Três grandes cidades reconstruídas

Tony Cragg, Pilha, 1975
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Por ADELTO GONÇALVES*

Obra recente do historiador inglês Kenneth Maxwell recupera a história da reconstrução por que passaram Londres, Lisboa e Paris

1.

Examinar os esforços de reconstrução de três grandes cidades europeias foi a ingente tarefa a que se dedicou o historiador inglês Kenneth Maxwell ao escrever The Tale of Three CitiesThe Rebuilding of London, Paris, and Lisbon, obra que acaba de ser lançada na Inglaterra e nos Estados Unidos com textos em inglês, português e francês. É o resultado da leitura que o autor fez na abertura de um colóquio internacional sobre Arte e Literatura Luso-Brasileira, realizado na Universidade de Harvard, em setembro de 2024.

Nesse documento, intitulado “Disaster & Reconstruction: The Challenge of Modernism”, Kenneth Maxwell analisa os efeitos causados por um grande incêndio em Londres, ocorrido em 1668, e os planos do notável arquiteto Christopher Wren (1632-1723) para redesenhar a cidade; a reconstrução de Lisboa depois do grande terremoto de 1755, sob a direção do marquês de Pombal (1699-1782); e a destruição da velha Paris e a sua reconstrução sob Napoleão III (1808-1873) e o barão Georges-Eugène Haussmann (1809-1891), prefeito do antigo departamento do Sena entre 1853 e 1870.

O texto de abertura discute a transformação pela qual Londres passou durante os séculos XVII e XVIII, inicialmente sob a direção de Inigo Jones (1577-1652), considerado o primeiro arquiteto inglês, o primeiro também a estudar Arquitetura na Itália, responsável por obras irretocáveis como a Queen´s House (1616), em Greenwich, e a Casa dos Banquetes de Whitehall (1622).

Ele também desenhou a piazza (praça) do Convent Garden, bem como uma igreja, da qual hoje pouco resta, além de ter projetado um magnifíco palácio para o rei Charles I (1600-1649) que nunca seria construído.

Como observa o autor, a guerra civil de 1642 acabou com a carreira de Inigo Jones, mas a sua influência inspirada na arquitetura clássica de Roma e na Itália Renascentista permaneceu entre os arquitetos que projetaram a reconstrução de Londres depois da grande epidemia bubônica (peste negra) de 1665-1666, que matou cerca de cem mil pessoas, ou seja, um quarto da população de Londres, e o grande incêndio de 1666, que destruiu boa parte da cidade, desde a Torre de Londres até a Fleet Street. Foi quando o arquiteto Christophen Wren criou ambiciosos planos de reconstrução da cidade, submetendo-os ao rei Charles II (1630-1685), naquele mesmo ano.

O monarca, então, acompanhado por seu irmão, James Stuart (1633-1701), o duque de York, passou a acompanhar pessoalmente a demolição de ruas inteiras de casas e a criação de uma série de aceiros (faixas de terra) para retardar a propagação do fogo. E aceitou as sugestões de Christophen Wren que previam a substituição de ruas medievais por largas avenidas e praças, incluindo uma nova catedral para substituir a Catedral de São Paulo destruída pelo gande incêndio, bem como a construção de edifícios em tijolo e pedra.

Mas, depois de muitas contendas com os proprietários das casas destruídas, o único elemento do projeto de Christophen Wren implementado foi a canalização do rio Fleet. Fosse com fosse, como assinala o historiador, 130 anos depois, as ideias de Christophen Wren seriam utilizadas nas margens do rio Potomac para a construção de Washington DC, a nova capital dos Estados Unidos.

Para se ter uma ideia do desastre, o autor lembra que, antes do incêndio, Londres era uma massa amontoada de edifícios com estrutura de madeira. E recorda que, à época, em cinco dias, 200 mil pessoas ficaram sem teto e mais de 13 mil casas e prédios foram destruídos.

2.

A remodelação de Londres acabou por exercer muita influência na reconstrução de Lisboa, atingida pelo terremoto de 1º de novembro de 1755, pois Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro conde de Oeiras e marquês de Pombal, secretário de Estado durante o reinado de d. José I (1750-1777), havia sido embaixador de Portugal na Inglaterra entre 1739 e 1743 e pôde contemplar diariamente as obras construídas no século anterior, já que haveria de morar em duas residências em Golden Square, no centro oeste da capital, local preferido dos membros da aristocracia e dos diplomatas.

