Uma visita ao Irã

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Por SALEM NASSER*

É impossível vencer individualmente homens que carregam essa crença: ou eles vencem a luta, ou são premiados com a melhor das mortes e com a melhor das vidas eternas

Estive recentemente no Irã. Enquanto estava lá, durante uma reunião em que discutíamos as implicações legais da atual guerra em Gaza e os potenciais que têm as ações dos Tribunais Internacionais, recebemos notícias de um incidente com o helicóptero que tinha a bordo o Presidente iraniano, que voltava então do Azerbaijão.

Na manhã seguinte, tivemos confirmação da morte do Presidente e também do Ministro das Relações Exteriores e outros.

A morte do Presidente coincidiu com a comemoração do nascimento de Imam al Rida (ou Al Reza), o oitavo Imam do Xiismo duodecimal. Mesmo antes da tragédia ter ocorrido, eu tinha tomado conhecimento da aproximação da data comemorativa; ela tinha sido mencionada por mais de um dos nossos anfitriões e por mais de um dos participantes das discussões.

De noite, em meu quarto de hotel, enquanto eu tentava entender algo do que via e ouvia nos diferentes canais de TV, todos falados em persa, uma sequência de cenas era repetida continuamente: um homem de cerca de sessenta anos, de barba branca e cabeça descoberta, vestido em uma simples abaya branca, se ajoelhava para entrar num santuário, e logo limpando, tirando o pó, arrumando o pano que cobria o túmulo, e depois rezando e chorando.

Temo que minha memória me traia agora e não estou seguro sobre se a sequência estava sendo transmitida na noite anterior ao acidente ou se só começou a ir ao ar quando as pessoas começaram a se perguntar sobre o destino do Presidente.

Em todo caso, só gradualmente eu percebi o significado das cenas: o homem de cerca de sessenta anos era o Presidente Raisi, e o santuário de que ele cuidava era o do Imam al Rida. Logo descobri que o santuário está localizado em Mashad, uma cidade histórica, quase sagrada, do Irã, em que nasceu o Presidente. Finalmente, vim a saber que Raisi era um “servidor” do Imam al Rida, o que explicava o fato de ele cuidar das instalações físicas do lugar, mas que também significava que ele havia sido nomeado em algum momento o responsável por gerenciar a instituição de caridade que cuida dos enormes montantes de doações feitas em honra o Imam.

Uma vez confirmada a notícia da morte, como era de se esperar, inúmeras cenas mostrando o Presidente em várias circunstâncias diferentes encheram continuamente as telas: em geral, elas ou o mostravam em posição de força, representando o Irã na arena internacional, ou o mostravam em contato próximo, direto, com a população, respondendo aos seus pedidos e necessidades.

Inevitavelmente, algumas cenas o mostravam interagindo com o falecido General Kassem Soleimani, por exemplo, enquanto rezavam e choraram juntos sobre o túmulo do mesmo Imam Al Rida (que morreu em 818 EC), e com o Líder da Revolução o Ayatollah Khamenei, chorando copiosamente enquanto lamentava a morte de Soleimani. Khamenei também foi mostrado visitando a família do Raisi para oferecer condolências, segurando um bebê perto do rosto e orando.

Essas imagens me fizeram lembrar muitas outras, mostrando Soleimani interagindo com crianças e fazendo prova de afeto e cuidado, mostrando o secretário-geral do Hezbollah segurando no colo o neto recém-nascido ou confortando sua mãe que viria a falecer no hospital. Lembraram-me também dos momentos em que esses homens falavam dos sentimentos profundos, de amor e respeito que tinham uns pelos outros, e também das muitas pessoas que testemunhavam sobre sua generosidade e atenção com os demais.

Quem os conheceu, conviveu com eles, os entrevistou, compartilhou dos perigos dos campos de batalha, fala, sem exceção, desses traços tão delicados, da gentileza, da modéstia, da abnegação.

E, no entanto, esses mesmos homens são, ou foram em vida, como flechas que viajam em direção a um alvo preciso, sem desvios, sem hesitação, sem dúvidas sobre a correção de propósitos.

Ambos os aspectos, a delicadeza e a firme determinação, podem bem ser traços de personalidade que por acaso puderam se encontrar em tais homens que, também por acaso, compartilham objetivos e trabalham juntos.

Mas eu penso que há mais.

Penso que esses homens não podem ser bem compreendidos sem que se leve em conta a sua fé e a sua religiosidade.

Eu conheci minha cota de falsos crentes, de gente que usa a religião como instrumento de manipulação e de poder, de gente que acredita e pratica a sua religião sem entendê-la…

Os homens a que me referi acima são diferentes disso tudo. Todos eles têm, ou tinham em vida, uma fé genuína, poderosa, capaz de dar sentido a tudo, e todos têm, ou tinham, um conhecimento profundo do islamismo que vivem, ou viviam, tão intensamente.

A sua fé e a sua compreensão da própria religião ditam a generosidade, a gentileza, a abertura que eles mostram em relação aos outros, aos seus amigos, suas famílias, as crianças, os jornalistas…

E a mesma fé e a mesma compreensão proveem o propósito claro, a missão, o sentido. E proveem a determinação e a força de vontade, assim como a certeza do sucesso.

O propósito pode ser resumido como “a luta contra a opressão e a injustiça”. Tal luta faz valer a pena todos os sacrifícios.

Para os homens a quem me refiro aqui, tanto o propósito quanto a disposição para o sacrifício têm suas raízes na experiência do terceiro Imam do Islã Xiita, Hussein, e em seu sacrifício (esse evento foi lembrado, como ocorre todos os anos, há poucos dias, e eu escreverei em mais detalhe sobre isso em breve)

Eles amam a vida, desde que ela seja digna e honrada, e acreditam que ela deve ser vivida de um jeito específico. Acreditam que haverá um julgamento final e que há uma vida depois da vida terrena. Por essa razão parecem se deixar guiar por um ensinamento do primeiro dos Imams, o pai de Hussein, Ali Ibn Abi Taleb: “fazer pare este mundo como se fossemos viver para sempre, e fazer para o outro mundo como se fossemos morrer amanhã”.

Lutar contra a injustiça e a opressão é se esforçar por uma vida honrada e digna. Se se morre enquanto se faz essa boa luta, morre-se a melhor das mortes e se vive ao lado de Deus.

Como disse uma vez Hassan Nasrallah, é impossível vencer individualmente homens que carregam essa crença: ou eles vencem a luta, ou são premiados com a melhor das mortes e com a melhor das vidas eternas.

Apenas para que não haja mal-entendidos, devo dizer que invejo esses homens. Faço o que posso na frente da generosidade e da gentileza, com sucesso parcial. Já no que diz respeito à vontade de aço e à disposição para o sacrifício, meu julgamento é mais rigoroso.

Como no caso deles, pode ser questão de traços de personalidade. Não estou buscando desculpas enquanto digo que não partilho da fé deles, da força da sua crença, da sua clareza de propósitos, da sua certeza de que todos os sacrifícios são feitos em prol de uma vitória final assegurada.

Um pouco como Ivan Karamazov, me insurjo contra a ideia de que o sacrifício das crianças seja parte do plano divino.

Digo apenas que sinto a necessidade de achar uma razão diferente para acreditar que a morte é preferível a uma vida desprovida de dignidade.

*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, de Direito global: normas e suas relações (Alamedina) [https://amzn.to/3s3s64E]


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