As ideias precisam circular. Ajude A Terra é Redonda a seguir fazendo isso.

Como viver a Páscoa no meio de tantas crises?

Imagem: Jeffry Surianto
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

A ressurreição não é a memória de um passado, mas a celebração de um presente, sempre presente a nos suscitar alegria

Muitas crises estão assolando a humanidade: a crise econômica derrubando grandes bancos nos países centrais, a crise política com a ascensão mundial das políticas de direita e de extrema direita, a crise das democracias em quase todos os países, a crise do Estado cada vez mais burocratizado, a crise do capitalismo globalizado que não consegue resolver os problemas que ele mesmo criou, gerando uma acumulação de riqueza em pouquíssimas mãos num mar de pobreza e de miséria, a crise ética, pois não contam mais valores da grande tradição da humanidade, mas o vale tudo pós moderno (every think goes), a crise do humanismo pois impera relações de ódio e de barbárie nas relações sociais, a crise de civilização que começou a introduzir a inteligência artificial autônoma que articula bilhões de algoritmos, toma decisões, independente da vontade humana, pondo em risco nosso futuro comum, a crise sanitária que atingiu toda a humanidade pelo Covid-19, a crise ecológica que, se não cuidarmos da biosfera, nos alerta para uma tragédia possível e terminal do sistema-vida e do sistema-Terra. Por detrás de todas estas crises há uma crise ainda maior: a crise do espírito que representa uma crise da vida humana neste planeta.

O espírito é aquele momento da vida consciente no qual nos damos conta de que pertencemos a um todo maior, terrenal e cósmico, de que estamos à mercê de uma energia poderosa e amorosa que sustenta todas as coisas e a nós mesmos. Temos a faculdade específica de com ela poder dialogar e a ela nos abrir, identificando um sentido maior que tudo perpassa e que atende ao nosso impulso de infinitude. A vida do espírito (que os neurólogos chamam de “ponto Deus” no cérebro) vem soterrada pela vontade irrefreável de acumulação de bens materiais, pelo consumismo, pelo egoísmo e pela falta profunda de solidariedade.

Depois de agosto de 1945, com os EUA lançando duas bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, nos abriu a consciência de que podemos nos auto-aniquilar. Esse risco aumentou com a corrida armamentista, incluindo hoje nove nações, com armas químicas, biológicas e cerca de 16 mil ogivas nucleares. A atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia fez com que Vladimir Putin ameaçasse o uso de armas nucleares, trazendo o temor apocalíptico do fim da espécie humana.

Nesse cenário como celebrar a maior festa da cristandade que é a Páscoa, a ressurreição do crucificado, Jesus de Nazaré? Ressurreição não deve ser entendida como a reanimação de um cadáver como o de Lázaro. Ressurreição, nas palavras de São Paulo representa a irrupção do “novissimus Adam (1Cor 15, 45), vale dizer, do ser humano novo, cujas infinitas virtualidades presentes nele (somos um projeto infinito) afloram totalmente. Desta forma comparece como uma revolução na evolução, uma antecipação do fim bom da vida humana. O Ressuscitado ganhou uma dimensão cósmica, nunca mais deixou o mundo e enche todo o universo.

Nesse sentido a ressurreição não é a memória de um passado, mas a celebração de um presente, sempre presente a nos suscitar alegria, o suave sorriso na certeza de que a morte matada de Jesus de Nazaré, a sexta-feira santa, é só uma passagem para uma vida, livre da morte e plenamente realizada: a ressurreição. O horizonte sombrio se desanuviou e o irrompeu o sol da esperança.

Pensando em termos do processo cosmogênico que tudo engloba, a ressurreição não está fora dele. Ao contrário, é uma emergência nova da cosmogênese e daí seu valor universal, para além do salto da fé. A ressurreição é a síntese da dialética, de onde Hegel tirou sua dialética, da vida (tese), da morte (antítese) e da ressurreição (síntese). Esta é o termo de tudo, agora antecipado para nossa alegria. É o gênesis verdadeiro, não do começo, mas do fim já alcançado.

Considero a versão do evangelho de São Marcos sobre a ressurreição a mais realista e verdadeira. Ele termina o texto com Jesus ressuscitado, dizendo às mulheres: “ide dizer aos apóstolos e a Pedro que ele (o Ressuscitado) vos precede na Galileia. Lá o vereis com vos disse” (Mc 16,7). E assim termina. As aparições relatadas, é convicção dos estudiosos, seria um acréscimo posterior. Quer dizer: todos estamos a caminho da Galileia para encontrar o Ressuscitado.

