Por DANIELE DE PAULA*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Mariana Joffily & Maud Chirio.
1.
Em uma conferência de 1965, intitulada Educação após Auschwitz, Theodor Adorno declarou: “É preciso buscar as raízes nos perseguidores e não nas vítimas… É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos; é preciso revelar tais mecanismos a elas próprias, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos…”. A fala de Theodor Adorno sintetiza um dos objetivos por trás dos estudos sobre perpetradores, área de pesquisa que se desenvolveu com força na Europa após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Nesse contexto, especialistas de diferentes áreas passaram a se interessar pelo perfil e pelas motivações dos sujeitos responsáveis pelo Holocausto, num esforço de compreender melhor a violência que marcou o século XX. Contudo, aos poucos, o interesse pelos perpetradores do regime nazista se deslocou para outros contextos de violência, como o das ditaduras do Cone Sul, inaugurando o chamado “giro ao perpetrador”.
1.
Nesse sentido, o livro recém-lançado de Mariana Joffily e Maud Chirio – Torturadores – pode ser lido como parte dessa tradição de estudos, ainda incipiente no Brasil.
Dividido em oito capítulos, o livro aborda o perfil e a trajetória de agentes repressivos que atuaram na ditadura militar brasileira (1964–1985), lançando luz sobre a escala humana da repressão. Os capítulos, como explicam as autoras na introdução, foram organizados de forma a evidenciar os questionamentos que as guiaram ao longo dos últimos 14 anos de pesquisa.
Sendo assim, o capítulo inicial – Por que se envolveram na repressão? – trata do cotidiano, das práticas e das motivações dos repressores ligados ao DOI-CODI de São Paulo, um dos principais órgãos de tortura e extermínio da ditadura. Já o segundo capítulo – Quem eram? – explora o processo de identificação dos torturadores ao longo dos anos, por meio das listas de denúncia produzidas por presos políticos, pelo projeto Brasil: Nunca Mais e pela Comissão Nacional da Verdade.
O terceiro capítulo – Como foram treinados? – aborda o percurso e a formação desses homens, assim como da influência da Doutrina Francesa e da Doutrina de Segurança Nacional nesse processo. Na mesma direção, o quarto capítulo – Como circulavam? – revela o papel do Brasil, nos anos 1970, na transmissão das doutrinas e práticas repressivas pelo Cone Sul.
O quinto capítulo – Que carreiras desenvolveram? – por sua vez, reconstrói a trajetória de 22 agentes ligados ao DOI-CODI de São Paulo e ao do Rio de Janeiro, evidenciando as estratégias de recrutamento do Exército na constituição do aparelho repressivo. Para tanto, as principais fontes utilizadas foram as folhas de alteração[i] dos agentes estudados, uma documentação extremamente promissora e ainda pouco explorada por pesquisadores.
O sexto capítulo – Como foram expostos à sociedade civil? – aborda os depoimentos dos perpetradores no contexto da Comissão Nacional da Verdade, analisando não só as declarações desses sujeitos, como também o clima das audiências, isto é, o espaço que a Comissão ofereceu aos perpetradores. O sétimo capítulo – Como veem a si mesmos? – efetua um mergulho na subjetividade dos torturadores, ao analisar as declarações do tenente-coronel Paulo Malhães à CEV-RJ e à CNV.
Finalmente, o último capítulo – Quais foram as motivações dos torturadores? – propõe uma agenda de pesquisa para a historiografia brasileira, ao ressaltar a necessidade de mais estudos sobre os perpetradores da ditadura de 1964.
2.
Como destacam as autoras, a maioria dos trabalhos sobre a repressão focou na dimensão estrutural e ideológica da máquina repressiva, deixando os indivíduos que atuaram nesse sistema à margem das análises acadêmicas.
É importante pontuar que a tendência historiográfica de enfatizar as estruturas e o caráter sistemático das violações de direitos humanos era, de certa forma, uma resposta à narrativa militar de que a violência teria sido episódica e fruto dos excessos de alguns indivíduos.
No entanto, como demonstrado pelo livro de Mariana Joffily e Maud Chirio, a atenção aos indivíduos pode ser extremamente importante para uma compreensão mais ampla da violência, sem com isso negar o aspecto estrutural da repressão.
De modo geral, o livro consegue abordar a complexidade dos perpetradores – sem cair na armadilha de legitimar suas ações – e a construção de uma cultura institucional que naturalizava e legitimava a violência praticada por esses indivíduos. Tal abordagem permite refletir sobre diversas questões, como o papel do grupo, da formação profissional e de outros fatores na transformação de um indivíduo “comum” em torturador. Outro aspecto relevante da obra é a sua contribuição para o debate sobre memória e justiça de transição no Brasil.
Ao expor as trajetórias e os discursos de agentes da repressão que, protegidos pela Lei de Anistia (1979), permanecem impunes, o livro convida o leitor a refletir sobre os limites da responsabilização no contexto pós-ditadura e sobre o processo de “heroicização” de alguns desses indivíduos pela extrema direita, como é o caso do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Como destacam Maud e Mariana, “Jair Bolsonaro reforçou esse novo panteão de heróis que propôs à nação, composto, a seus olhos e aos de seu campo, de valorosos ‘combatentes contra o comunismo’, injustamente denunciados como criminosos por uma esquerda mentirosa e revanchista” (CHIRIO; JOFFILY, 2025, p. 13).
Ademais, vale destacar o excelente trabalho realizado pelas autoras no que diz respeito às fontes primárias utilizadas. Por meio de uma ampla e diversificada documentação – folhas de alteração, listas de torturadores, audiências públicas, entrevistas etc. – Maud Chirio e Mariana Joffily conseguiram evidenciar, através de uma metodologia minuciosa, a possibilidade de trabalhar tanto as práticas de violência do Estado, quanto a subjetividade dos perpetradores, mesmo diante das dificuldades impostas pelas fontes e pela escassez de arquivos sobre a repressão.[ii]
Em suma, a obra Torturadores contribui para um conhecimento mais completo e crítico do regime militar brasileiro (1964–1985), reforçando também a importância das políticas de memória, justiça e verdade no país. Em um momento em que o negacionismo histórico e a reabilitação simbólica de figuras ligadas à ditadura ganham espaço no debate público, obras como esta reafirmam o papel fundamental da pesquisa histórica na preservação da democracia e dos direitos humanos.
*Daniele de Paula é mestranda no programa de História Social da USP.
Referência

Mariana Joffily & Maud Chirio. Torturadores: Perfis e trajetórias de agentes da repressão na ditadura militar brasileira. São Paulo: Alameda, 2025, 300 págs. [https://amzn.to/46BLN5p]
[i] As folhas de alteração são documentos administrativos utilizados pelas Forças Armadas brasileiras para registrar as mudanças na carreira de um militar, como promoções, transferências, cursos realizados, punições disciplinares, entre outros eventos relevantes.
[ii] Ainda hoje os arquivos dos principais centros de repressão da ditadura permanecem inacessíveis aos pesquisadores.
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