Uma história da psicanálise popular

Josef Herman, Esboço de uma mulher, sem data.
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Por CHRISTIAN DUNKER*

Prefácio do livro de Florent Gabarron-Garcia

Esta pequena história da psicanálise popular não poderia vir em melhor hora. Mais que uma contra-história que toma o modelo hagiográfico de Ernest Jones como antimomodelo ideológico, o trabalho de Florent Gabarron-Garcia permite mostrar como desde o início, na Viena dos anos 1920, a psicanálise jamais se reduziu a uma clínica das elites para as elites. Parte desta história esquecida já havia sido refeita, em detalhes, para as clínicas públicas europeias,[1] para os casos suprimidos da história de sua disseminação cultural[2] e também, em esboço, para a situação brasileira.[3]

Contudo, a série de casos aqui apresentados não pode ser reduzida a uma versão menor ou dissidente do que, afinal, seria “a psicanálise”. O trajeto vai do fecundo experimento húngaro e dos lares escolares para crianças de Vera Schmidt na Moscou bolchevique (remetendo ao trabalho de Sabina Spielrein e Tatiana Rosenthal em Petrogrado), passa pela expansão massiva das clínicas populares da Viena Vermelha dos anos 1920–30 e pelas experiências de Wilhelm Reich à frente da Associação Alemã por uma Política Sexual Proletária (Sexpol), e chega aos grupos de intervenção social de François Tosquelles na guerra civil espanhola e de Marie Langer no entreguerras vienense. Acompanhamos no pós-guerra o pioneirismo da clínica francesa de La Borde, com Jean Oury e Félix Guattari, e nos anos 1970 assistimos à aparição do Coletivo Socialista de Pacientes (SPK) em Heidelberg e das comarcas de saúde mental na Argentina.

Ignorando o testemunho histórico de que sempre houve uma espécie de luta de classes dentro da psicanálise,[4] tornaram-se lugar-comum juízos globais sobre seu conformismo, adaptativo e segregacionista, bem como sobre sua retórica patriarcal, androcentrista e familiarista. De fato, a história oficial, acompanhada por hagiografias heroicas de seus personagens e instituições, buscou apagar a sistemática importação de conceitos entre a psicanálise e as teorias sociais críticas, assim como silenciar suas experiências políticas de resistência e engajamento direto na transformação social concreta.

Os coletivos brasileiros,[5] que, desde os anos 2010, candidatam-se a ser o próximo capítulo desta história, podem encontrar aqui algumas condições precedentes para sua própria existência, mas também antecipar a regularidade de certos problemas e desafios a serem enfrentados. A primeira lição é que nossos antecedentes enfrentaram recepções igualmente oscilantes. A própria posição textual de Freud sobre as relações entre política e psicanálise vai do intervencionismo claro e direto na saúde mental das populações, esboçado em seu trabalho de 1908 sobre a “Moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno”, até o desejo de universalização do acesso à psicanálise, na conferência em Budapeste de 1918, e percorre as considerações de Freud desde sua perspectiva do comunismo como “grande experimento cultural”, em O futuro de uma ilusão, em 1927, até seu indiferentismo político em “Acerca de uma visão de mundo”, de 1932.

A pergunta sobre o caráter político ou apolítico da psicanálise não resolve por si como a política da psicanálise, entendida como movimentação coordenada de suas escolas, discursos e praticantes, se comportará em situação de regressão, anomia ou regressão democrática?

O caso modelo nesta matéria é representado de forma contundente pela política de salvamento da psicanálise, capitaneada por Ernest Jones durante o nazismo na Alemanha. Arianização de comitês de direção, exclusão de judeus, até mesmo perseguição autossegregativa de todos os que se relacionam com a militância política, seja eles analistas ou analisantes. A resolução afeta, entre outros, Ernst Simmel, presidente da Sociedade dos Médicos Socialistas; Helene Deutsch, figura próxima de Rosa Luxemburgo; e Erich Fromm e Karl Landauer, fundadores da Comunidade Operária em prol da psicoterapia popular.

