Por RADHIKA DESAI*
Rotular a opressão atual como um retorno ao feudalismo pode ser o último ato de idealização de um capitalismo que nunca foi benigno ou competitivo
O enorme aumento do rentismo às custas da atividade produtiva, assim como a deformação da política que veio para sustentá-lo, levaram muitos a propor que o capitalismo foi transformado em “neofeudalismo”. Embora haja casos em que foi usada por políticas populistas de direita (Kotkin, 2020), essa caracterização tem sido empregada geralmente com o propósito de fortalecer a esquerda. Pretende-se, assim, dotá-la de compreensões que incrementam a sua capacidade de enfrentar uma estrutura social cada vez mais opressora e que está baseada no rentismo (Dean, 2020).
Na avaliação desse problema, foca-se aqui o excelente artigo de Katherine Stone e Robert Kuttner (2020). Eis que ele oferece um relato abrangente e sucinto do argumento de esquerda que considera o sistema econômico atual como neofeudal. Eles listam as principais características dessa transformação: “pautas regulatórias e jurisprudenciais abusivas e corruptas, revogações de leis que protegem os direitos trabalhistas, substituição da regulação pública da atividade comercial por “tribunais privados”. Constrói-se, assim, “um regime proprietário” que permite que as plataformas tecnológicas “esmaguem a concorrência e invadam a privacidade dos consumidores”. Fomenta-se, ademais, uma “balcanização” da “investigação científica… por acordos de confidencialidade e abusos de patentes” de modo que “o conhecimento científico passa a ser ‘possuído’ por entidades privadas.”
Sem dúvida, essas mudanças são reais. Ademais, todos nós poderíamos adicionar outras reclamações à lista de Katherine Stone e Robert Kuttner. Sem dúvida, essas mudanças têm sido ruins para grande parte da sociedade, exceto para uma pequena elite de grandes rentistas. A questão, contudo, é saber se tudo isso leva à emergência de algo novo – o “neofeudalismo” – que teria substituído o sistema capitalista neoliberal pré-existente.
Afirmo que isso não é verdade. E que não se está diante apenas de uma questão de terminologia. Aqueles que usam o rótulo de neofeudalismo idealizam o capitalismo e até mesmo o neoliberalismo, quer pretendam isso ou não. É crucial insistir que nem o neoliberalismo nem o capitalismo se transformaram em neofeudalismo. As características monopólicas e rentistas da economia contemporânea, que levam tantos a chamá-la de neofeudal, não são estranhas nem ao capitalismo nem ao neoliberalismo. E hoje, esses dois não são distintos; o neoliberalismo, ademais, parece ser a forma definitiva do capitalismo (Desai, 2023).
O rótulo neofeudal baseia-se num mal-entendido fundamental tanto sobre o neoliberalismo quanto sobre o capitalismo, assim como sobre a questão da centralidade do monopólio neste último. Baseia-se, também, no equívoco de equiparar o capitalismo à forma específica que ele assumiu durante a “era de ouro” do pós-guerra. É crucial enfatizar que, durante esse período, apesar de transformações significativas, o sistema permaneceu capitalista, mesmo se muitos afirmavam na época que o capitalismo havia se transformado numa “economia mista”. Hoje, porém, é igualmente importante – senão mais – enfatizar o outro lado do argumento: que, embora fosse capitalismo, era já um capitalismo monopolista.
Mostro em sequência, primeiro, como Katherine Stone e Robert Kuttner, considerados aqui como representantes reflexivos de todo um conjunto de autores, acabam idealizando o capitalismo, e até mesmo o neoliberalismo, ao suporem que o advento do neofeudalismo.
Discutirei, depois, o lugar do monopólio no capitalismo, tanto teórica quanto historicamente; mostro, então, os papeis do juro e da renda de aluguel no processo da monopolização. Indicarei, finalmente, o verdadeiro caráter do capitalismo do pós-guerra, contra o qual a suposta era neofeudal costuma ser contrastada. Comentarei, também, aqueles aspectos mais valorizados por Katherine Stone e Robert Kuttner.
Capitalismo e neoliberalismo idealizados
Ao afirmar que o sistema atual dos EUA é “neofeudal”, Katherine Stone e Robert Kuttner o opõem não ao capitalismo como tal, mas a algo que chamam de “estado democrático”. Afirmam que os “comuns democráticos” serviram, na maior “parte do século XX, como contrapesos ao poder crescente da riqueza concentrada por meio da economia capitalista.”
No entanto, opor o neofeudalismo à “democracia”, ao invés de fazê-lo ao próprio capitalismo, é comparar o certo com o errado, um modo social de produção com uma fase da vida de outro. Isso não tem sentido. Eles tomam esse caminho porque equiparam, sem admitir, o capitalismo a tal “estado democrático”. Pois, se o capitalismo daquela época não diferisse [imaginariamente] muito do atual, não haveria como classificar este último como neofeudal.
