Transatlântico

Henry Moore OM, CH Tempestade no Mar, 1970–4
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO PAGLIUSO REGATIERI*

Comentário sobre a série produzida pela Netflix

Transatlântico é uma série produzida pela Netflix e pelo Studio Airlift de Berlim que estreiou na plataforma de streaming no início deste mês de abril. Baseada no livro The Flight Portfolio (2019), de Julie Orringer, teve à frente de sua produção a norte-americana de origem judia Anna Winger, que vive em Berlim.

A série acompanha refugiados europeus do nazismo que se encontram na cidade portuária francesa de Marselha buscando tomar um barco que os leve para longe daquele continente – e, sobretudo, para os Estados Unidos. Ou, senão, ao menos cruzar a fronteira espanhola por terra e chegar a Lisboa para fazer o mesmo de lá.

O ano é 1940 e está em vigor o regime colaboracionista de Vichy, ainda que o sul da França, onde se localiza Marselha, não estivesse ainda ocupado pelas tropas alemãs como era o caso do restante do país. É nessa França ocupada e nessa Marselha ainda não totalmente sob controle nazista que Transatlântico coloca em cena personagens como Walter Benjamin, Hannah Arendt, Marc Chagall, Marcel Duchamp, André Breton, Jacqueline Lamba, Max Ernst, Walter Mehring e Albert Hirschman.

Para leitores de Walter Benjamin, custa a acreditar vê-lo na Netflix, ainda que, por outro lado, seja justamente esse tipo de movimento de apropriação que a indústria cultural leva a cabo incessantemente. Leitores de Hannah Arendt já a haviam visto no filme sobre ela lançado em 2012 e que obteve algum sucesso em circuitos semicomerciais de cinema.[i] Walter Benjamin e Hannah Arendt são retratados na série de forma caricata, ele falando sobre progresso e ela sobre apatridia.

Albert Hirschman, na altura um jovem de 25 anos, é um dos três personagens centrais que articulam a trama, juntamente com Mary Jayne Gold e Varian Fry, esses dois últimos norte-americanos representantes do American Emergency Rescue Committee. Personagem com ares de herói pop, o impetuoso Albert Hirschman ainda não é aquele que mais tarde trabalhará na Colômbia, fará carreira acadêmica nos Estados Unidos, discutirá temas de economia do desenvolvimento, será o propositor da abordagem do possibilismo e contribuirá para o debate sobre democracia, ganhando um centro com seu nome em Genebra.[ii]

Diferentemente de Gold e Fry, comprometidos com a causa dos refugiados, o pragmático cônsul norte-americano em Marselha encara a guerra como business as usual e considera que os nazistas, ao contrário dos comunistas, ao menos não são contra o mercado.

A despeito de sua estilização que não foge ao padrão comercial da Netflix, a série, que com apenas sete episódios pode agradar àqueles que não gostam desse formato, tem o mérito de colocar um público mais amplo em contato com figuras como Walter Benjamin e Hannah Arendt e o drama de sua fuga do nacional-socialismo. Transatlântico também joga alguma luz sobre o papel dúbio do governo e de indivíduos norte-americanos no período – ainda que a figura do cônsul na série, Graham Patterson, seja uma personagem fictícia.

Mas talvez a questão menos explorada até agora nas telas tenha sido o papel dos filhos das ex-colônias francesas na organização do que viria a se tornar a Resistência Francesa. Só por retratar tal conexão, já valeria assistir Transatlântico. O que veio depois, com o imperialismo europeu em frangalhos ao final da Segunda Guerra Mundial, foi o fortalecimento da consciência anticolonial e as independências das novas nações em África e na Ásia.

O emblema de tal consciência na série é a personagem ficcional Paul Kandjo, que, segundo o ator que deu vida a ela, Ralph Amoussou, foi composta como um amálgama de figuras históricas. Em certo momento, Kandjo afirma que o nazismo representa a colocação em prática na Europa daquilo que os europeus faziam nas colônias. Tal conclusão aparecerá, no início da década de 1950, em obras como Discurso sobre o colonialismo (1950), de Aimé Césaire, e As origens do totalitarismo (1951), de Hannah Arendt.

Hitler queria construir um império de 1.000 anos, mas, como as pessoas não fazem a história como querem, a guerra que seu regime desencadeou acabou por contribuir decisivamente para a dissolução do imperialismo europeu.

*Ricardo Pagliuso Regatieri é professor de sociologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor, entre outros livros, Capitalismo sem peias: A crítica da dominação nos debates no Instituto de Pesquisa Social no início da década de 1940 e na elaboração da Dialética do Esclarecimento (Humanitas).

