Exu, o bem e o mal

Devidasa of Nurpur, Shiva and Parvati Playing Chaupar Folio from a Rasamanjari Series, 1694-95.
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Por DANIEL SOARES RUMBELSPERGER RODRIGUES*

As religiões tratam de narrativas que propõem reflexões e cursos de ação, que oferecem conselhos, fazem sugestões

“Exu, que tem duas cabeças / Ele faz sua gira com fé (2x) / Uma é
Satanás dos Infernos / Outra é / Jesus Nazaré” (Ponto cantado).

“A verdadeira natureza do obsceno é a vontade de converter” (Hilda Hilst).

Exu é uma figura muito particular no panteão umbandista. É uma figura que se define pela ambiguidade, pela contradição, pela união instável de opostos. Exu é o orixá das ruas, dos caminhos, das encruzilhadas; é associado ao corpo, à matéria, à fertilidade e à sensualidade. Não à toa é o alvo preferencial das correntes mais exaltadas do mundo evangélico neopentecostal (ou da terceira fase do movimento pentecostal) e de setores católicos da chamada renovação carismática,[i] é o totem, o símbolo, a imagem predileta dos que se sustentam através do constante incentivo à destruição de genuínas pontes de troca e diálogo entre distintos credos religiosos.

No fechamento que produzem, esses segmentos religiosos manipulam, torcem e ressignificam certos ritos e elementos das práticas que pretendem aniquilar, que em grande medida os justificam retoricamente e com as quais, paradoxalmente, mantém insuspeitadas linhas de continuidade.[ii] É contra o universo dos orixás, dos encantados, dos nkisis e dos voduns – e das práticas sociais a eles associadas – que se armam, se mobilizam e se nutrem diversas igrejas, organizações e experiências religiosas no Brasil (ontem como hoje).E, ali, Exu tem um lugar especial. Exu é o mal, é o demônio, o lúcifer, o satanás. E é mesmo. Mas, não só. E nem no sentido que lhe querem imputar.[iii]

Gostaria de sugerir, de saída, um ponto de vista não religioso: deus e o diabo não existem. Ao menos não como se costuma imaginar imediatamente. O que existem são experiências religiosas do sagrado e da transcendência – o que parece fazer parte da natureza da cultura humana, em todos os tempos. Assim, deus e o diabo existem na exata medida em que, em função de suas imagens, agem homens e mulheres em suas interações e relações sociais. Existem na exata medida em que vigoram as crenças nas suas existências, ensinamentos e exemplos. Numa palavra: existem para quem crê. Não independentemente dos que creem, como é o caso das verdades científicas. Além disso, deus e o diabo “existem” enquanto metáforas do psiquismo humano e de tendências sociais mais amplas. Orixás, santos, anjos, voduns, nkisis, deuses e demônios são nomes, palavras e histórias. E extraem daí suas extraordinárias atração e força moral e regulatória; o que são Édipo, Judas, Jesus, Ogum e Delfos senão histórias sobre desejo, tabu, lealdade, amor, ódio e traição? De um ponto de vista não religioso, as entidades religiosas, então, existem como forças morais, como insistia Durkheim. Toda narrativa mítica trabalha, de maneira abstrata e cifrada, o espetáculo da condição humana em suas tramas, medos, anseios, fantasias, dramas e desejos. Freud, inclusive, dizia que, através da análise dos sonhos, era possível constatar que “o inconsciente se serve, especialmente para a representação de complexos sexuais, de certo simbolismo, em parte variável individualmente e em parte tipicamente fixo, que parece coincidir com o que conjeturamos por detrás dos nossos mitos e lendas” (FREUD, 1910, p.30). Analisando a mitologia cristã, o mesmo Freud nos oferece a interpretação segundo a qual