Além disso, ao culparem o feudalismo pelos males do sistema contemporâneo, Katherine Stone e Robert Kuttner isentam o capitalismo e o neoliberalismo de culpa. Embora raramente usem o termo capitalismo, claramente consideram o neoliberalismo pior do que o capitalismo e o neofeudalismo como ainda pior do que o neoliberalismo.
E isso fica claro quando reclamam que “as elites estão buscando algo apropriadamente descrito como uma nova forma de propriedade feudal, por meio da qual domínios inteiros do direito comum, da propriedade pública e dos direitos dos cidadãos ficam sob o controle exclusivo de empresas privadas” e quando reclamam que tais mudanças jurídicas “não são desregulamentações meramente neoliberais… [mas]… jurisprudência privada legalmente sancionada – ou seja, neofeudalismo.”
Claro, a contradição em que caem já é evidente aqui, pois a propriedade privada é uma instituição tipicamente capitalista; no feudalismo, a propriedade como direito absoluto de disposição, incluindo o direito de alienação (venda) sem que obrigações recíprocas intervenham, não existia. A propriedade feudal estava gravada, como Katherine Stone e Robert Kuttner reconhecem, com “formas de obrigação recíproca entre o senhor, o vassalo e o servo; entre o rei e a aristocracia; entre a Igreja e a Coroa; e entre o aprendiz, o comerciante e o mestre.”
Katherine Stone e Robert Kuttner supõem que o neoliberalismo, assim como o capitalismo, distinguem-se pela existência de competição, mercados e lucros, enquanto monopólio, juros e rendas, cuja ubiquidade atual ressaltam, caracterizam supostamente o feudalismo. No entanto, fica claro o quão problemáticas são tais suposições quando entramos na teoria e história relevantes.
Monopolização no capitalismo e neoliberalismo
Embora o capitalismo tenha passado por uma fase inicial competitiva, ele sempre esteve destinado a ser monopolista. E esse fato gravou a matriz política da economia austríaca, da qual se originou intelectualmente o neoliberalismo. A imagem do capitalismo, é bem certo, sempre girou em torno de mercados livres e de competição.
Contudo, Karl Marx percebeu desde cedo que essa representação era falsa. Por isso, repreendeu os socialistas como Proudhon por caírem nessa ilusão, argumentando que a competição não era um estado, mas uma dinâmica cujo resultado inevitável era o monopólio (Marx,1981). Ao eliminar os produtores mais fracos, a concorrência tende a se transformar em monopólio; enquanto dura, ela representa o auge do capitalismo enquanto avanço no desenvolvimento das forças produtivas; ao ser superada, termina também o seu caráter historicamente progressista.
O capitalismo fez as forças da produção avançarem principalmente socializando o trabalho, por meio da criação de um círculo cada vez maior de produtores, os quais participavam de interações cada vez mais complexas. Nesse processo, a especialização crescente impulsionava a introdução de máquinas; mediante o aumento do capital investido, a escala da produção também aumentava.
No início do capitalismo, o trabalho era socializado entre pequenos produtores; cada um deles se especializava na produção de um determinado produto ou num segmento de um processo produtivo que envolvia várias empresas. Mais tarde, na fase de monopólio, a produção passa a ser socializada dentro das empresas, cujo tamanho cresce frequentemente até proporções gigantescas, transformando-as em vastos aparelhos de produção planejada; tem-se então o auge do desenvolvimento das “forças produtivas [que] dormiam no colo do trabalho social” (Marx e Engels,1967).
Claro, assim como na apreciação da exploração, também no caso da análise científica do monopólio, Marx tomava sempre o capitalismo em sua forma pura de comportamento. Por exemplo, supunha que o trabalho recebia o seu preço integral para mostrar que a exploração ocorria mesmo quando essa situação prevalecia. Da mesma forma, assumia que apenas processos intrínsecos de concorrência estavam envolvidos na formação do monopólio.
Contudo, Marx nunca foi ingênuo a ponto de acreditar que os capitalistas deixavam de empregar todos os meios políticos à sua disposição para baixar o preço do trabalho abaixo de seu valor, para eliminar a concorrência por outros meios que não a competitividade de custos. O ponto importante aqui é ressaltar que a exploração e o avanço em direção ao monopólio por meio da competição eram inerentes à produção capitalista. Mesmo que meios políticos sejam usualmente empregados na luta para a obtenção de lucros maiores, os mecanismos próprios do capitalismo levam a busca de tal objetivo. (Desai, 2023).
Dado que alardeia o papel dos mercados livres e da concorrência, vale lembrar que a economia marginalista como um todo surgiu, sob diferentes formas, justamente quando o capitalismo estava entrando em sua fase monopolista. Só poderia, portanto, estar fundamentada numa mistificação intelectual sobre essa questão crucial. Ora, esse desvio era especialmente verdadeiro para a corrente mais ideologicamente radical do pensamento marginalista, a austríaca.
