O governo Biden

Imagem: João Nitsche
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Por JOSÉ DIRCEU*

O que significa a derrota de Trump para o Brasil e o mundo; e o que esperar do democrata na Casa Branca

A vitória dos democratas nos Estados Unidos precisa ser avaliada pelo ângulo da espetacular derrota de Trump que deve ser comemorada. É verdade que a agenda democrata e o discurso de Biden, a se confirmar, retomarão políticas enterradas sem solenidades por Trump como a climática-ambiental. Mas políticas afirmativas em relação ao racismo, à imigração e à saúde ainda são promessas, apesar do compromisso assumido, e precisarão passar pelo Congresso e Suprema Corte.

Mudanças na política econômica acontecerão por exigência da pandemia, seara na qual seguramente Biden fará diferença inclusive em nível internacional. Nas relações entre Estados Unidos e demais países, a experiência indica que prevalecerão, acima de tudo, os interesses hegemonistas dos Estados Unidos, com a manutenção da disputa comercial e geopolítica com a China e a defesa de hegemonia militar. Na economia doméstica, a tarefa de Biden não é fácil: vai enfrentar o dogma tributário republicano e a herança de décadas de neoliberalismo e globalização, que resultaram em uma crescente desigualdade social que mina a coesão e unidade nacional.

Já na arena da geopolítica, a expectativa é de que o democrata retome as relações multilaterais, como acordo de Paris, e mesmo propostas da época Obama, como os acordos de comércio Transatlântico e Transpacífico. No entanto, é preciso reconhecer que Biden encontrará um mundo onde há evidente esgotamento e uma crise não apenas conjuntural, evidente na Europa e Estados Unidos, do capitalismo na sua forma globalizada pelo capital financeiro bancário. Um mundo onde poderes regionais – e mais que regionais em alguns casos — como a China, Rússia, Índia, Irã e Turquia disputam com os Estados Unidos e impõem limites aos desígnios norte-americanos. Sem falar no papel da União Europeia, desdenhada e humilhada por Trump, e sua crise expressa no Brexit agora agravada com a pandemia.

Hegemonia em disputa

Ainda como pano de fundo, a constatação histórica de que os Estados Unidos não têm mais como exercer hegemonia total num mundo dividido e com uma economia interna que perde competitividade e exige proteção e medidas comerciais de retaliação para se manter na liderança, como indica a tentativa de barrar o avanço da tecnologia de telefonia móvel celular 5G da chinesa Huawei. Uma economia dominada pela especulação financeira e amparada nos serviços, na qual os trabalhadores perdem renda e empregos.

A questão que se coloca é se Biden e os democratas estarão à altura dos novos tempos e buscarão uma reforma no sistema de relações internacionais que a ONU expressa e serão capazes de refazer o acordo de Bretton Woods para regular o capitalismo financeiro neoliberal manifestamente esgotado.

Para nós aqui no Brasil, a derrota de Trump soa como música pelas relações de submissão e adesão incondicional que Bolsonaro, seu círculo ideológico e sua família estabeleceram com ele e impuseram à nação brasileira uma humilhação que jamais esqueceremos e que só nos trouxe perdas políticas e econômicas. A derrota, nos Estados Unidos, das políticas e ideias que Bolsonaro defende aqui nos anima. Mas, nada de euforia, já que conhecemos como os interesses do Império se impõem seja qual for o governo.

Há pouco tempo assistimos o golpe na Bolívia e fomos vítimas do golpe parlamentar judicial que derrubou a presidente Dilma. Temos um histórico de intervenções norte-americanas em nossa política interna do qual a Lava Jato foi um dos últimos capítulos como se comprova a cada dia.

Guerra híbrida

Haverá mudanças na política de guerra híbrida –nome bonito para bloqueio econômico e comercial que significa zero comida, remédios e combustíveis, além da sabotagem militar e atentados– contra Cuba e Venezuela? Vai se buscar uma solução negociada e pacífica sem intervenções externas para o caso venezuelano? E como ficará o bloqueio econômico contra Cuba? Voltarão os Estados Unidos aos acordos com o Irã, respaldados até hoje pelo União Europeia? Biden apoiará a aberta sedição da ordem legal boliviana que Luis Camacho, seguidor de Trump derrotado em eleições reconhecidas pela comunidade internacional como limpas e legais, vem pregando abertamente desde Santa Cruz?

Nossa Constituição é clara. Nossa política externa é regida por princípios da não intervenção e auto-determinação dos povos, da igualdade dos Estados, da defesa da paz, da solução pacifica dos conflitos, da rejeição do terrorismo e do racismo, da defesa dos direitos humanos, da cooperação entre povos para o progresso da humanidade sob a égide da independência nacional. Temos um norte constitucional que determina que buscaremos “o desenvolvimento econômico, político e social e cultural dos povos da América Latina, para a formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

Tem sido essa a política externa do país, particularmente nos governos Lula e Dilma. As raras exceções aconteceram na ditadura militar e, agora, no governo Bolsonaro. Na primeira, como o apoio e o envio de tropas para a invasão, dirigida pelos Estados Unidos e sancionada pela OEA, da República Dominicana onde uma revolta popular recolocou no poder o presidente Juan Bosch deposto por um golpe de estado depois de uma eleição legítima. No governo Bolsonaro, com reconhecimento do líder oposicionista venezuelano Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente sem ter sido eleito, e apoio à sua política de desestabilização do governo Maduro. Sem falar da ingerência brasileira no golpe ocorrido na Bolívia contra o presidente Evo Morales.

Que a derrota de Trump nos inspire a retomar nosso fio da história de uma nação soberana com uma política externa altiva e ativa, não alinhada e defensora sem limite de nossos interesses nacionais. A retomar uma política de desenvolvimento nacional que tenha, como como norte, o bem estar social do nosso povo, o respeito ao meio ambiente, o combate ao racismo e à homofobia, o reconhecimento dos direitos das mulheres, o apoio à ciência e aos direitos humanos, a garantia do acesso à saúde e à educação púbica e universal, um sistema tributário justo onde os ricos paguem impostos. Enfim, uma nação democrática onde prevaleça a soberania popular e não o poder econômico ou a tutela militar.

*José Dirceu foi ministro da Casa Civil no primeiro governo Lula. Autor, entre outros livros, de Memórias (Geração editorial)

Publicado originalmente no site Poder360 .

 

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