Notas


[i] O filme em questão é Hannah Arendt, dirigido por Margarethe von Trotta.

[ii] Trata-se do Albert Hirschman Centre on Democracy, vinculado ao Graduate Institute of International and Development Studies, e atualmente codirigido pela socióloga brasileira Graziella Moraes Dias da Silva e pelo historiador indiano Gopalan Balachandran.


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Jean Pierre Chauvin Jean Marc Von Der Weid Carlos Tautz Juarez Guimarães Rubens Pinto Lyra Eleutério F. S. Prado Julian Rodrigues Anselm Jappe José Dirceu Sergio Amadeu da Silveira Daniel Brazil Henry Burnett Luiz Werneck Vianna Leda Maria Paulani Yuri Martins-Fontes Lucas Fiaschetti Estevez Marilia Pacheco Fiorillo Ricardo Musse Carla Teixeira Eugênio Bucci Eugênio Trivinho Paulo Sérgio Pinheiro Renato Dagnino Eliziário Andrade Vladimir Safatle Bruno Fabricio Alcebino da Silva Celso Frederico Érico Andrade Luiz Renato Martins Andrés del Río Berenice Bento Benicio Viero Schmidt Chico Alencar Ari Marcelo Solon Bruno Machado Michel Goulart da Silva Paulo Nogueira Batista Jr Alexandre de Lima Castro Tranjan Tadeu Valadares João Carlos Salles Francisco Pereira de Farias Caio Bugiato Armando Boito Kátia Gerab Baggio Lincoln Secco Gilberto Lopes Bernardo Ricupero João Sette Whitaker Ferreira Igor Felippe Santos Antônio Sales Rios Neto Luciano Nascimento Boaventura de Sousa Santos Luiz Carlos Bresser-Pereira Vinício Carrilho Martinez Marcelo Guimarães Lima Marcelo Módolo André Singer Slavoj Žižek Michael Roberts Dênis de Moraes Annateresa Fabris Paulo Fernandes Silveira Fábio Konder Comparato Eduardo Borges Milton Pinheiro Paulo Capel Narvai Tarso Genro Alexandre Aragão de Albuquerque Daniel Afonso da Silva Ricardo Abramovay André Márcio Neves Soares José Costa Júnior Ladislau Dowbor Ronald León Núñez João Adolfo Hansen Vanderlei Tenório Otaviano Helene Bento Prado Jr. Leonardo Avritzer Henri Acselrad Jorge Luiz Souto Maior Celso Favaretto Michael Löwy José Machado Moita Neto Alysson Leandro Mascaro Francisco de Oliveira Barros Júnior Mariarosaria Fabris Ronaldo Tadeu de Souza João Lanari Bo Fernando Nogueira da Costa Tales Ab'Sáber Atilio A. Boron Gerson Almeida Heraldo Campos Ricardo Antunes Everaldo de Oliveira Andrade Sandra Bitencourt Eleonora Albano Matheus Silveira de Souza João Paulo Ayub Fonseca Elias Jabbour João Feres Júnior Marcos Silva Marcus Ianoni Leonardo Sacramento Dennis Oliveira Valerio Arcary Paulo Martins Antonino Infranca Ricardo Fabbrini Valerio Arcary Remy José Fontana Walnice Nogueira Galvão Andrew Korybko Rodrigo de Faria Jorge Branco Ronald Rocha Daniel Costa Antonio Martins Thomas Piketty Claudio Katz Chico Whitaker Flávio R. Kothe Manchetômetro José Raimundo Trindade Marilena Chauí Priscila Figueiredo Plínio de Arruda Sampaio Jr. Leonardo Boff Luis Felipe Miguel Flávio Aguiar Gabriel Cohn José Luís Fiori Liszt Vieira Marjorie C. Marona Salem Nasser Marcos Aurélio da Silva Fernão Pessoa Ramos Osvaldo Coggiola Maria Rita Kehl Alexandre de Freitas Barbosa Luiz Roberto Alves José Micaelson Lacerda Morais Rafael R. Ioris Airton Paschoa Samuel Kilsztajn Luiz Bernardo Pericás João Carlos Loebens Francisco Fernandes Ladeira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Denilson Cordeiro Luiz Eduardo Soares Afrânio Catani José Geraldo Couto Luís Fernando Vitagliano Manuel Domingos Neto Luiz Marques Gilberto Maringoni Lorenzo Vitral Mário Maestri

NOVAS PUBLICAÇÕES