As gerações mais antigas dos economistas austríacos simplesmente negavam que a concorrência engendrava o monopólio, reconhecendo apenas aquele monopólio que fora criado politicamente e que suspostamente distorcia a lógica brilhante dos mercados (Salerno et al., 2021). Contudo, em meados do século passado, austríacos como Friedrich Hayek não podiam mais evitar essa questão. Por isso, esse autor em seu tratado, O caminho para a servidão (1944), adotou uma nova estratégia argumentativa.
Por um lado, ele lutou para negar a tendência ao monopólio, agarrando-se aos fragmentos de evidências que ainda podiam ser encontradas. Por outro lado, com tais evidências eram incapazes de encobrir os fatos cada vez mais proeminentes sobre a existência de monopólios, ele transferiu a legitimação do capitalismo de “laissez-faire” para o terreno do “planejamento para a competição”.
Essa operação estava longe de ser original: a lei antitruste dos EUA do início do século XX já havia sinalizado que o único caminho para o capitalismo era os governos intervirem para garantir a concorrência. Desde então, o debate nos EUA tem sido entre “liberais” que buscam fortalecer a fiscalização antitruste, algo que só é capaz de transformar o monopólio em oligopólio, e os defensores radicais do capitalismo que buscam eliminar tais restrições para permitir a proliferação de monopólios.
O neoliberalismo, assim como a economia marginalista, especialmente as suas correntes de livre mercado mais ideologicamente radicais, como a austríaca, emergiu quando a classe capitalista raspava o fundo do seu tacho intelectual em meio à crise de estagflação dos anos 1970. Ele e os seus rebentos nasceram guardando essa mistificação intelectual que insiste no caráter inerentemente competitivo do capitalismo, ao mesmo tempo em que enfraquece o argumento antitruste sempre que necessário.
O movimento Law and Economics, que dominou o direito neoliberal a partir de então e que nutre o relato de Katherine Stone e Robert Kuttner, garantiu que a lei antitruste fosse reinterpretada de modo que o seu objetivo não fosse mais garantir a concorrência e o direito de “escolha do consumidor”, mas sim garantir o “bem-estar do consumidor”, uma postura paternalista que “tendia a favorecer grandes empresas dominantes no mercado” (Crouch, 2011; Desai, 2023).
Ora, esse foi processo que levou o capitalismo à sua fase atual, que Katherine Stone e Robert Kuttner e outros querem chamar de “neofeudalismo”. No entanto, essa inclinação se baseia num entendimento fundamentalmente equivocado sobre o monopólio e sobre o seu papel no capitalismo.
*Radhika Desaié professora do Departamento de Estudos Políticos da Universidade de Manitoba (Canadá). Autora, entre outros livros de Geopolitical economy: after US hegemony, globalization and empire (Pluto Press). [https://amzn.to/3YibS3P]
Tradução: Eleutério F. S. Prado.
Referências
DEAN J. – Neofeudalism: The End of Capitalism? Los Angeles Review of Books, 12/05/2020: https://lareviewofbooks.org/article/neofeudalism-the-end-of-capitalism/.
DESAI R. – Look Back in Hope? Reassessing Regulation Theory, in K. Van der Pijl (ed.), The International Political Economy of Production, Edward Elgar, Cheltenham. 2015.
____________ – Finance Capital and Contemporary Financialization, in J. Dellheim, F.O. Wolf (eds), Hilferding, Macmillan Palgrave, London, 2021.
____________ – Capitalism, Coronavirus and War: A Geopolitical Economy, Routledge, London, 2023.
____________ – Lenin Was Right about the Highest Stage of Capitalism, in World Marxist Review, Vol 4 (4), 2025, pp. 11-18.
KOTKIN J. – The Coming of Neofeudalism: A Warning to the Global Middle Class, Encounter Books, New York, 2020.
MARX K. – The Poverty of Philosophy, Martin Lawrence, London, 1847.
____________ – Capital, Vol. III, Penguin, London, 1981.
MARX K., ENGELS F. – The Communist Manifesto, translated by Samuel Moore, with an Introduction by A.J.P. Taylor, Penguin, London, 1967.
SALERNO J.T., DOROBAT C.E., MCCAFFREY M.C. – Monopoly as a Culture-History Fact: Knight, Menger, and the Role of Institutions, in Journal of Institutional Economics, 17(6), pp. 1049-1064.
STONE K., KUTTNER R. 2020, “The Rise of Neofeudalism”, in TheAmerican Prospect, 2020, https://prospect.org/economy/rise-of-neo-feudalism/.
VON HAYEK F.A. – The Road to Serfdom, George Routledge and Sons, London, 1944.
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