Deus é um substituto do pai ou, melhor dizendo, um pai elevado, ou, de outra forma ainda, uma cópia do pai, tal como foi visto e vivenciado na infância (o indivíduo em sua própria infância e o gênero humano em sua pré-história) como pai da horda primitiva (…) Sabemos igualmente, a partir da vida oculta do indivíduo que a análise desvela, que a relação com esse pai era ambivalente talvez desde o início; de toda forma, logo se tornou assim, isto é, compreendeu dois impulsos afetivos opostos, não apenas um impulso terno e submisso, mas também um hostil e desafiador. Segundo nossa concepção, a mesma ambivalência governa a relação da espécie humana com sua divindade. No interminável conflito entre nostalgia do pai, por um lado, e medo e rebeldia filial, por outro lado, encontramos explicação para importantes características e decisivas vicissitudes das religiões. Acerca do Demônio malvado sabemos que foi imaginado como contrapartida de Deus e, no entanto, acha-se muito próximo da natureza deste. Mas sua história não foi tão bem pesquisada como a de Deus, nem todas as religiões adotaram o espírito mau, o adversário de Deus, e seu modelo na vida individual permanece obscuro até aqui. Uma coisa é certa, porém: deuses podem se tornar demônios maus, quando novos deuses os reprimem. Quando um povo é conquistado por outro, não é raro que os deuses destronados dos vencidos se transformem em demônios para os vencedores. O demônio ruim da fé cristã, o Diabo da Idade Média, era, segundo a própria mitologia cristã, um anjo caído, de natureza similar à divina. Não é preciso muita perspicácia analítica para adivinhar que Deus e o Diabo eram inicialmente idênticos, uma só figura que mais tarde se decompôs em duas com características opostas. Nos primeiros tempos das religiões, o próprio Deus possuía todos os traços apavorantes que depois foram reunidos numa contraparte dele. É o processo, bem nosso conhecido, da decomposição de uma ideia de teor contraditório — ambivalente — em duas partes nitidamente contrárias. Mas as contradições da natureza original de Deus são reflexo da ambivalência que domina a relação do indivíduo com seu pai. Se o Deus justo e bom é um substituto do pai, não devemos nos admirar de que também a atitude hostil, que o odeia e teme e dele se queixa, tenha vindo a se expressar na criação de Satã. Portanto, o pai seria o protótipo individual tanto de Deus como do Diabo (FREUD, 1923, p.216-7).

Mesmo que na enorme diversidade de suas modulações e nuances, a tradição religiosa ocidental – branca e judaico-cristã – tende a classificar experiências e símbolos religiosos forjados em outras matrizes civilizatórias na chave da superstição, da crendice, do mito ou da magia, com isso os entendendo como formas inferiores ou relativamente mal elaboradas do exercício da fé e da experiência do sagrado. Mas, se recusa a olhar para si própria como o que é: um conjunto variegado de narrativas míticas que encerram lições, aprendizados, normas de conduta (individual e coletiva) ou conselhos: “aconselhar é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre a continuidade de uma história que está se desenrolando” (BENJAMIN, 1936, p.216).Aquela tradição, portanto, é tal qual as formas de experiências do sagrado por ela imputadas como supersticiosas, mágicas ou inferiores em termos de sofisticação e sistematização religiosas; nem melhor nem pior, apenas diferente. No entanto, espanta-se ao ver-se retratada da maneira como costuma retratar.

