Junho de 2013

Cy Twombly, Sem título (Baco), 2008
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Por JOSÉ COSTA JÚNIOR*

Considerações sobre três documentários que abordam as Manifestações de 2013

Nos idos de junho de 2013, numa conversa com um amigo próximo que não tinha interesses mais amplos por política, algo chamou a atenção: segundo ele, o “gigante havia acordado”, o que seria a razão maior para os protestos que víamos nas ruas do país. Foi estranho escutar aquelas palavras, ditas por entusiasmo por alguém que tratava pouco de temas sociais e políticos.

Outro momento desse período que vem à lembrança é a vaia colossal recebida pela então presidente Dilma Rousseff durante a abertura da Copa das Confederações daquele ano na cidade de Brasília. A competição futebolística entre seleções era parte da preparação do país para receber a Copa do Mundo de 2014 e a vaia retratava as diversas insatisfações políticas e sociais daquele momento. O que chama a atenção aqui é o fato de que a indignação e envolvida na vaia superarem até mesmo as possíveis alegrias e expectativas nas quais o futebol brasileiro sempre esteve envolvido (por pouco tempo, como saberíamos em 2014).

Desde aquele mês inesquecível, o Brasil e o mundo passaram por grandes mudanças, que têm estimulado reflexões e análises, propostas em diversas frentes e que tentam compreender as causas e desdobramentos daquelas manifestações. Nesse contexto, três documentários sobre o período nos ajudam a contextualizar e refletir sobre tais acontecimentos e suas consequências.

O primeiro deles é Junho: o mês que abalou o Brasil, lançado em 2014 com direção do jornalista João Wainer e produzido pela Folha de São Paulo. Este documentário aborda as movimentações de junho de 2013 da perspectiva daqueles que estiveram dentro dos protestos – manifestantes, policiais e jornalistas. Já a segunda produção é O mês que não terminou (lançado em 2019), dirigida pelo filósofo Francisco Bosco e pelo artista plástico Raul Mourão. Trata dos acontecimentos a partir de uma temporalidade diferente, um pouco mais distante no tempo e com análises e reflexões mais detidas.

Por fim, a recente Junho 2013: O começo do avesso, série documental dirigida pela historiadora Angela Alongo e pelo jornalista Paulo Markun, destrincha em seis episódios os diferentes aspectos dos acontecimentos de então, partindo de perspectivas variadas (e opostas). Dessa forma, os três documentários formam um conjunto interessante, retratos “à quente”, “à frio” e a posteriori de um momento específico, que levou (ou esperava levar) à mudanças no país, “um gigante que acordava” e esquecia o futebol e suas pretensões de alegria e cordialidade.

 

Junho: o mês que abalou o Brasil

O documentário de João Wainer começa retratando os primeiros protestos ocorridos na cidade de São Paulo no começo do mês de junho de 2013, contra o aumento das passagens de ônibus. Liderados por movimentos sociais, as manifestações bloqueavam vias da cidade e passaram por mudanças consideráveis em sua composição e agenda com o passar dos dias. Com novas estratégias, mais violentas e reativas, os protestos passaram a contar com a presença dos chamados “black bloks”, o que gerou uma forte reação policial.

O documentário traz cenas fortes dessa reação, como hematomas, balas de borracha e policiais feridos. A mídia, que num primeiro momento exigiu o controle das manifestações, passou a denunciar a repressão aos protestos que angariavam cada vez mais apoio e participação popular. Esse envolvimento ocorreu em grande parte devido à viralização dos protestos pelas redes sociais, que os levaram para diversas cidades do país. Tentativas de invasão ao Palácio do Planalto, à sede do governo estadual e da prefeitura paulista retratam a ampliação da indignação para além da pauta inicial do aumento do custo do transporte público, e que levou cada vez mais pessoas para as ruas.

Chama a atenção nesse ponto uma cena em que uma repórter questiona uma mulher sobre os motivos da manifestação. Vestida com a bandeira do Brasil, a entrevistada não consegue estruturar uma resposta objetiva, e aponta: “É contra tudo isso que está aí”. A cena retrata bem a difusão das pautas e a ausência de lideranças das manifestações, que passaram a envolver diversos grupos diferentes: estudantes, moradores da periferia, classe média, profissionais, entre outros. Com o recuo da polícia, os protestos passaram a manifestar discursos de ordem, contrários à política e aos partidos, com enfrentamentos e tensões entre os grupos que se manifestavam.

