A Revolta da vacina

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Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO*

Uma vez como tragédia, a outra como farsa.

“Semana maldita, some-te, mergulha no grande abismo insondável do tempo, onde há esquecimento para tudo” (Olavo Bilac).

Tenho como propósito, neste texto, estabelecer um paralelo entre a Revolta da Vacina, na sua versão histórica e trágica, ocorrida em novembro de 1904, durante o governo do presidente Rodrigues Alves e a “revolta da vacina”, em sua variante farsesca, que vem ocorrendo hodiernamente, por várias capitais do país, arregimentada pelo bolsonarismo, nestes tempos sombrios da presidência de Jair M. Bolsonaro.

Ao fazer o cotejo entre o passado e o presente, envolvendo manifestações contra a vacinação obrigatória, me veio à mente, para contrapor os dois eventos, o famoso trecho de Karl Marx, que se encontra em sua prestigiada obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte:

“Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. [1]

O fato que passou para a história com a denominação de “Revolta da Vacina”, foi uma insurreição que ocorreu entre os dias 10 e 16 de novembro de 1904, contra o programa de vacinação compulsória, promovido pelo governo do Presidente Rodrigues Alves, tendo à frente do aludido programa o Diretor-geral de Saúde Pública, o então jovem médico sanitarista Oswaldo Cruz.

A Revolta da Vacina deve ser entendida num contexto mais amplo, relacionado a uma série de “reformas” que iam sendo implementadas no Rio de Janeiro do início de século XX, naqueles primeiros anos da nascente República. Dentre as aludidas reformas, duas se destacaram: a reforma urbanística, sob a responsabilidade do Prefeito Francisco Pereira Passos e a reforma sanitária, sob o comando do médico Oswaldo Cruz.

Rodrigues Alves tinha planos ambiciosos para o país, os quais seriam deflagrados a partir de sua Capital, que à época não era ainda uma “Cidade maravilhosa”. O Rio de Janeiro do início do século XX era uma cidade cuja população situava-se entre 700 e 900 mil habitantes e era fustigada por graves problemas urbanos, dentre os quais podem ser elencados os seguintes: rede insuficiente de água e esgoto, toneladas de lixo nas ruas, cortiços superlotados, graves problemas habitacionais. Adversidades com os quais continuamos a conviver, mais de um século depois, em todas as grandes cidades brasileiras.

Ocorre, no entanto, que a forma que a administração pública escolheu para enfrentar esses problemas, efetivamente reais e sérios, foi arbitrária, autoritária e violenta. As reformas foram levadas a cabo sem nenhuma consulta ou participação dos principais envolvidos, que em sua esmagadora maioria era composta pelas camadas mais pauperizadas da sociedade carioca. Foram empreendidas de cima para baixo, visando a interesses econômicos, que reverteriam em proveitos dos “negócios” da elite carioca e visariam a atrair capitais estrangeiros para a Capital brasileira.

Como diz Oswaldo Porto Rocha:

“A grande reforma urbana empreendida no Rio de Janeiro reflete os interesses e as necessidades de uma burguesia em ascensão. O traçado urbano, a localização de fábricas, a delimitação de espaços, as demolições das habitações coletivas em nome da saúde e da higiene, e o consequente deslocamento, para a periferia, das camadas populares, vão ao encontro desses interesses e necessidades. As elites intelectuais, os engenheiros, médicos e sanitaristas dão o respaldo científico a essas ações e a imprensa apoia, em prol da “modernização e civilização da cidade”.[2]

Em funções da truculência administrativa e de reiterados arbítrios levados a cabo pelo poder público, o clima foi se tornando propício a movimentos que passaram a manifestar seu desagrado em relação a medidas que vinham sendo implementadas, dentre as quais a vacinação obrigatória e a derrubada de habitações populares, sem que o governo providenciasse o assentamento dos seus moradores em outros locais.

Infelizmente, depois do transcurso de mais de um século, ainda permanece o Brasil chafurdando em meio a uma acentuada exclusão e desigualdade sociais, presentes em várias cidades brasileiras, fruto do descaso dos governantes e das elites brasileiras com a sorte de seu povo. E o problema habitacional no Brasil pouco mudou, depois de mais de cem anos. Assistimos, ainda hoje, a expulsão de pessoas que ocupam áreas ociosas ou abandonadas por seus pretensos proprietários, nos espaços urbanos. As ações do poder público, nesse sentido, continuam a seguir o conhecido roteiro do arbítrio e da violência. O Poder Judiciário, insensível ao comando constitucional, segundo o qual a propriedade deve cumprir sua função social, lhes confere o carimbo de legalidade.