Todavia, diversos indivíduos e setores dessa tradição não se contentam em cultivar seus ideais, concepções e crenças relativos à salvação; não se contentam em exercer sua própria liberdade de fazer o que bem entendem com a própria vida; não. Eles precisam converter o mundo. Há uma pletora de dizeres e palavras de ordem que justificam a organização de ações que se destinam decidida e resolutamente à propagação da sua fé eà conversão da coletividade. É preciso salvar as pessoas. É preciso levar a palavra. É preciso pregar os ensinamentos do deus vivo. É preciso levar a luz. É preciso pescar e resgatar almas. É preciso mostrar a todos o caminho, pois fora do caminho não há salvação, fora da luz (e só há uma) só há trevas, só há as tentações do mundo em sua errância e aleatoriedade. Nós, que encontramos Deus (maiúsculo), precisamos fazê-lo reinar no coração dos homens, pois no juízo final todos serão julgados e, sem a palavra, serão condenados; a luta em nome Dele é uma luta contra o Mal que se define pela conversão dos que, hoje arredios, serão agradecidos amanhã ao ponto de difundir obstinadamente seus testemunhos de vida como o símbolo vivo, concreto e real, da ação direta Dele. Propagar a fé e a palavra – do “deus vivo” – é um exercício de caridade cristã. É um favor. Um favor oferecido terna, caridosa e abnegadamente – na melhor das intenções – aos que ainda não gozam da maravilha da união com Deus que os escolhidos já vivenciam. Os escolhidos que fazem parte de uma mesma família, uma família de comunhão, irmandade e adoração em Cristo, nosso Pai, o Deus do impossível.

É esse o retrato que podemos construir de certa vontade de salvação, conversão e domínio do mundo que se coloca de modo tão contundente na cena pública brasileira atualmente; trata-se de um retrato certamente exagerado da realidade, mas que guarda seu grau de pertinência ao oferecer certo nível de inteligibilidade acerca do universo de práticas a que se refere – e, afinal de contas, “minha profissão é exagerar”.

A absolutização do bem e do mal está na origem de todo fascismo e de todo fanatismo religioso. É obvio que há extremos e são diversos os casos (como os de violência sexual) em que lideranças e membros das mais diversas orientações religiosas cometem atos antiéticos, imorais ou criminosos – e isso em nome e através da religião. São casos, no mais das vezes, que expressam a cegueira típica do fanatismo e do comportamento sectário. Pode-se ler, por aí, os diversos ataques a terreiros de umbanda e candomblé que cresceram vertiginosamente no Brasil dos últimos anos. Talvez não seja desnecessário dizer que a intolerância religiosa no Brasil, como um de seus problemas públicos mais urgentes, se expressa predominantemente contra as religiões de matriz africana, sendo, assim, a expressão de uma das múltiplas dimensões do racismo estrutural brasileiro. Aqui, não são os budistas, os católicos, os evangélicos, os judeus ou os muçulmanos as vítimas principais de perseguição em função da fé que vivenciam. Dado o histórico da forma em função da qual a religiosidade negra foi tratada pelos agentes e instituições do Estado nacional (antes como depois da abolição da escravidão e da proclamação da República), é problemático que se espere, por parte dos que têm na umbanda ou no candomblé sua inscrição religiosa, boa vontade com as melhores intenções com as quais se lhes apresentam desavisadamente aqueles que querem propagar sua fé no “deus vivo”, chamando com insistência à conversão. Pela força da lei, das armas e da moral e dos bons costumes dominantes, aquela religiosidade foi e é sufocada e silenciada deformas muito diversas– das mais brutais[iv] às mais imperceptíveis e inconscientes e, portanto, mais eficientes; por isso, os mais bem intencionados chamados vindos do universo de retóricas, performances e práticas de matrizes neopentecostais só podem ser vistos como uma invasão e uma impertinência – como uma violência, enfim – por parte dos adeptos das religiões de matriz africana[v]. E isso nada tem a ver com as pessoas concretas – os portadores ou as portadoras do chamado à conversão –, mas com a própria história nacional e a estrutura social brasileira; é a realidade independente dos agentes, e que atua através deles, que produz o descompasso. Como esperar que aqueles que têm na umbanda ou no candomblé suas experiências religiosas sejam indiferentes (ou amigavelmente receptivos) a um chamado à conversão evangélica num contexto – como o atual – em que se multiplicam, quase como uma epidemia, os casos de ataque, destruição e depredação de terreiros e templos religiosos perpetrados por quem se entende numa verdadeira cruzada moral e na mais legítimadas batalhas espirituais? Quem acha que não há nada demais está de outro lado; posicionado em outro “lugar de fala” (pra usar um termo que tanta polêmica tem causado ultimamente), isto é, tem uma trajetória e uma experiência que criam um ponto cego para certas realidades e certos campos de fenômenos. É isso que acontece com quem é privilegiado: não sabe que é; e essa inconsciência é funcional do ponto de vista da re-produçãoda situação de privilégio.