É possível identificar nessa mudança de objetivos a participação de um patriotismo revoltado, onde as pessoas manifestavam suas insatisfações através de uma pauta difusa, muitas vezes cantando o hino nacional e não raro com a presença de discursos inflamados e violentos contra “o sistema”. Uma sessão do Congresso Nacional retratada no documentário mostra deputados e senadores aflitos com a situação em Brasília, e questionando uns aos outros: “Onde foi que nós erramos?”

O documentário termina com a final da Copa das Confederações, quando o Brasil venceu a Espanha na final, resultado que não impactou os humores sociais e políticos do país. As manifestações que começaram por demandas relativas à direitos e cidadania ampliaram-se para uma pauta ampla, que abriu espaço para diversas manifestações em paralelo e revoltas antissistema. O documentário de João Wainer descreve bem essa mudança de pautas, de público e de exigências, num movimento que envolveu também uma passagem de indignação para ressentimento, inclusive entre os diferentes grupos que ali protestavam. A ampliação dos protestos para muitas cidades no Brasil e no exterior também serve de evidência do caráter cada vez mais difuso dessas pautas ao longo do mês de junho de 2013. A situação é retratada na frase dita por muitos naquele momento: “O gigante acordou”. No entanto, ao final do documentário, algumas perguntas surgem: O que efetivamente acordou no Brasil? Em qual sentido nós no Brasil “dormíamos”? Quais seriam as consequências das manifestações? Para além do susto com os protestos, os políticos brasileiros iriam descobrir “onde foi que erraram”?

 

O mês que não terminou

É sobre tais questões que O mês que não terminou trata. O roteiro de Francisco Bosco busca explicar o “devir conservador” das manifestações e protestos de 2013, um processo pouco linear que culminou no impeachment de uma presidente eleita e na ascensão de um político pretensamente defensor do conservadorismo e da ditadura civil-militar. A produção é mais reflexiva, com participação de especialistas de diversas áreas (filósofos, economistas, psicólogos, jornalistas, políticos etc.), promovendo reflexões de fundo sobre os acontecimentos posteriores às manifestações, com o objetivo de compreender seus desdobramentos e consequências.

Os diretores dividiram o documentário em cinco partes, que acompanham uma sequência temporal de fatos ligados ao “mês que não terminou”. Já na primeira parte, intitulada “O céu nunca foi azul”, é apresentada a conjuntura global na qual as manifestações de 2013 estavam inseridas, juntamente com algumas contradições políticas brasileiras do período e do governo de então. Tais circunstâncias foram decisivas para a eclosão dos protestos, estimulados também pela mídia e por movimentos políticos diversos – que também seriam impactados pelos desdobramentos dos protestos.

Na segunda parte, “Nova cultura política”, o documentário mostra como o debate político passou a ser central na cultura brasileira, passando a envolver as situações cotidianas nos anos de 2014 e 2015. Num país pouco afeito à debates dessa natureza, mais tensões surgiam dentro das relações sociais, principalmente em relação ao partido que ocupava o governo do país. Em paralelo a isso, os gastos vultuosos com a realização da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 foram combustíveis para o aumento das tensões nas conversas sobre política do período.

Na terceira parte (“O nó górdio”), são apresentadas as diferentes leituras do processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff em 2016, abordando também as estruturas e movimentos políticos envolvidos nesse acontecimento. As manifestações dos deputados que votaram pela retirada da presidente demonstram um forte ressentimento e um discurso muitas vezes agressivo e violento, apontando para posicionamentos conservadores e reativos.

A ascensão desse conservadorismo é tema da quarta parte (“A nova direita e os novos liberais”). A queda do partido de esquerda mais tradicional do país e a prisão da sua principal liderança, contribuíram para a ascensão de uma nova direita e de uma corrente dita liberal no contexto político brasileiro entre os anos de 2013 e 2017. Com a possibilidade de disseminação de conteúdos e informações pelas redes sociais e pautando-se por um discurso de liberdade, honestidade e efetividade política, essa corrente encontrou cada vez mais adeptos. O documentário expõe algumas contradições do alegado liberalismo desse grupo, como por exemplo a sua contraditória identificação: ser “liberal na economia e conservador nos costumes”. No entanto, numa sociedade em que indignação e ressentimento passaram a envolver os contextos políticos cada vez mais, discursos pautados por essa nova direita passam a ter mais receptividade e apoio.

