age motivada pela cobiça [schielen], pelo fascínio [Macherei – facinus] de acumular, proprocionada pelo estabelecimento do sistema de crédito dos bancos, que emprestam dinheiro ao Estado para transformar a terra a ser colonizada em meio de produção e capital. No fundo, o que Marx está sutilmente indicando aqui, articulando criticamente metáforas religiosas como sempre faz, é que o sistema colonial, a formação dos sistemas de creditos, dos rentistas operando já ao lado e internamente nos Estados absolutistas, é que antes de entender a “cobiça” como um artificio moral-religioso ideal, apreendido como algo em si mesmo, é preciso compreender como se constitui a racionalização concreta da cobiça, isto é, como o fascínio é interiorizado sistemicamente e as formas específicas de cobiça capitalista se constituem. Sobre o termo: MACHEREI, Deutsches Wörterbuch von Jacob Grimm und Wilhelm Grimm, digitalisierte Fassung im Wörterbuchnetz des Trier Center for Digital Humanities, Version 01/21.

[xxi] Não só da “política”, como um conceito geral ou uma relação que se definiria por características internas, mas da “política do Estado”! Vale lembrar que a análise de Clausewitz sobre a “metafisica” da Guerra é escrita logo após as guerras de expansão hegemônica de Napoleão (1792 – 1815), Vom Kriege (primeira edição, 1832). “Além dessa diferença factual existente nas guerras, o ponto de vista necessário na prática precisa ser delimitar de modo exato e claro [:] a guerra nada mais é do que a continuação da política do Estado por outros meios.” [Außer diesem faktisch bestehenden Unterschied in den Kriegen muß noch der ebenfalls praktisch notwendige Gesichtspunkt ausdrücklich und genau

festgestellt werden, daß der Krieg nichts ist als die fortgesetzte Staatspolitik mit anderen Mitteln.]

[xxii] BLOCH, E. Erbschaft dieser Zeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1962, p.34.

[xxiii] “A situação deles também mudou desde a guerra; mas sua consciência não aumentou cinco vezes, a consciência de sua situação está completamente desatualizada. Apesar de salários miseráveis, linhas de produção [laufendem Band], extrema insegurança da existência, medo da velhice, barreiras das camadas “mais altas”, enfim, proletarização de facto, eles ainda se sentem como classe média burguesa. Seu trabalho desolador os torna mais apáticos que rebeldes, as credenciais nutrem uma consciência estamental que não tem nenhuma consciência de classe real por trás dela; assombrada apenas pela exterioridade, sem mais conteúdo, de uma burguesa ausente. Em contraste com o trabalhador, eles são muito remotamente integrados à produção; portanto, as mudanças econômicas são percebidas apenas mais tarde ou levemente compreendidas.” (BLOCH, E. Erbschaft dieser Zeit. Op. cit.)

[xxiv] MEGA II 4.2, 898.

[xxv] MARX, K. Ökonomische Manuskripte 1857/1858 [Grundrisse]. MEW 42.Berlin. Dietz Verlag, 2015, p.22 28 Nos escritos da Ideologia Alemã, por exemplo, essa é uma crítica recorrente.

[xxvi] Grundrisse. MEW 42, p.42 (grifo meu). 30 MEW 42, p. 31. MEW 42, p. 31 e ss.

[xxvii] MEGA II 4.2, p. 269-70.

[xxviii] “A execução do plano é imposta pelo poder estatal de tal modo que nada essencial é deixado ao funcionamento das leis do mercado ou outras “leis” econômicas. Isto pode ser interpretado como uma regra suplementar que declara o princípio segundo o qual todos os problemas econômicos devem ser tratados como se fossem, em última análise, políticos. A criação de uma esfera econômica na qual o Estado não deve intrometer, aspecto essencial para era do capitalismo privado, é essencialmente repudiado” […]“Por exemplo, novos investimentos não fluem mais automaticamente para os campos econômicos onde os maiores lucros são obtidos, pelo contrário, são dirigidos pelo comitê de planejamento. Em consequência, o mecanismo conhecido como equalização da taxa de lucro deixou de funcionar.” (POLLOCK, F. “State Capitalism: Its Possibilities and Limitation”. In: Zeitschrift für Sozialforschung. Hrsg. von Max Horkheimer. Jahrgang 9. 1941, p. 205).

[xxix] O termo “sujeito automático” aparece no livro I d´O Capital no primeiro momento em que trata a transformação do dinheiro em capital na forma de circulação especificamente capitalista. (MARX, K, K I, p. 169)

[xxx] Harvey aponta em seu texto alguns desses vínculos internos: HARVEY. Política anticapitalista em tempo de Covid-19. In: Coronavírus e a            luta de classes. Terra sem amos, 2020, p. 16. Disponível      em: https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/03/coronavc3adrus-e-a-luta-de-classes-tsa.pdf.

[xxxi] LOSURDO, D. Contra-História do liberalismo. 2. Edição. Trad. Giovanni Semeraro. São Paulo: Ideias & Letras, 2006.

[xxxii] (MEGA II 4.2, p. 898, grifei)

[xxxiii] A formação do processo de trabalho enquanto processo de valorização acontece por uma “legitimação” histórica complexa que envolve.

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