Desigualdades reais criam obstáculos concretos à convivência igualitária. Há “coações estruturais que pesam sobre as interações” (BOURDIEU, 2004, p.152). Um negro que se refere ao fenótipo de uma pessoa branca em tom de ofensa, desdém e menosprezo, não tema mesma força ilocutória que um branco que ofende um negro em função de sua cor, do seu cabelo ou do formato de seus lábios e nariz[vi]. Isso porque as palavras não caem do céu num vazio de relações sociais; não são nunca ditas fora de determinado contexto que é carregado do início ao fim pela história sedimentada até ali. O “negro nojento” e o “branco asqueroso” não têm o mesmo significado e o mesmo impacto pelo motivo muito simples de que a raça é um marcador social da diferença que historicamente estrutura a desigualdade da sociedade brasileira em favor dos brancos. A distribuição dos bens e das oportunidades obedece a uma estrutura de posições que independe dos indivíduos e que obedece a critérios raciais – em favor dos brancos. A raça é uma das dimensões que estruturam a desigualdade no Brasil (em favor dos brancos): os indivíduos têm mais ou menos acessos a oportunidades e a bens materiais e simbólicos (têm mais ou menos privilégios) em função de sua raça – ou dos traços fenotípicos segundos os quais, em suas interações cotidianas e institucionais, as pessoas classificam umas às outras em termos de preto, pardo, branco, indígena ou amarelo. Por isso que qualquer política pública ou qualquer atuação institucional (micro ou macro) voltada para o problema da intolerância religiosa tem de ter em conta que o problema é específico (relacionado com a questão racial nacional) e exige um tratamento específico, não-genérico, porque o tratamento igualitário apenas reproduz desigualdades existentes – a omissão atua na reprodução: “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real” (BARBOSA, 1921, p.26).

Mas, olhemos para deus e o diabo como metáforas, como imagens ou símbolos de tendências psíquicas e sociais de amor, união, conservação, construção, benevolência, caridade, paz, ordem, rigidez e afirmação, por um lado, e ódio, desunião, transformação, destruição, agressividade, raiva, violência, desordem, fluidez e negação, por outro. Desse ponto de vista, deus e o diabo são forças, são potências que, cada uma a seu modo, podem estar a serviço da dinâmica e dos ciclos da vida – que incluem a morte, mas também a produção e a renovação de vínculos, laços, relações e formas de organização e atuação social abertas e arejadas. É preciso encontrar, no amor, lugar para o ódio[vii]. Saber dar lugar a ele e à positividade (para além da pura destrutividade ou vontade gratuita de agressão) que dele pode advir. O exercício da liberdade e da autonomia, de um espaço da privacidade e da individualidade, construído na relação com o outro, na vida em comum, exige que se dê lugar não apenas ao amor e à união, mas também ao desamor e à desunião, o que não significa a destruição ou a aniquilação do outro, mas a necessidade de uma distância justamente para que a proximidade e troca – a conversa e a convivência – sejam possíveis. Troca, intercâmbio e trânsito de experiências, percepções, vivências e ensinamentos, de modo que alianças, convivências e ajudas mútuas entre os diferentes sejam possíveis e restauradoras[viii]; de modo que pontes possam ser construídas – a ponte conecta e separa a um só tempo (ou conecta porque separa): “na correlação entre divisão e reunião, a ponte acentua o segundo termo e supera o distanciamento das suas extremidades ao mesmo tempo que o torna perceptível e mensurável” (SIMMEL, 1909, p.12). Exu, tal como a ponte ou a porta, define-se por essa “mediação cultural” (SILVA, 2012) que vem do seu “poder sobre as encruzilhadas” (PRANDI, 2001, p.40). Na sua versão de malandro Zé Pelintra, Exu define-se por essa capacidade, que é a do flâneur (BENJAMIN, 1989), de transitar entre diferentes mundos e códigos de condutas, oscilando entre a ordem e desordem e sempre se esgueirando e encontrando brechas e canais de passagem nas situações mais adversas e entre os mundos mais opostos e diferenciados – num movimento que corresponde, em parte, ao que Antonio Candido (1970) cunhou como de dialética da malandragem.