A última parte (“Medo e utopia revolucionária”), trata dos modos pelos quais esse posicionamento se ampliou e se radicalizou, inundando as redes sociais com discursos violentos no período eleitoral de 2018. Tais circunstâncias contribuíram para a formação de uma sociedade polarizada, na qual os debates políticos passaram a ser agressivos e sem zonas de contato para o diálogo. O epílogo do documentário mostra como “o espólio” de todos esses anos de tensão política culminou numa eleição pouco esperada por muitos em junho de 2013.

Como o documentário vai até 2018, não trata dos desdobramentos do governo eleito. No entanto, sabemos que os acontecimentos iniciados em junho de 2013 não terminaram ainda em junho de 2022, com a crescente ampliação das tensões e dificuldades democráticas latentes. Atualmente é possível perceber que o “devir conservador” não ofereceu nem soluções, nem estabilidade, como muitos de seus defensores esperavam, gerando ainda mais frustrações, indignações e ressentimentos.

 

Junho 2013: O começo do avesso

Junho 2013: O começo do avesso, aborda aqueles e aquelas que estiveram diretamente envolvidos nas manifestações ou foram alvo da indignação popular devido ao cargo que ocupavam. Assim, lideranças de movimentos sociais e sindicais, políticos das variadas esferas de poder, membros das corporações militares, entre outros participantes dos eventos daquele mês, revisitam os acontecimentos, agora com um olhar distanciado, em busca de uma compreensão mais efetiva das causas e – principalmente das consequências.

O olhar reflexivo de Angela Alonso e Paulo Markun denuncia e conclui pouco, porém descreve bem as perspectivas, as motivações e as revisões dos envolvidas nos protestos. Os nove anos que separam o mês de junho de 2013 de junho de 2022, nos quais vivemos uma série de crises estão bem descritos no título: ali começava, ao menos no nosso país, o avesso que vivenciamos nos últimos anos – e que parece longe de acabar.

O primeiro episódio (“Inspirações”) contextualiza os acontecimentos e manifestações mundo afora, como a Primavera Árabe, entre outras, cujos participantes contaram com novas formas de aproximação e mobilização. As redes de interações social digital passaram a ser fundamentais para tais movimentações e por aqui não seria diferente. Já no segundo episódio (“Atores”), são abordados as diferentes perspectivas dos envolvidos; a diversidade de movimentos sociais se destaca, juntamente com o surgimento de visões opostas à tradição dos movimentos sociais: novas concepções e revoltas, mais próximas de perspectivas conservadoras e da direita política também saíram às ruas.

As diferentes abordagens, posicionamentos e modos de expressão de tais perspectivas são tratados no terceiro (“Táticas”) e no quarto episódios (“Violências e mídia”). O quinto episódio (“Massificação e violência”) discute a disseminação dos protestos dentro e fora do país, juntamente com as respostas iniciais da sociedade e das corporações de mídia. Por fim, o sexto e último episódio (“Desdobramentos”) fecha o documentário, explorando as reações dos governos de então, como a diminuição no valor da passagem, que foi a motivação inicial dos protestos, e as propostas de reforma política do governo de então (que, como sabemos, não teria tempo nem espaço para efetivá-las).

Revisitar os acontecimentos da época, vendo e revendo tais produções, nos faz observar e pensar nas tensões e reações de todos nós que vivemos em junho de 2013. O conjunto das ruas cada vez mais cheias, a viralização virtual e real dos gritos e revoltas, a diversidade de movimentos e exigências, estava envolvido em nuances e picos de emoções e sentimentos que, transbordaram e atingiram a sociedade e a política brasileira em cheio – para o bem e para o mal. Talvez seja isso que meu amigo e muitos de nós – à beira do senso comum – descrevíamos quando se dizia que o gigante tinha acordado. Faltou dizer que tal figura estava dominada por indignação e frustração.

Analisar a relação entre política e emoções pode ser um exercício de difícil precisão. Devido ao caráter subjetivo dos humores e das paixões, aproximá-las dos contextos políticos é uma tarefa complexa que exige uma reflexão cuidadosa. Conforme os três documentários apontam, os protestos de 2013 envolviam uma forte carga emocional de indignação e de frustração, o que demanda uma compreensão da dessa relação intensa entre emoções e contextos políticos e sociais.

