Ignorância – uma história global

Alexander Calder, La Grand vitesse, 1969
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA

Comentário sobre o livro recente de Peter Burke

“Se existe uma sociologia do conhecimento, então deveria haver também uma sociologia da ignorância”. Este desdobramento de sua obra levou Peter Burke a publicar, em 2023, o livro Ignorance: a global history.

Tal sociologia poderia começar com a questão: Quem não sabe o quê? “Somos todos ignorantes, apenas sobre coisas diferentes…”. Por exemplo, existem cerca de seis mil línguas faladas no mundo hoje. Porém, mesmo os poliglotas ignoram 99,9% delas.

As discussões sobre ignorância precisam distinguir entre as suas muitas variedades, “ignorâncias” no plural, em paralelo com “conhecimentos”. Uma famosa distinção contrasta saber como fazer algo e saber algo ser obra do acaso, “saber como” e “saber aquilo”.

Os termos conhecer e saber referem-se ao conhecimento adquirido através do conhecimento pessoal – conhecer a própria Londres, por exemplo, em oposição a saber a existência de uma cidade chamada Londres. Cada forma de conhecimento tem uma forma de ignorância como seu oposto complementar.

Muitas variedades novas foram rotuladas e foi criada uma taxonomia elaborada, usando uma variedade de adjetivos, de “ativa” a “intencional”. Na verdade, há consideravelmente mais adjetivos em lugar das variedades descritas, uma espécie de “reinvenção da roda” resultante da especialização acadêmica, uma vez que os indivíduos em uma área de conhecimento ignoram frequentemente as descobertas em outra.

Um exemplo contrasta a ignorância da existência de algo com a ignorância da sua explicação. Epidemias e terremotos, por exemplo, são conhecidos há muito tempo, mas ninguém sabia o que os causava até há relativamente pouco tempo.

A ignorância “sancionada” refere-se a uma situação na qual um grupo, como os intelectuais ocidentais, se sente no direito de permanecer ignorante sobre outras culturas. Enquanto isso, esperam os indivíduos de outras culturas saberem sobre elas…

A ignorância (assim como o conhecimento) às vezes é fingida. O ex-presidente do Brasil pode negar o genocídio pela atitude cética quanto à epidemia e vacinação, embora tenha conhecimento do massacre (segundo maior número de mortos no mundo) permitido por sua omissão.

Outra distinção útil é entre ignorância consciente e inconsciente, onde o termo “inconsciente” é usado para significar “sem ter consciência” – sentido ou percepção possuídos pelo ser humano em relação ao moralmente certo ou errado em atos e motivos individuais – e não no sentido freudiano de subconsciente. Este é o sentimento ou conhecimento capaz de permitir ao ser humano vivenciar, experimentar ou compreender aspectos ou a totalidade de seu mundo interior.

O termo ignorância “profunda” tem sido utilizado para se referir à falta de consciência de certas questões. Inclui a falta dos conceitos necessários para colocar essas questões.

Um exemplo de ignorância profunda é a comum falta de consciência de modos de pensamento alternativos aos nossos. A circularidade é central: um modo de pensamento persiste porque é dado como certo, tomado como natural, seja no nível micro do chamado por Thomas Kuhn de “paradigma” científico, seja no nível macro de um sistema de crenças completo. Quando tentamos criticar as nossas próprias normas, os limites da autocrítica tornam-se aparentes.

Muitos historiadores e sociólogos trataram indivíduos e grupos como “crédulos” ou incapazes de criticar as suas crenças. Ao fazê-lo, ignoram a falta de acesso destes indivíduos e grupos a sistemas de crenças alternativos.

Em um sistema fechado, é difícil manter a mente aberta. É difícil, senão impossível, desafiá-lo sem alguma consciência das alternativas, geralmente surgidas como resultado de encontros entre indivíduos de culturas diferentes, alargando o horizonte de expectativas para ambos os lados.

O avestruz com a cabeça na areia – ilustração da capa do livro de Peter Burke – é um famoso símbolo de não querer saber ou conhecer, também descrito como ignorância voluntária, intencional ou resoluta. A ideia pode ser estendida para incluir omissões ou silêncios deliberados.

Havia quatro momentos na produção de conhecimento do passado nos quais os indivíduos escolhiam entre comunicar determinados itens de informação ou manter silêncio sobre eles. Os quatro momentos eram os de produzir documentos, armazená-los em arquivos, recuperar as informações e utilizá-las em uma história escrita.