Exu é precisamente essa figura. É mediação porque é deus e o diabo ao mesmo tempo – é “um mediador entre distintos universos míticos e sociais, um ser duplo que traz em si as partes mediadas” (SILVA, 2012, p.91). É Satanás dos Infernos e Jesus Nazaré. Na cosmovisão umbandista, que também é cristã[ix],o bem e o mal estão menos absolutizados do que costumamos pensar imediata e cotidianamente; mais relativizados, complexificados (porque o bem de um pode ser o mal de outro e o bem aqui pode ser o mal acolá) e ressignificados (ou alargados em seus significados); politeísta, na perspectiva umbandista o mal e o bem não são absolutos, mas apresentam diversas facetas a partir das narrativas de seus mitos e entidades.

A questão do pecado, do mal, ou da necessidade de um adversário para o bem, é algo que diz respeito muito mais às religiões monoteístas. Onde há muitas divindades (politeísmo), não se pode ter um antagonista que se oponha a um “Deus” único, já que este não existe (…) Como Exu pôde relativizar os conceitos do bem e do mal, sendo anjo ou demônio, o próprio diabo, que fora um anjo caído, pôde voltar a ser uma entidade do bem por meio das religiões afro-brasileiras. Por isso, o Exu-demônio (uso o hífen como sinal desta leitura) nunca representa o mal absoluto (SILVA, 2015, p.29-32).

Na cosmovisão umbandista, portanto, deus e o diabo estão, em certa medida, juntos e unidos– entrelaçados. E, fundamentalmente, não há um outro diabólico – fora – a ser extinto porque o Diabo também está aqui, ao lado, saudado, reverenciado e dentro de cada um. Assim como Deus. Nas minhas andanças por casas e templos religiosos (umbanda e candomblé), já ouvi dizer que “Exu não é bom nem mau, Exu é justo”. E que, à Xangô, o orixá da Justiça, “não se deve pedir justiça, mas misericórdia”.

Permitam-me terminar com uma experiência pessoal – uma narrativa religiosa. Porque é disso que as religiões tratam: de narrativas que propõem reflexões e cursos de ação, que oferecem conselhos, fazem sugestões. Em uma consulta com uma preta velha, Vovó Cambinda do Oriente, entidade de uma médium que é uma grande amiga[x], lá pelas tantas ela me explicou mais ou menos o seguinte: “filho, quando você se olha no espelho e, na imagem refletida, vê algo errado ou fora do lugar, você se arruma, certo? Você não mexe no espelho… O que as pessoas não entendem é que não tem um espelho pra cada um olhar o que tem dentro de si. O espelho que vocês têm são uns aos outros. Mas, quando vocês veem alguma coisa errada ou fora do lugar nos outros, vocês tentam mudar e ajeitar os outros, não vocês mesmos, mas vocês não mexem no espelho para arrumar o próprio cabelo…”

Gilberto Gil, que, além de ser um homem velho e preto, é um Preto Velho, comenta assim a sua Esotérico: “não adianta nem me abandonar, porque mistérios sempre há de pintar por aí… se não for comigo, vai ser com outro… segure a sua barra, que eu seguro a minha”.[xi]

Esse me parece ser um dos significados do potencial ecumênico e inclusivo das religiões de matriz indo-africana: não há pretensão de converter o mundo. O bem e o mal não estão fora, estão dentro de cada um de nós. E cada um que cuide de si.