Na análise da filósofa americana Martha Nussbaum, proposta em Political emotions (2013), as emoções possuem um protagonismo pouco reconhecido nos processos coletivos e individuais. Não considerar suas causas e efeitos limita a nossa compreensão sobre o funcionamento das forças sociais e políticas, o que pode abrir espaço para que discursos emotivos e populistas encontrem um canal e se disseminem, como já aconteceu tantas vezes na história. Nussbaum ressalta que sua hipótese não defende que se converta as emoções em fundamento das decisões políticas, mas em reconhecer que desempenham um papel considerável na sua formação, principalmente quando manipuladas ou estimuladas. Assim, emoções como o medo, a insegurança, a indignação e o ressentimento podem gerar consequências sociais e políticas, principalmente em contextos de mudança, como o que temos vivido na última década no Brasil e no mundo.

Nesse contexto, o filósofo Daniel Innerarity formulou algumas hipóteses que podem nos ajudar a compreender as manifestações daquele período de uma maneira mais ampla. Considerando os contextos de mudança advindos da globalização e do impacto das crises econômicas, Innerarity defende em A política em tempos de indignação (2015) que muitas das certezas e expectativas que tínhamos começaram a ruir. Tais processos fazem com que as dinâmicas em que estamos envolvidos passem a ser incompreensíveis, gerando tensões e mais incertezas. Um exemplo envolve o papel da tecnologia em nossas vidas: ao mesmo tempo em que possibilita conforto e facilidades, o desenvolvimento tecnológico ameaça nossos empregos e nos torna cada vez mais dependentes.

Outro exemplo envolve a dificuldade em controlarmos nossas próprias vidas, mutas vezes impactadas por decisões políticas e econômicas que nos são distantes e de difícil compreensão. Dentro de todas essas mudanças e incertezas, a frustração das pessoas passa a ocupar um lugar central nas relações sociais. Amplificadas pela internet, a indignação e o ressentimento envolvidos nessa frustração podem abrir espaço para posições políticas extremas e reativas. Num mundo complexo, em que a política e economia não respondem à contento, sobra a indignação para aplacar a frustração comum.

No caso das manifestações de 2013, é possível perceber como a indignação ligada aos serviços públicos motivou os protestos, mas logo abriu espaço para reações violentas e ressentidas contra o “sistema”, uma descrição ampla e pouco descritiva das estruturas sociais e políticas que impactam a vida das pessoas. Innerarity reconhece que as manifestações e protestos são importantes meios políticos para a demonstração de insatisfações nas democracias. No entanto, também vê riscos: a indignação sozinha não promove mudanças, sendo necessária uma construção política e estruturada que promova as alterações necessárias para consideração de direitos e dignidade.

Outro risco é que a constante indignação possa afastar a racionalidade da política, criando antagonismos e tensões pouco construtivas para os processos políticos. Essa situação pode abrir caminho para discursos fáceis e emotivos, que prometam o impossível de formas e pouco exequíveis, mantendo a frustração. Aqui, a compreensão dos processos políticos e a organização são fundamentais para que os movimentos de indignação efetivem pautas políticas e respostas para as suas exigências.

 

Ressentimento

Essa indignação também pode abrir caminho para o ressentimento, outro afeto de grande potencial político. O cientista político Manuel Arias Maldonado aborda o papel dessa “intoxicação psíquica” na política em La democracia sentimental: Política y emociones en el siglo XXI (2015). Sua análise parte do pressuposto de que o ressentimento, um tipo de “emoção adversativa” é compatível como uma demanda legitima por justiça; no entanto, também pode abrir espaço para tensões cada vez maiores que fecham o diálogo necessário para o funcionamento das democracias.

Um exemplo desse potencial são as discussões políticas que envolvem situações e acontecimentos históricos, carregadas de ressentimentos entre as partes envolvidas e que voltam à tona em algum momento. Em processos democráticos, a força do ressentimento pode ser decisiva, como vimos no caso dos desdobramentos das manifestações nos anos posteriores à 2013, onde os debates sobre política se tornaram cada vez mais violentos e agressivos no Brasil, seja em conversas cotidianas, seja nas redes sociais cada vez mais polarizadas.

Maldonado identifica essa tensão como advinda de uma “sentimentalização digital da esfera pública”, mostrando como os usos das interações sociais digitais acabam por fomentar não apenas os ressentimentos políticos, mas também todo o conjunto de afetividades possíveis, inclusive o ódio. Em tais meios, os sujeitos alteram sua autoimagem, aproximando-se de outros como ele, configurando “bolhas” de opiniões e posicionamentos muitas vezes invioláveis.