O terremoto, seguido por um tsunami, foi o mais forte que já atingiu a Europa, destruindo cerca de 45 conventos e mosteiros, muitas casas e o Palácio Real, à beira do rio Tejo, além de afundar o cais ribeirinho, tornando tudo um monte de lixo. Mais de 15 mil pessoas morreram, mas a reação de Pombal foi rápida e eficaz, ao determinar o enterro dos mortos e até a remoção de corpos para alto-mar a fim de evitar a propagação de doenças, além de baixar medidas rigorosas para evitar o aumento dos preços de alimentos essenciais. Sem contar as providências que tomou para evitar saques e pilhagens, sendo os infratores sumariamente enforcados.

Como lembra Kenneth Maxwell, com a ajuda dos arquitetos Manuel da Maia (1677-1768), Eugênio dos Santos (1711-1760) e Carlos Mardel (c.1695-1763), Pombal teve aprovado pelo rei d. José I (1714-1777) um plano que previa a reinvenção total do núcleo central de Lisboa, “com a anulação dos anteriores padrões de ruas e direitos de propriedade”.

O plano substituiu a antiga praça real, o chamado Terreiro do Paço, pela atual Praça do Comércio, que receberia em 1775 uma estátua de bronze em homenagem a d. José I que ainda pode ser contemplada nos dias de hoje. A praça seria um local de ministérios e secretarias de governo, de comércio, da alfândega e da bolsa de valores, reproduzindo os planos de Christophen Wren para uma cidade mercantil em Londres e de Inigo Jones para o Convent Garden.

3.

Por fim, Kenneth Maxwell mostra a nova Paris que resultou da visão futurista de Napoleão III, um governante autoritário que manteve seu reinado por 18 anos, até ter conduzido a França a uma guerra catastrófica com a Prússia de Bismarck (1815-1898). O monarca apoiou com braço de ferro o barão Haussmann, prefeito do Sena, em sua persistência em destruir a velha Paris para introduzir sistemas modernos de água e esgoto, bem como avenidas largas e ladeadas por edifícios uniformes, que acabariam por levar o seu nome, pois ficariam conhecidos como “edifícios Haussmann”.

As obras projetadas por ele durariam menos de 20 anos e resultariam numa cidade totalmente planejada, com bulevares retos e largos, que atravessavam os cortiços medievais, valendo-se de uma legislação de confisco de propriedades privadas, o que significa que milhares de prédios e casas foram condenados e arrasados.

Esse processo, que incluía o confisco de propriedades com base no direito de expropriação (eminent domain ou domínio eminente), seria confirmado depois durante a legislatura da qual era presidente Charles Auguste Louis Joseph, o conde de Morny (1811-1865), o meio-irmão de Napoelão III.

Com base nessa legislação draconiana, as obras acabariam por dar fim ao cortiços que eram uma fonte de doenças, como a cólera, responsável pela morte de mais de 30 mil pessoas entre as décadas de 1830 e 1860. Em função dessas obras de remodelação, em 1870, a cidade ganharia condutores subterrâneos de gás, com a instalação de 33 mil saídas para a iluminação pública, edifícios públicos e casas particulares.

A partir daí, a Paris moderna, nova e espaçosa, já conhecida como Cidade-Luz, ofuscaria a até então invejada Londres. Haussmann também mandaria empreender grandes obras de engenharia para conduzir água por meio de novos aquedutos e poços artesianos. Foram também modernizadas muitas escolas, inclusive a famosa Sorbonne, a faculdade de Medicina. Sem contar os grandes bailes de máscaras, recepções diplomáticas e a primeira Exposição Universal, em 1855, que Haussmann mandaria organizar.

Haussmann, por determinação de Napoleão III, também procurou criar em Paris os grandes parques de Londres, como o Hyde Park e St. James Park, que tanto o monarca havia admirado durante o seu exílio na capital inglesa. E que foi a origem da construção do Bois de Boulogne e de outros grandes parques parisienses.

Na conclusão de sua pesquisa, Kenneth Maxwell observa que, enquanto, hoje, as ruas de Londres permanecem tal como eram antes do grande incêndio, quando foi negada a Christopher Wren a oportunidade de replanejar a cidade, Lisboa e Paris continuam tal como o marquês de Pombal (e Maia, Santos e Mardel) e Napoleão III (e Haussmann) imaginaram, ambas reconstruídas para refletir a modernidade.

Eis aqui um estudo que, a partir de agora, torna-se indispensável para quem quiser conhecer ou mesmo escrever sobre a história dessas três grandes e luminosas cidades.

*Adelto Gonçalves, jornalista, é doutor em literatura portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Autor, entre outros livros, de Bocage – o perfil perdido (Imesp).

Referência


Kenneth Maxwell. The Tale of Three CitiesThe Rebuilding of London, Paris, and Lisbon. Londres, , Second Line of Defense, 2025, 202 págs. [https://amzn.to/4kuMil0]


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