*Daniel Soares Rumbelsperger Rodrigues é doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).

Referências


BARBOSA. Rui. [1921]. Oração aos moços; edição popular anotada por Adriano da Gama Kury. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997.

BENJAMIN, Walter. [1936]. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. Obras escolhidas, v.1.

______. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. Obras escolhidas, v.3.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.

CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros, (8), 67-89, 1970.

FREYE, Gilberto. [1933].Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2005.

FREUD, Sigmund. [1923]. Uma neurose do século XVII envolvendo o demônio. In: FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Obras completas, volume 15. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

______. [1910]. Cinco lições de psicanálise. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1974.

LACAN, Jacques.[1972-1973].O seminário: Livro 20:mais, ainda. Rio de Ja­neiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

LUEPNITZ, Deborah. Os porcos-espinhos de Schopenhauer: a intimidade e seus dilemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

NOSSO Sagrado. Direção, roteiro e argumento de Fernando Sousa, Gabriel Barbosa e Jorge Santa. Rio de Janeiro: Quiprocó Filmes, 2017.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

SILVA, Vagner Gonçalves. Entre a gira de fé e Jesus de Nazaré: relações socioestruturais entre neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras. In: Vagner Gonçalves da Silva (Org.). Intolerância religiosa: Impactos do Neopentecostalismo no Campo Religioso Afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2007.

______. Exu do Brasil: tropos de uma identidade afro-brasileira nos trópicos. Revista de antropologia. São Paulo, USP, vol. 55, nº. 2, 2012.

______. Exu: o guardião da casa do futuro. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.

SIMMEL, Georg. [1909]. A ponte e a porta. In: Revista de ciências sociais – política & trabalho, n . 12, 11-15, 1996.

Notas


[i] Recentemente, foi objeto de certa repercussão (nas mídias em geral) o episódio em que, num ponto alto de sua pregação, o conhecido padre Fabio de Melo disse o seguinte: “meu Deus do céu, fizeram uma macumba pra mim. Se você achar, se você de fato acredita que uma galinha preta na porta da sua casa com um litro de cachaça tem o poder de trazer destruição na sua casa, na sua vida, você não conhece a força do Cristo ressuscitado. Com todo respeito a quem faz a macumba, pode fazer na porta da minha casa que se tiver fresco a gente come”; cf. https://www.metropoles.com/celebridades/padre-fabio-de-melo-e-acusado-de-intolerancia-religiosa.

[ii] Ver, por exemplo, Silva (2007).

[iii] Meu ponto de vista, aqui, é muito pessoal e não falo em nome da umbanda ou de nenhuma casa; embora eu vista branco e, devidamente iniciado, faça parte de uma casa de umbanda, de modo que a religiosidade umbandista ocupa uma significativa dimensão afetiva na minha vida, no meu cotidiano e na minha história, eu me identifico com a fala de Mateus Nachtergaele ao dizer que se consideraum “ateu do tipo que ajoelha e reza”.

[iv] Veja-se, por exemplo, a campanha Liberte Nosso Sagrado, da qual o documentário Nosso Sagrado é um dos frutos e instrumentos. O documentário é uma produção da Quiprocó Filmes e tem roteiro, direção e argumento de Jorge Santana, Gabriel Barbosa e Fernando Sousa, ao qual agradeço pelos comentários a uma primeira versão desse texto. O documentário relata a história da luta pela libertação das peças religiosas apreendidas pelas forças policiais do estado do Rio de Janeiro quando da criminalização da umbanda e do candomblé (durante a Primeira República e a Era Vargas).

