Por DESMOND TUTU
Joe Biden irá por fim à política norte-americana de acobertar a existência desse arsenal atômico?
Todos os últimos governantes dos Estados Unidos praticaram um ritual perverso ao assumir o poder. Eles aceitaram subverter a lei ao assinar cartas secretas estipulando que não reconheceriam algo que todos já sabem: que Israel tem um arsenal de armas nucleares.
Fazer com que se deixasse de focar na capacidade que Israel tem de transformar dezenas de cidades em poeira era uma das razões de tal prática. Esse fracasso no enfrentamento da ameaça posta pelo terrível arsenal israelense oferece ao seu primeiro ministro, Benjamin Netanyahu, uma sensação de poder e impunidade, permitindo que Israel dite seus termos aos outros.
No entanto, outro efeito da estratégia de avestruz adotada pelo governo é que ela o isenta de invocar a própria lei norte-americana, que ordena a interrupção das benesses oferecidas com o dinheiro dos contribuintes a países proliferadores de armamento nuclear.
Israel é, de fato, um proliferador de armas nucleares. Existem evidências abundantes de que, nos anos 1970, o país ofertou-as ao regime de apartheid da África do Sul. Os dois países inclusive realizaram um teste nuclear em conjunto, e o governo norte-americano tentou encobrir tais fatos. Israel nem sequer assinou o tratado de não proliferação.
Mesmo assim, os governos de Israel e dos Estados Unidos pressionaram pela invasão do Iraque sob o pretexto mentiroso de futuros cogumelos atômicos. Como disse o delator Mordechai Vanunu: as armas nucleares não estavam no Iraque – elas estão em Israel.
Emendas propostas pelos ex-senadores Stuart Symington e John Glenn à Lei de Assistência Estrangeira proíbem a assistência econômica e militar a proliferadores de armas nucleares e a países que adquirem arsenal atômico. Em sua presidência, Jimmy Carter invocou tais cláusulas contra a Índia e o Paquistão.
Mas nenhum presidente o fez com Israel. Muito pelo contrário. Existe, desde o governo Nixon, um acordo oral de aceitação da “ambiguidade nuclear” israelense – efetivamente dando a Israel o poder que vem com a posse de armas nuclearessem as responsabilidades que isso implica. E tais cartas secretas realmente existiram, de acordo com a revista New Yorker, desde o governo Clinton.
Políticos e presidentes norte-americanos se recusaram a reconhecer que Israel tem armas nucleares, ainda que a lei permita, excepcionalmente, a continuidade do financiamento caso o presidente certifique ao Congresso que a ajuda a um proliferador seria de interesse vital aos Estados Unidos.
O produto interno bruto per capta de Israel é comparável àquele da Grã-Bretanha. No entanto, a quantidade de recursos dos contribuintes enviados a este país ultrapassa aquela oferecida a qualquer outro país. Considerando a inflação, a quantia publicamente conhecida destes fundos aproxima-se, hoje, dos 300 bilhões de dólares.
Esta farsa tem que acabar. O governo dos Estados Unidos precisa defender suas leis e cortar o financiamento a Israel em resposta às suas práticas de aquisição e proliferação de armas nucleares.
O recém empossado governo Biden precisa reconhecer, de forma categórica, que Israel é um dos principais investidores na proliferação nuclear no Oriente Médio – apropriadamente aplicando a lei. Outros governos – em particular o da África do Sul – precisam insistir no primado da justiça e na defesa de um desarmamento significativo, além de pressionar, o mais fortemente possível, para que o governo dos Estados Unidos tome uma atitude.
O apartheid na África do Sul foi uma experiência horrível, e é horrível quando Israel pratica a sua própria forma de apartheid contra os palestinos, com seus checkpoints e um sistema de políticas opressivas. Aliás, outra regra norte-americana, a lei de Leahy, proíbe a ajuda militar a governos que violam os direitos humanos de maneira sistemática.
É possível que um dos motivos da sobrevida maior do apartheid israelense, em comparação com o sul africano, seja o fato de que Israel conseguiu manter seu sistema de opressão não apenas através das armas de seus soldados, mas também com seu canhão nuclear apontado para milhões de cabeças. A solução deste problema não está na tentativa dos palestinos e de outros árabes de tomar posse destas armas. A solução é a paz, a justiça e o desarmamento.
A África do Sul aprendeu que é apenas com a verdade que leva à reconciliação que se pode verdadeiramente alcançar a paz e a justiça. Mas nenhuma delas virá sem que a verdade seja enfrentada diretamente – e poucas verdades são mais cruciais do que um arsenal nuclear nas mãos de um regime de apartheid.
*Desmond Tutu é arcebispo da Igreja Anglicana. Foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1984.
Tradução: Daniel Pavan
Publicado originalmente no jornal The Guardian.