Ele pessoalmente ressuscitou, mas sua ressurreição não se completou enquanto seus irmãos e irmãs e a inteira natureza ainda não ressuscitaram. Estamos a caminho, esperados pelo Ressuscitado que ainda não se mostrou totalmente. Por esta razão, o mundo fenomenoligicamente continua o mesmo ou pior, com guerras e momentos de paz, com bondades e perversidades, como se não tivesse havido a ressureição como sinal de superação desta realidade ambígua.

Mesmo assim depois que Cristo ressuscitou não podemos mais ficar tristes: o fim bom está garantido.

Boa festa de Páscoa para todos os que puderem realizar este percurso e também para aqueles que não o podem realizar.

*Leonardo Boff é teólogo e filósofo. Autor, entre outros livros, de A ressurreição de Cristo e a nossa na morte (Vozes).


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.800 autores.
Ronald Rocha Marcos Aurélio da Silva Ricardo Fabbrini Sergio Amadeu da Silveira Tarso Genro Atilio A. Boron Francisco Fernandes Ladeira João Paulo Ayub Fonseca Bernardo Ricupero Leonardo Sacramento Plínio de Arruda Sampaio Jr. Berenice Bento João Sette Whitaker Ferreira Caio Bugiato Rubens Pinto Lyra Leonardo Boff Andrew Korybko Vladimir Safatle Roberto Noritomi Lucas Fiaschetti Estevez José Machado Moita Neto Paulo Martins Luiz Augusto Estrella Faria Luiz Werneck Vianna Chico Alencar Luciano Nascimento Airton Paschoa Ricardo Antunes Jean Marc Von Der Weid Ladislau Dowbor Paulo Nogueira Batista Jr Matheus Silveira de Souza André Singer Sandra Bitencourt José Raimundo Trindade Bento Prado Jr. Eleutério F. S. Prado José Costa Júnior Manchetômetro José Geraldo Couto Luiz Bernardo Pericás Bruno Machado João Lanari Bo Milton Pinheiro Daniel Brazil Vinício Carrilho Martinez Marcelo Módolo Annateresa Fabris Armando Boito Dennis Oliveira Walnice Nogueira Galvão Tales Ab'Sáber Rafael R. Ioris Roberto Bueno Luís Fernando Vitagliano Ari Marcelo Solon Eliziário Andrade Boaventura de Sousa Santos Dênis de Moraes Ruben Bauer Naveira Julian Rodrigues Marilena Chauí Fernão Pessoa Ramos Fábio Konder Comparato Marcos Silva Juarez Guimarães Lincoln Secco Antônio Sales Rios Neto Luiz Eduardo Soares Leda Maria Paulani Michael Roberts Paulo Fernandes Silveira Luis Felipe Miguel Érico Andrade Ricardo Abramovay Benicio Viero Schmidt Claudio Katz Liszt Vieira Celso Frederico Eugênio Trivinho Carla Teixeira Alysson Leandro Mascaro Otaviano Helene Kátia Gerab Baggio Luiz Roberto Alves Anselm Jappe Daniel Costa Celso Favaretto Marcelo Guimarães Lima José Luís Fiori Vanderlei Tenório José Dirceu Henri Acselrad Remy José Fontana Afrânio Catani Gabriel Cohn Igor Felippe Santos Eleonora Albano Gilberto Lopes Jorge Branco Marilia Pacheco Fiorillo Priscila Figueiredo Ronald León Núñez Flávio R. Kothe Leonardo Avritzer Gerson Almeida Luiz Carlos Bresser-Pereira Eugênio Bucci Chico Whitaker Tadeu Valadares Anderson Alves Esteves Mário Maestri Marjorie C. Marona Elias Jabbour Jean Pierre Chauvin José Micaelson Lacerda Morais Alexandre de Lima Castro Tranjan André Márcio Neves Soares Jorge Luiz Souto Maior João Carlos Loebens Thomas Piketty Marcus Ianoni Yuri Martins-Fontes Luiz Costa Lima Antonio Martins Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ricardo Musse João Carlos Salles Michael Löwy Carlos Tautz Heraldo Campos Everaldo de Oliveira Andrade Valério Arcary Denilson Cordeiro Alexandre de Freitas Barbosa Eduardo Borges Antonino Infranca Alexandre Aragão de Albuquerque Flávio Aguiar Carlos Águedo Paiva Maria Rita Kehl Paulo Capel Narvai João Feres Júnior Daniel Afonso da Silva Mariarosaria Fabris Lorenzo Vitral Manuel Domingos Neto Osvaldo Coggiola Samuel Kilsztajn Luiz Renato Martins Ronaldo Tadeu de Souza Slavoj Žižek Paulo Sérgio Pinheiro Fernando Nogueira da Costa Luiz Marques Francisco Pereira de Farias Rodrigo de Faria Henry Burnett João Adolfo Hansen Francisco de Oliveira Barros Júnior

NOVAS PUBLICAÇÕES