[v] É interessante notar que a riqueza que historicamente se produziu através das trocas e intercâmbios artísticos entre as chamadas “cultura popular” e “cultura erudita” no Brasil (caso do samba, por exemplo) deu-se simultaneamente à destruição de muitos outros mundos. Isto é, o novo mundo construído nessa parte da América do Sul o foi através da aniquilação e do silenciamento de muitos outros mundos e cosmovisões – e esse processo destrutivo teve como vetor central a religiosidade cristã ocidental, num processo, como diz Ailton Krenak, que se estende até hoje: as guerras de conquista desenrolam-se até hoje num moto contínuo, sem parar, com indisfarçável dimensão religiosa. Gilberto Freyre (1933, p.92), por exemplo, dizia que “o catolicismo foi realmente o cimento da nossa unidade” – e a “demonização de Exu”, com a contraparte da “exucização do demônio cristão e sua feminização por meio da figura da Pombagira” (SILVA, 2012, p.86), foi sem dúvida uma componente destacada daquele “cimento”. Os tempos atuais, de ascensão neofascista e absolutização das noções de bem e mal que obstrui e interrompe a convivência e a coexistência dos diferentes no espaço público, são especialmente perigosos para uma figura como Exu, que se define pelo seu caráter de mensageiro e mediador.

[vi] O mesmo princípio vale para outros casos de assimetrias de poder: homens e mulheres, cis e trans, héteros e homossexuais – dentre outros.

[vii] Retiro essa reflexão do ensaio que abre Os porcos espinhos de Schopenhauer: a intimidade e seus dilemas, da psicanalista Deborah Anna Luepnitz; o título do pequeno ensaio introdutório, Abrindo espaço no amor para o ódio, inspira-se numa passagem da poetisa Molly Peacock (“tem de haver espaço no amor para o ódio”) e na seguinte de Freud (1921, p.43): “conforme o testemunho da psicanálise, quase toda relação sentimental íntima e prolongada entre duas pessoas – matrimônio, amizade, o vínculo entre pais e filhos – contém um sedimento de afetos de aversão e hostilidade, que apenas devidoà repressão não é percebido”. É esse tipo de abordagem que levou Lacan (1972-1973, p.122) a falar em “amódio”.

[viii] Veja-se, por exemplo, dentre vários possíveis, essa inter-ação, em meio à pandemia do novo coronavírus, entre a Casa do Perdão (liderada pela Mãe Flávia) e o Centro de Recuperação Feminino Kairós (liderado pelo Pastor Vanderlei):

https://www.facebook.com/123091814527932/posts/1374501742720260/?sfnsn=scwshmo&extid=uOos8cQUN5pyaGbl&d=n&vh=e.

[ix] Acredito que podemos dizer – ainda que de maneira muito superficial – que a umbanda é a síntese original, criativa e variada (já que não há centralização, hierarquia institucional, um corpo fixo de ritos e rituais e um único livro sagrado) do candomblé (ele mesmo com distintas nações – como ketu, jêje e banto), do catolicismo popular, do espiritismo kardecista e das religiosidades indígenas (também heterogêneas). Assim, a tradição de Cristo faz parte não apenas das vertentes religiosas católicas e evangélicas, mas também da umbanda.

[x] Essa mesma amiga, numa crítica à primeira versão desse texto, me atentou para uma passagem do Fausto, de Goethe, que eu não conhecia e que se encaixa aqui perfeitamente, em que Mefistófeles assim se pronuncia:

“O Gênio sou que sempre nega!
E com razão; tudo o que vem a ser
É digno só de perecer;
Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais.
Por isso, tudo a que chamais
De destruição, pecado, o mal,
Meu elemento é, integral”.

[xi] A fala de Gilberto Gil consta no documentário biográfico lançado em 2019, dirigido por Lula Buarque de Holanda e intitulado “Gilberto Gil – Antologia Volume 1”.

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