Nota sobre a educação à distância no Brasil

Imagem: Plato Terentev
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ALEXANDRE MARINHO PIMENTA*

A educação à distância possui uma dimensão de mercantil fundamental

No início de novembro, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou os resultados do último Censo da Educação Superior, referente ao ano de 2021. Os dados do Censo possibilitam um amplo retrato desse nível educacional, sendo assim muito relevantes para o debate sobre os rumos da educação no país.

Dentre as diversas informações e variáveis do Censo 2021, chama a atenção o forte crescimento da educação à distância (EaD). Trata-se de uma questão polêmica desse nível educacional, sobre a qual faremos alguns comentários críticos. Antes de analisar essa modalidade de educação mediada por tecnologias, importante situá-la na dinâmica recente da educação superior brasileira. Ademais, outro caminho interessante é partir da expansão da educação à distância para verificar mudanças tecnológicas em curso também no âmbito presencial, cada vez mais “híbrido”.

 

A expansão da educação superior nos últimos anos

Como demonstra uma vasta literatura, a educação superior no Brasil foi uma construção tardia, comparada inclusive a vários países da América Latina. A configuração sócio-histórica de nosso país também marcou tal nível educacional com profundas desigualdades sociais, regionais, raciais e de gênero. Ao menos desde a ditadura militar, há esforços reformadores da educação superior visando, sobretudo, um formato capaz de atingir um percentual mínimo de população com nível superior e algum patamar de produção científica institucionalizada. Tais esforços foram impulsionados, muitas vezes de forma conflitante e contraditória, tanto por movimentos sociais diversos, quanto por demandas das classes dominantes em prol da acumulação de capital no país.

A mais recente onda de expansão da educação superior se iniciou nos anos 1990 e continuou nos governos do PT, através de várias reformas. Essa expansão fez com que o número de matrículas nos cursos de graduação, dimensão mais significativa desse nível educacional, aumentasse de menos de 2 milhões, em 1991, para mais de 7 milhões, em 2011, segundo dados do Inep. Uma relevante multiplicação do tamanho da educação superior em um intervalo de duas décadas.

Mesmo que as vagas e as instituições públicas tenham crescido nos governos petistas, por exemplo, através do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o setor privado também cresceu fortemente no mesmo período. Chegando inclusive a ampliar sua presença nas matrículas de educação superior: em 2011, a cada quatro matrículas, três eram no setor privado.

Ou seja, essa onda expansionista ocorreu de forma concomitante ao fortalecimento do já significativo setor privado. Isso foi possível através de várias legislações e políticas de fomento, conjuntamente ao próprio crescimento das empresas do ramo, que passaram por um processo intenso de financeirização e oligopolização. Os governos petistas continuaram o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) de Fernando Henrique Cardoso e inauguraram o Programa Universidade para Todos (Prouni). Ambos os programas financiaram de forma abundante o setor privado educacional, direta ou indiretamente, e serviram de base para o desenvolvimento e a lucratividade de tal ramo empresarial.

Essa expansão mais recente começou a dar sinais de esgotamento nos anos de 2015 e 2016. Não à toa, período de profunda recessão econômica e de cortes no gasto público. Em 2015, a educação superior atingiu 8 milhões de matrículas na graduação. Seis anos depois, em 2021, ainda não se tinha alcançado 9 milhões de matrículas, mostrando uma desaceleração importante do crescimento. Mesmo nesses últimos anos de maior estagnação, o setor privado continuou avançando: em 2021, o setor ampliou sua presença para 77% das matrículas de graduação no país. Em relação aos ingressos, o setor privado representava 87%.

Apesar de significativa, a última expansão não foi suficiente para alterar a posição do país no ranking da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Brasil continua bem abaixo da média em termos de percentual da população com nível superior. Também foi suficiente para ampliar a equidade. Algumas desigualdades sociais históricas permaneceram, ao mesmo tempo em que outras ganharam novos formatos e dinâmicas, por exemplo, através de estratificações internas a esse nível educacional. Apesar de vários grupos sociais terem acessado a educação superior pela primeira vez na história, as hierarquias de cursos, modalidades e instituições geraram “excluídos do interior”, para usar o termo de Pierre Bourdieu.

 

A educação à distância hoje no Brasil: dimensão e características

Desde o surgimento e a disseminação das novas tecnologias da informação, a educação à distância se tornou uma realidade em todo o globo, sob diversos formatos e arranjos. Seguindo a tendência mundial, no Brasil, tal modalidade educacional começou a ganhar forte impulso a partir dos anos 2000, integrando várias políticas de expansão do nível superior.