Resolução que faz Otto Fenichel organizar uma rede secreta de psicanalistas de esquerda nos Estados Unidos que terminam por “neutralizar” a tonalidade política das intervenções de Siegfried Bernfeld no universo educativo e August Aichhorn no judiciário. Resolução que deixará um saldo histórico de práticas autoritárias, colaboracionistas, disciplinares e acríticas no interior da própria transmissão da psicanálise, sobretudo no modelo de formação de psicanalistas.

Quando cotejamos as políticas da psicanálise com a política em sentido mais geral de ocupação institucional do espaço público, podemos perder de vista que as sociedades e escolas de psicanálise nem sempre são a expressão monolítica de um pensamento único, longe disso: tendem a compor um campo de forças formado por interesses distribuídos e nem sempre constantes ao longo do tempo. Basta registrar aqui a posição de Freud tentando administrar conflitos entre diversas associações nacionais de psicanálise, contra a perspectiva global de um processo político, relativamente impensado e impensável, pela própria psicanálise, no quadro de ascensão dos fascismos.

Neste caso, seria importante rever o mito, propugnado pela própria historiografia psicanalítica, sobre o caráter unitário, homogêneo e hegemônico dentro da psicanálise, como se o círculo dos anéis de confiança tivesse realmente se consagrado em uma política una baseada na regra simples da submissão ou exclusão. Neste ponto, talvez tenha ficado ausente nesta breve história a própria emergência do lacanismo, como insurreição institucional interna à psicanálise. Independentemente de seus desdobramentos mais ou menos regressivos, resguardado seu programa de renovação teórica, são inegáveis suas conexões com as críticas feminista, antirracista e marxista. Ademais, isso deixará marcas seja na experiência francesa de François Tosquelles, Frantz Fanon e Jean Oury, seja nos desdobramentos da experiência argentina do grupo Plataforma, com Marie Langer.

Aqui se interpõe a variedade das formas da sustentação da psicanálise em contexto cultural de marginalidade ou de centralidade, em relação às disciplinas universitárias e diante das práticas psiquiátricas ou de saúde mental, bem como suas diferentes táticas de ocupação dos espaços públicos, para além das instituições. Diante desse contexto, parece óbvio que o comunismo seja criticado depois de Stalin perseguir os psicanalistas russos e decretar a psicanálise uma ciência burguesa, ele mesmo propondo-se o pai dos povos e mobilizando a família para justificar a autocracia.

Também é compreensível que Marie Langer, depois de ser impedida de retornar à Áustria pós-Anschluss – perseguida por sua origem judaica e sua luta ao lado das Brigadas Internacionais durante a Guerra Civil Espanhola –, tivesse que esconder sua militância no exílio na Argentina, cuja cultura psicanalítica era ainda incipiente. No entanto, quando a própria posição cultural da psicanálise muda, quando seus filhos não estão mais em perigo imediato e quando a mesma Argentina é tomada pela ditadura militar, ela não hesita em partir para uma aliança com o movimento operário a fim de lutar pela ampliação do acesso à saúde mental, terminando por ser novamente exilada, desta vez na Nicarágua.

Ou seja, nas experiências aqui selecionadas não há nada que se pareça com uma posição fixa – elitista ou revolucionária – imune às circunstâncias. Isso sugere que a psicanálise se politiza ou se despolitiza conforme sua reatividade contingente ao modo como a política em geral afeta as políticas de sofrimento. É nas horas mais críticas que ela deve ser capaz de se lembrar de sua história, de resgatar seus silêncios, de refazer seus modelos e antimodelos, mostrando que “a cura pela fala permanece, graças a seu alcance revolucionário, eminentemente preciosa para os tempos presentes” (p. 26).

Seja o cooperativismo do Coletivo Socialista de Pacientes (spk) em Heidelberg dos anos 1970, sejam as experiências institucionais na pequena vila de Saint-Alban ou no castelo de La Borde, em que a relação entre médicos e enfermeiros parece ser crucial, sejam, ainda, os coletivos argentinos, vienenses, russos e sua relação instável com as políticas de saúde mental, a linha de continuidade das experiências relatadas mostra-se uma questão problemática. Até que ponto as comunidades aqui discutidas deixam legados, para além das lideranças fundadoras, quando estas se dissolvem no complexo de administração da saúde?