A ignorância culposa pode ser individual ou coletiva. Esta última é conhecida como a “ignorância branca”, uma frase cunhada para se referir aos preconceitos subjacentes ao racismo.

A ignorância coletiva apoia o domínio de um grupo sobre outro, encorajando-os a aceitar a sua situação como natural. A ignorância dos dominantes impede-os de questionar os seus privilégios, enquanto a ignorância dos dominados muitas vezes os impediu de se rebelarem. Daí os esforços daqueles no poder, como observou Diderot, “para manter o povo em um estado de ignorância e estupidez”.

A ignorância “seletiva” é exemplificada da seguinte forma: “a ignorância é o primeiro requisito do historiador, ela simplifica e esclarece, seleciona e omite”. A seleção pode ser inconsciente, uma forma de desatenção, como mostra um experimento informal: se assistirmos a um filme sem legenda e com o som desligado, notamos gestos e expressões faciais dos atores normalmente ignorados.

A multiplicidade de olhares – imperiais, etnográficos, médicos, mercantis, missionários e assim por diante – sugere: deveríamos falar não apenas de “ensinar o olho a ver”, mas também do seu oposto, “ensinar o olho a não ver”. Tanto o insight como a cegueira estão incorporados no habitus de determinadas profissões.

Na pesquisa, procurar uma coisa leva à desatenção a outras. Por exemplo, concentrar a atenção na detecção de Covid levou a não perceber sinais de outras doenças perigosas.

A ignorância “especificada” é um afastamento consciente do conhecimento sobre um tópico para se concentrar em outro: escolher levantar certas questões, adotar certos métodos ou operar com certos paradigmas. Em cada caso, uma escolha positiva tem alguns efeitos negativos, excluindo certos tipos de conhecimento, seja deliberadamente ou como consequência não intencional.

A ignorância “passiva” refere-se à ausência de conhecimento, incluindo a incapacidade de o mobilizar para efeitos de ação. O termo ignorância “ativa”, no sentido de resistência a novos conhecimentos ou ideias, é utilizado para descrever a oposição de alguns ortodoxos às visões perturbadoras de heterodoxos. Pode estender-se ao hábito de “ignorar” tudo o que não queremos nem saber, muitas vezes com consequências graves.

A frase “ignorância ativa” também pode referir-se àquilo pensado como sabido. “A ignorância não reside nas coisas não sabidas, mas nas coisas sabidas não serem assim”.

Expressões como “produção” ou “fabricação” de ignorância são aplicáveis, juntamente com o adjetivo ignorância “estratégica”. Peter Burke não está satisfeito com as referências à “produção” de ignorância nos casos no qual nenhum conhecimento a precedeu. Prefere usar o velho termo “ofuscação”, ou falar em produzir “confusão” ou “dúvida”, ou em manter a ignorância, ou em criar obstáculos ao conhecimento.

É mais claro permanecer próximo da linguagem comum sempre quando possível, descrevendo as tentativas de enganar o público por razões políticas ou econômicas como simples “mentiras”. No entanto, tem sido e continua a ser uma prática muito comum encobrir muita coisa cujo público deveria saber. Esta prática também é descrita como “desinformação” ou, eufemisticamente, como “medidas ativas”.

A ignorância de outras pessoas é uma fonte de poder para aqueles “por dentro” de domínios como a política, os negócios e o crime. O “controle da definição de ignorância” pelas elites teve importantes implicações políticas.

A capacidade de rotular os outros como ignorantes significou desqualificá-los para ter voz nos assuntos da cidadania. Esta é o exercício dos direitos e deveres civis, políticos e sociais estabelecidos na Constituição de um país, por parte dos seus respectivos cidadãos, ou seja, indivíduos componentes de determinada nação.

A cidadania é assim definida como a condição do cidadão, indivíduo a viver de acordo com um conjunto de estatutos pertencentes a uma comunidade politicamente e socialmente articulada. Não pode ignorar seus direitos e deveres. Exercer a cidadania é ter consciência de seus direitos e obrigações, garantindo estes serem colocados em prática.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]

Referência

Peter Burke. Ignorance: a global history. New Haven, Yale University Press, 2023, 256 págs. [https://amzn.to/3GuEhLs]


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