Em 2000, eram apenas 10 cursos de graduação a distância no país, com participação ínfima no quantitativo de matrículas total. Em pouco mais de uma década de crescimento exponencial, em 2012, o número de vagas ofertadas na graduação a distância já tinha passado de 1 milhão, sendo maior do que o número de vagas ofertadas no presencial. Em termos de matrículas efetivadas, o avanço da educação à distância sobre o presencial tem sido mais gradual, mas não menos relevante.

Em 2011, a educação à distância tinha pouco menos de 1 milhão de matrículas, ou 14% do total de matrículas na graduação. Sobretudo após a última onda de expansão da educação superior, a educação à distância avançou ainda mais. Como mostra o recente Censo, a modalidade a distância passou de dois milhões de matrículas em 2018 para quase 3,7 milhões em 2021, atingindo assim 41% do total de matrículas do país.

Em relação aos ingressantes, a educação à distância já é superior ao presencial. Em 2021, 1,4 milhão de estudantes ingressaram na graduação presencial. Número em queda nos últimos anos, importante ressaltar. Já na graduação a distância, foram 2,4 milhões de ingressantes, representando crescimento nos últimos anos. A capilaridade dessa modalidade também impressiona: 2.968 municípios brasileiros contam hoje com polos de educação à distância. Sem dúvida, é possível afirmar que a EaD está consolidada no nível superior brasileiro.

Assim como na educação superior no geral, o setor público não foi o principal motor da recente expansão da educação à distância no país. Mesmo com programas inéditos e de relativo sucesso, como a Universidade Aberta do Brasil, lançada em 2006, as matrículas dessa modalidade representam apenas 6% das matrículas totais na rede federal. O setor privado foi e ainda é o principal motor das matrículas na educação à distância. E de forma muito impressionante: hoje, a educação à distância é amplamente privada e o setor privado é, cada vez mais, educação à distância.

Desde 2005, o setor privado se tornou o setor dominante na educação à distância em termos de matrículas. Paulatinamente, a própria modalidade a distância se tornou dominante na graduação do setor privado, também com o auxílio do financiamento público. No ano de 2021, 51% das matrículas do setor privado estavam na educação à distância. No mesmo ano, 70% dos ingressantes nesse setor foram na modalidade a distância. Todas as 15 maiores instituições ofertantes de educação à distância são privadas, e apenas elas dominam cerca de 74% das matrículas a distância no país.

A impressionante expansão da educação à distância possui, portanto, uma dimensão de mercantil fundamental. O setor privado lucrativo fortaleceu tal modalidade e foi por ela fortalecido no último período. Hoje, tal simbiose talvez seja o fator mais dinâmico do sistema de educação superior do país. No entanto, com questionável qualidade ou retorno econômico para além dos empresários do ramo. Também segundo o Inep, a razão aluno-docente na educação à distância privada chega a 185, enquanto no presencial é de 23, fato que tem possibilitado a redução do quadro docente em tal mercado. Ora, a formação de novos professores da desafiadora educação básica tem ocorrido de forma crescente nesse ambiente de “produtos e serviços educacionais” de qualidade reduzida. Dentre outros limites e contradições dessa suposta democratização.

 

O impacto das novas tecnologias para além da educação à distância

Importante ressaltar, por fim, que as novas tecnologias têm possibilitado transformações na educação superior não apenas através da educação a distância, enquanto modalidade educacional estruturada e reconhecida enquanto tal. Acompanhando as mudanças pelas quais passam a economia, o Estado e a sociabilidade contemporânea, os processos educacionais como um todo são cada vez mais impactados pela virtualização e pela expansão de plataformas digitais.

Não apenas por conta do momento de ensino remoto emergencial da pandemia, no qual a virtualização/plataformização se tornou abruptamente uma realidade, inclusive na educação básica. Mas também antes e para além do pico da pandemia. Os ambientes virtuais de aprendizagem já avançavam como ferramenta didática nos cursos presenciais, antes mesmo da pandemia. Os eventos e as bancas online ou híbridos agora são o novo normal na graduação e na pós-graduação.

O uso das grandes plataformas digitais, cada vez mais especializadas para as práticas educacionais, está presente na construção, troca e armazenagem de informações em todas as instituições de educação superior, formal ou informalmente. E mais recentemente, os últimos desdobramentos da inteligência artificial ameaçam balançar ainda mais o mundo acadêmico. A incrível capacidade de algoritmos de buscar, sistematizar e gerar informações, inclusive com redação acadêmica (só ver o recente ChatGPT, da OpenAI), colocam uma grande incógnita sobre a forma futura do fazer educacional.