Novamente, em vez da oposição polar entre cultura erudita da elite psicanalítica e cultura popular dos pacientes, devemos lembrar que as experiências periféricas do centro europeu, aqui relatadas, criam culturas periféricas, e que nessas periferias há também centros de irradiação e transformação cultural da psicanálise. Uma dificuldade recorrente nas experiências aqui trazidas, desde o “seminário das crianças” em Berlim, é que a elite da periferia tende a esquecer a excepcionalidade que a tornou possível.

A história marginal da psicanálise faz parte do sistema de instituições com suas regras genealógicas de reconhecimento, ele mesmo nunca exatamente um campo pacífico. Ela compreende políticas específicas de interpretação internalista de fatos sociais: a revolução como simples caso edipiano de retorno ao mesmo lugar, as revoltas árabes como demanda de consumo, o comunismo como regressão materna ou masoquista dos militantes. Lembremos que, na Áustria dos anos 1930, qualquer movimento teórico, estético, moral ou político que comportasse participantes com uma “visão não ariana de mundo” corria o sério risco de ver estes perseguidos.

A leniência de Freud com a dupla Felix Boehm e Carl Müller-Braunschweig, interessada na “modernização da psicanálise” e na criação de um rosto “realmente alemão” para ela, pode ter levado ao pior. O erro foi confiar na ideia de que se a psicanálise se apresentasse como uma ciência, acima das opiniões e alinhamentos, isso a protegeria das perseguições políticas de governos, Estados e nações. Essa ideia se desdobraria na suposição de que apesar de participar da circulação do capital, como serviço em saúde mental e como prática liberal, ela ficaria isenta e a salvo de críticas na disputa pela justificação e por legitimidade como forma de tratamento do sofrimento psíquico. Finalmente, isso levaria a uma posição de retirada ou exclusão gradual da ocupação do espaço público, seja como discurso, seja como prática clínica, seja como saber, o que veio a ocorrer principalmente nos países onde esta estratégia se mostrou dominante.

Com exceção da controvérsia sobre a análise do caráter e, talvez, de alguns apontamentos de Félix Guattari, as experiências históricas parecem estar marcadas por abertura na conceituação e baixo apelo normativo. A demarcação da fronteira entre psicoterapia e psicanálise torna-se uma questão menor ou posterior, mais ou menos irrelevante para os envolvidos à época dos acontecimentos. As policlínicas com “i” de política, e não com “y” como no termo francês polycliniques – que exprime multidisciplinaridade –, fazem parte da história dos desejos da psicanálise – alguns deles, inéditos na edição da Interpretação dos sonhos em 1900: redução da pobreza, adaptação e reconhecimento das condições materiais da vida dos pacientes, problematização da incorporação sintomática da lei, crítica da repressão diferencial das mulheres, direito à educação sexual, direito ao aborto, descriminalização da homossexualidade, resistência às políticas de violência, segregação e opressão. Ainda assim, não há nenhuma excepcionalidade moral inerente aos psicanalistas em matéria de política, mas afinidade prática, como sismógrafos do sofrimento social e críticos do psicanalismo que ataca a profissão.

Na história de nossa ancestralidade, como se avizinha no capítulo brasileiro em formação, das clínicas livres, públicas, políticas ou polivalentes, o compromisso político não é álibi formativo nem carteirinha de independência, muito menos anel de superioridade moral, mas ajuste de contas e fidelidade a um passivo histórico de luta social.

*Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP. Autor, entre outros livros, de Mal-estar, sofrimento e sintoma (Boitempo).

Publicado originalmente no site Outras palavras.

Referência


Florent Gabarron-Garcia. Uma história da psicanálise popular. Tradução: Célia Euvaldo. São Paulo, Ubu, 2022, 246 págs.

Notas


[1] Elizabeth Ann Danto, Clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social: 1918-1938, trad. Margarida Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 2019.

[2] Ian Parker, Cultura psicanalítica, trad. Saulo Krieger. Aparecida: Ideias e Letras, 2006.

[3] Christian I. L. Dunker, Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

[4] I. Parker e David Pavón-Cuéllar, Psicanálise e revolução: psicologia crítica para movimentos de liberação, trad. Luis Reyes Gil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.

[5] Ver Ilana Katz e Emília Broide (orgs.), Psicanálise nos espaços públicos. São Paulo: ip-usp, 2019. Disponível em: latesfip.com.br/psicanalise-nos-espacos-publicos

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