A debate próprio de democracias perde cada vez mais espaço nessa ágora violenta, que perigosamente se empodera a cada dia, contando com grandes quantidades de notícias falsas como combustível. Sujeitos enfurecidos são motivados para a participação pública por estruturas midiáticas, que não os estimulam a ter preocupações comunicativas, mas apenas com o intuito de obter informações que sustentem suas visões. O uso intenso das plataformas de digitais nas eleições de 2018, com ampla utilização de desordem informacional e direcionamentos retrata bem o processo de “sentimentalização digital da esfera pública”, mantendo o engajamento dos eleitores, com altos níveis de indignação e ressentimento.

O quadro social político polarizado que emergiu a partir dos acontecimentos de junho 2013 parece limitar ainda mais as possibilidades e mudanças exigidas pela indignação daquele momento. O acesso ao poder de figuras políticas que se intitulavam “não-políticas”, que representavam o “novo”, ou que iriam corrigir “tudo isso que está aí”, parecem ter sido uma consequência desastrosa, principalmente quando consideramos o quanto sofremos numa pandemia que matou mais de 600 mil pessoas no país. No entanto, cá estamos nós, ainda indignados e ressentidos – e polarizados.

Quem sugere possibilidades para esse cenário é o filósofo Francisco Bosco, que dirigiu um dos documentários aqui abordados e ensaia caminhos a partir dessa produção em O diálogo possível: Por uma reconstrução do debate público brasileiro. Esse ensaio de junho de 2022 revisita a formação e os sentidos dessa polarização e defende uma nova concepção de centro, que destaca as tensões sociais e históricas que formaram o Brasil e que precisam ser consideradas. Bosco defende a busca conjunta de um “universalismo por vir”, como meio de construção de uma sociedade mais democrática e inclusiva, considerando também a possibilidade de um espaço público com debates menos “inflamados, mistificados, agressivos, autoritários e frequentemente em petição de miséria intelectual”.

A polarização, muito mais afetiva do que analisada e refletida em posições claras no debate e no posicionamento político, acaba por dispensar possibilidades necessárias para as mudanças que realmente demandamos e que estavam na base das indignações presentes nas passeatas e protestos do “mês que não terminou”. No entanto, tais possibilidades de diálogo aqui não envolvem a dissolução de antagonismos – próprios de qualquer estrutura política que se diga democrática – ou uma conciliação imobilista, que “mude tudo para continuar como está”, mas sim nos processos que Bosco chama de desidentificação ou destotalização, procedimentos envolvem expectativas de arrefecimento no que tange à relação entre política e emoções.

No entanto, reconhecendo Sigmund Freud como referência, o autor sabe que se trata de uma “luta desigual”: “O intelecto humano é impotente contra a vida pulsional”. Porém, encontra também expectativas na posição do próprio psicólogo vienense: “A voz do intelecto é baixa, mas ela não descansa enquanto não receber atenção”. Não deixa de ser uma aposta, na qual ainda se pode colocar algumas fichas, principalmente quando ainda vivemos os efeitos daquele “mês que não terminou”. No entanto, é uma aposta, não uma certeza.

Assistir aos documentários Junho: O mês que abalou o Brasil, O mês que não terminou e Junho 2013: o começo do avesso é uma bom modo para analisarmos como as tensões sociais, políticas e econômicas, unidas com as nossas limitadas estruturas políticas, nos trouxeram para uma espiral de mais incerteza e medo em relação ao que virá pela frente.

*José Costa Júnior é professor de filosofia e ciências sociais no IFMG –Campus Ponte Nova.

 

Referências


ARIAS MALDONADO, Manuel. La democracia sentimental: Política y emociones em el siglo XXI. Barcelona: Página Indómita, 2017.

BOSCO, Francisco. O diálogo possível: Por uma reconstrução do debate público brasileiro. São Paulo: Todavia, 2022.

INNERARITY, Daniel. A política em tempos de indignação: A frustração popular e os riscos para a democracia. Tradução de João Pedro George. Rio de Janeiro: Leya, 2017. (2015)

NUSSBAUM, Martha. Political emotions: Why love matters for justice. Cambridge, Harvard University Press, 2013.

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