Nesse sentido, se podemos dizer hoje de uma consolidação da educação à distância enquanto modalidade de educacional de nível superior no país, ainda pouco podemos dizer da dimensão atual e dos futuros impactos da virtualização e da plataformização da educação no geral. De qualquer forma, cabe a nós nos posicionarmos politicamente frente a tais mudanças e tecnologias que atravessam toda a sociedade contemporânea – talvez esse seja um dos desafios centrais de nosso tempo. Qual tecnologia para qual sociedade?

*Alexandre Marinho Pimenta é doutorando em educação pela UnB.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alexandre de Lima Castro Tranjan Tadeu Valadares Thomas Piketty Benicio Viero Schmidt Yuri Martins-Fontes Berenice Bento Marilena Chauí Samuel Kilsztajn Ricardo Abramovay Milton Pinheiro Paulo Capel Narvai Luiz Eduardo Soares José Micaelson Lacerda Morais Leonardo Boff Fernão Pessoa Ramos Chico Alencar Chico Whitaker Mariarosaria Fabris Jorge Luiz Souto Maior Vladimir Safatle Maria Rita Kehl Kátia Gerab Baggio Gerson Almeida Armando Boito Luiz Carlos Bresser-Pereira Paulo Fernandes Silveira Dennis Oliveira Eliziário Andrade Salem Nasser Igor Felippe Santos Bento Prado Jr. Gilberto Maringoni Otaviano Helene João Carlos Salles Valerio Arcary Bernardo Ricupero Luiz Bernardo Pericás Celso Frederico Antonio Martins Ricardo Fabbrini Remy José Fontana Heraldo Campos Matheus Silveira de Souza João Carlos Loebens Luiz Werneck Vianna João Lanari Bo Marcelo Módolo José Geraldo Couto Walnice Nogueira Galvão Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Anselm Jappe Lorenzo Vitral Ronald Rocha Julian Rodrigues José Raimundo Trindade Flávio R. Kothe Eugênio Bucci José Dirceu Airton Paschoa Marjorie C. Marona Ronaldo Tadeu de Souza Priscila Figueiredo Andrew Korybko Jean Marc Von Der Weid Michael Roberts Rodrigo de Faria José Costa Júnior Alexandre de Freitas Barbosa Denilson Cordeiro Eleutério F. S. Prado André Singer Afrânio Catani Annateresa Fabris Fernando Nogueira da Costa Rafael R. Ioris Fábio Konder Comparato Dênis de Moraes João Paulo Ayub Fonseca Michel Goulart da Silva Manuel Domingos Neto Osvaldo Coggiola Tarso Genro Everaldo de Oliveira Andrade Eleonora Albano Luiz Marques Marilia Pacheco Fiorillo Juarez Guimarães Francisco Pereira de Farias Marcelo Guimarães Lima Sandra Bitencourt Eugênio Trivinho Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Roberto Alves Marcos Aurélio da Silva Plínio de Arruda Sampaio Jr. Jean Pierre Chauvin Flávio Aguiar João Sette Whitaker Ferreira Lincoln Secco Daniel Costa Atilio A. Boron João Adolfo Hansen Michael Löwy João Feres Júnior Caio Bugiato Slavoj Žižek Antônio Sales Rios Neto Bruno Machado Luís Fernando Vitagliano Valerio Arcary Tales Ab'Sáber Lucas Fiaschetti Estevez Érico Andrade Eduardo Borges Carla Teixeira Ari Marcelo Solon Marcus Ianoni Leda Maria Paulani Rubens Pinto Lyra Paulo Sérgio Pinheiro Ladislau Dowbor Daniel Brazil Henry Burnett Mário Maestri Carlos Tautz Francisco Fernandes Ladeira Alexandre Aragão de Albuquerque Marcos Silva Alysson Leandro Mascaro Celso Favaretto André Márcio Neves Soares Leonardo Avritzer Ricardo Antunes Luciano Nascimento Manchetômetro Jorge Branco Andrés del Río José Luís Fiori Antonino Infranca Luiz Renato Martins Luis Felipe Miguel Gabriel Cohn Daniel Afonso da Silva Vanderlei Tenório Vinício Carrilho Martinez Leonardo Sacramento Francisco de Oliveira Barros Júnior Sergio Amadeu da Silveira Ronald León Núñez Renato Dagnino José Machado Moita Neto Paulo Martins Ricardo Musse Liszt Vieira Gilberto Lopes Boaventura de Sousa Santos Henri Acselrad Elias Jabbour Claudio Katz Bruno Fabricio Alcebino da Silva

NOVAS PUBLICAÇÕES