A situação que se verificava no Rio do início do século XX, era, provavelmente, ainda pior em outras regiões do país. O descaso com o problema sanitário e com a higiene, em razão das péssimas condições das habitações existentes, em áreas pobres e degradadas da cidade, sem dúvida, propiciava a disseminação de várias doenças, como tuberculose, hanseníase, tifo, sarampo, escarlatina, difteria, coqueluche, febre amarela, peste bubônica e varíola, sendo que estas três últimas já eram epidêmicas na cidade. O Rio, assim, era uma cidade infecta e gozava de uma considerável má fama, inclusive na esfera internacional, recebendo o epíteto de “túmulo dos estrangeiros”.

Assim, a Revolta da Vacina, de 1904, é o coroamento ou ápice de um processo de espoliação e violência movido contra as camadas pobres da população carioca e executado, como já dissemos, em duas frentes: a urbanística, orientada pela cobiça imobiliária, com a expulsão de um número substantivo de pessoas das regiões centrais da cidade e a sanitária, que deu o pretexto perfeito para que a primeira promovesse os denominados “bota-fora”, inaugurando ou dando curso a uma “era das demolições” na cidade.

Como dirá Sérgio Lamarão, em prefácio a excelente obra de Oswaldo Porto Rocha:

“A industrialização, ao requerer a concentração de mão-de-obra e de serviços de infra-estrutura, aumenta a demanda habitacional numa cidade onde o déficit de moradia já era considerável. Principais vítimas das transformações em curso, as populações de baixa renda foram alvo de campanhas sistemáticas do nascente capital imobiliário e do poder público que, embasadas pelo discurso sanitarista, visavam afastar os pobres das áreas mais centrais que experimentavam, então, intensa valorização”. [3]

É ainda Sérgio Lamarão que adverte:

“Na verdade, a suposta solução para o velho problema da insalubridade, agravado desde a década de 1850 por virulentas epidemias, ampliaria um outro problema, igualmente grave: o da falta de moradia para as populações pobres. A erradicação dessas construções, abrindo caminho para a especulação imobiliária na área central do Rio, deixaria entregue à sua própria sorte milhares de trabalhadores que encontram precário sustento no coração da cidade”. [4]

Deve-se dizer que o capital especulativo imobiliário encontrou um parceiro e aliado no poder público, que, na seara municipal, era personificado no prefeito Pereira Passos.

Nicolau Sevcenko nos diz que:

“… Pereira Passos, indicado por Rodrigues Alves para assumir o cargo de prefeito do Distrito Federal. Sabendo da extensão avultada das demolições e das obras que deveria executar, do ritmo desenfreado em que deveria implementá-las, e prefigurando as resistências e reações populares inevitáveis, Passos exigiu plena liberdade de ação para aceitar o cargo, sem estar sujeito a embaraços legais, orçamentários ou materiais. Rodrigues Alves lhe concedeu então carta branca por meio da lei de 29 de dezembro de 1902, que criava um novo estatuto de organização municipal para o Distrito Federal. A lei era equívoca, arbitrária e visivelmente anticonstitucional, atribuindo poderes tirânicos ao prefeito e retirando qualquer direito de defesa à comunidade”. [5]

A Revolta da Vacina, na sua manifestação trágica, foi o ápice de um processo de descontentamento popular, urdido com um certo grau de espontaneidade, a partir de vários atos autoritários, violentos e excludentes, praticados pelo poder público de então, personificado em figuras como o presidente Rodrigues Alves, o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos e pelo sanitarista Oswaldo Cruz, em nome e benefício das elites de então. Foi nossa pequena Comuna de Paris ou, quem sabe, a Canudos carioca.

Nicolau Sevcenko empreendeu uma instigante análise histórica e sociológica do levante de 1904, num texto carregado de indignação e tocante sensibilidade social:

“Nunca se contaram os mortos da Revolta da Vacina. Nem seria possível, pois muitos, como veremos, foram morrer bem longe do palco dos acontecimentos. Seriam inúmeros, centenas, milhares, mas é impossível avaliar quantos. A autoridade policial, como seria de se esperar, apresentou números sóbrios e precisos, na tentativa de reduzir uma autêntica rebelião social à caricatura de uma baderna urbana: fútil, atabalhoada, inconsequente. Os massacres, porém, não manifestam rigor com a precisão. Sabe-se quantos morreram em Canudos, no Contestado ou na Revolução Federalista – para só ficarmos nas grandes chacinas da Primeira República? A matança coletiva dirige-se, via de regra, contra um objeto unificado por algum padrão abstrato que retira a humanidade das vítimas: uma seita, uma comunidade peculiar, uma facção política, uma cultura, uma etnia. Personificando nesse grupo assim circunscrito todo o mal e toda a ameaça à ordem das coisas, os executores se representam a si mesmos como heróis redentores, cuja energia implacável esconjura a ameaça que pesa sobre o mundo. O preço a ser pago pela sua bravura é o peso do seu predomínio. A cor das bandeiras dos heróis é a mais variada, só o tom do sangue de suas vítimas permanece o mesmo ao longo da história”. [6]

Outra importante referência bibliográfica para entendermos a Revolta da Vacina, do início do século XX, é o livro de Sidney Chalhoub “A cidade Febril – Cortiços e epidemias na corte imperial”. Nesta obra Chalhoub, por meio de pesquisas que realizou em fontes documentais, em arquivos e biblioteca do Brasil e do exterior, nos traz subsídios valiosos à compreensão do contexto histórico e social em torno da sublevação de 1904.

Sidney Chalhoub nos fornece dados históricos de um cenário pretérito à Revolta da Vacina de 1904, mas que a ela se liga umbilicalmente. A Revolta de 1904 constituiu-se na culminância de um processo, em que as energias represadas, como a raiva, a sensação de injustiça, a frustação e o ódio deságuam, abruptamente. Sigamos embalados pela narrativa do que Chalhoub denomina de “uma operação de guerra”:

“Era o dia 26 de janeiro de 1893, por volta das seis horas da tarde, quando muita gente começou a se aglomerar diante da estalagem da rua Barão de São Félix, nº 154. Tratava-se da entrada do Cabeça de Porco, o mais célebre cortiço carioca do período: um grande portal, em arcada, ornamentado com a figura de uma cabeça de porco, tinha atrás de si um corredor central e duas longas alas com mais de uma centena de casinhas. Além dessa rua principal, havia algumas ramificações com mais moradias e várias cocheiras. Há controvérsia quando ao número de habitantes da estalagem: dizia-se que, em tempos áureos, o conjunto havia sido ocupado por cerca de 4 mil pessoas; naquela noite de janeiro, com toda uma ala do cortiço interditada havia cerca de um ano pelo Inspetoria Geral de Higiene, a Gazeta de Notícias calculava em quatrocentos o número de moradores. Outros jornais da época, porém, afirmavam que 2 mil pessoas ainda habitavam o local. Seja como for, o que se anunciava era um verdadeiro combate. Três dias antes os proprietários do cortiço haviam recebido uma intimação da Intendência Municipal para que providenciassem o despejo dos moradores, seguido da demolição imediata de todas as casinhas. A intimação não fora obedecida, e o prefeito Barata Ribeiro prometia dar cabo do cortiço à força. Às sete horas e trinta minutos da noite, uma tropa do primeiro batalhão de infantaria, comandada pelo tenente Santiago, invadiu a estalagem, proibindo o ingresso e a saída de qualquer pessoa. Piquetes de cavalaria policial se posicionaram nas ruas transversais à Barão de São Félix, e outro grupo de policiais subiu o morro que havia nos fundos da estalagem, fechando o cerco pela retaguarda. Os jornais do dia seguinte se deleitavam em publicar a impressionante lista de autoridades presentes à “decepação” do Cabeça de Porco – como dizia o Jornal do Brazil. O prefeito Barata Ribeiro e o chefe de polícia da Capital Federal assumiram pessoalmente o comando das operações; e uma numerosa equipe se fez presente para auxiliá-los: o dr. Emídio Ribeiro, engenheiro municipal, o dr. Artur Pacheco, médico municipal, o dr. Frederico Froes, secretário da Inspetoria Geral de Higiene, que compareceu acompanhado pelo delegado da Inspetoria no distrito, e mais o fiscal da freguesia, guardas ficais, oficiais do exército, da armada, da brigada policial, e alguns intendentes (equivalentes ao atuais vereadores). Consumado o cerco policial à estalagem, e posicionados os técnicos e autoridades, surgiram mais de cem trabalhadores da Intendência Municipal, adequadamente armados com picaretas e machados. Os empresários Carlos Sampaio e Vieria Souto, também presentes ao evento, providenciaram o comparecimento do outros quarenta operários da Empresa de Melhoramentos do Brasil, para auxiliarem no trabalho de destruição. Finalmente, um grupo de bombeiros, com suas competentes mangueiras, se apresentou par irrigar os terrenos e as casas, aplacando assim as densas nuvens de poeira que começava a se levantar. O Cabeça de Porco – assim como os cortiços do centro do Rio em geral – era tido pelas autoridades da época como um “valhacouto” de desordeiros”. Diante de tamanho aparato repressivo, todavia, não parece ter havido nenhuma resistência mais séria por parte dos moradores à ocupação da estalagem. De qualquer forma, segundo o relato da Gazeta de Notícias, ocorreram algumas surpresas. Os esforços se concentraram primeiramente na ala esquerda da estalagem, a que estaria supostamente desabitada havia cerca de um ano. Os trabalhadores começavam a destelhar as casas quando saíram de algumas delas crianças e mulheres carregando móveis, colchões e tudo o mais que conseguiam retirar a tempo. Terminada a demolição da ala esquerda, os trabalhadores passaram a se ocupar da ala direita, em cujas casinhas ainda havia sabidamente moradores. Várias famílias se recusavam a sair, se retirando quando os escombros começavam a chover sobre suas cabeças. Mulheres e homens que saíam daqueles quartos “estreitos e infectos” iam às autoridades implorar que “os deixassem permanecer ali por 24 horas”. Os apelos foram inúteis, e os moradores se empenharam então em salvar suas camas, cadeiras e outros objetos de uso. De acordo com a Gazeta, porém, “muitos móveis não foram a tempo retirados e ficaram sob o entulho”. Os trabalhos de demolição prosseguiram pela madrugada, sempre acompanhados pelo prefeito Barata. Na manhã seguinte, já não mais existia a célebre estalagem Cabeça de Porco. O destino dos moradores despejados é ignorado, mas Lilian Fessler Vaz, autora do melhor e mais completo estudo sobre a história dos cortiços do Rio, levantou recentemente uma hipótese bastante plausível. O prefeito Barata, num magnânimo rompante de generosidade, mandou “facultar à gente pobre que habitava aquele recinto a tirada das madeiras que podiam ser aproveitadas” em outras construções. De posse do material para erguer pelo menos casinhas precárias, alguns moradores devem ter subido o morro que existia lá mesmo por detrás da estalagem. Um trecho do dito morro já parecia até ocupado por casebres, e pelo menos uma das proprietárias do Cabeça de Porco possuía lotes naquelas encostas, podendo assim ate manter alguns de seus inquilinos. Poucos anos mais tarde, em 1897, foi justamente neste local que se foram estabelecer, com a devida autorização dos chefes militares, os soldados egressos da campanha de Canudos. O lugar passou então a ser chamado de “morro da Favela”. A destruição do Cabeça de Porco marcou o início do fim de uma era, pois dramatizou, como nenhum outro evento, o processo em andamento de erradicação dos cortiços cariocas. Nos dias que se seguiram, o prefeito da Capital Federal foi calorosamente aclamado pela imprensa – ao varrer do mapa aquela “sujeira”, ele havia prestado à cidade “serviços inolvidáveis”. Como efeito, trata-se de algo inesquecível: nem bem se anunciava o fim da era dos cortiços, e a cidade do Rio já entrava no século das favelas. As repercussões da destruição do famoso cortiço na grande imprensa do período foram um espetáculo à parte. Na Revista Illustrada, o evento foi saudado com um humor asqueroso: o leitor foi servido de um prato com uma enorme cabeça de porco, de olhos entreabertos e fisionomia lacrimejante, e sobre a qual se achava uma barata devidamente cascuda e repugnante.” [7]

Esta longa citação, no meu entender, é absolutamente necessária para que tenhamos uma ideia do grau de violência, insensibilidade e egoísmo repugnantes que perpassava toda a elite carioca da época, representada pela abjeta presença das “autoridades”, devidamente nomeadas, na comovente narrativa de Chalhoub, a qual nos enche de um exasperante sentimento de estarmos a presenciar, em retrospecto histórico, uma grande e inolvidável iniquidade. Todo um hediondo estafe a serviço do capital se fez presente neste ato de desdenhável memória: toda administração pública, o nosso “prestigioso” exército, que nunca falta à luta contra seu próprio povo, os empresários, ínclitos representantes do “progresso” e a imprensa, que no dizer de Isaias Caminha, personagem do grande Lima Barreto, é uma quadrilha a serviço dos poderosos do momento: “A Imprensa, que quadrilha”!

Entre os poderes de repressão à população revolta, merece ser destacado o ignóbil papel empreendido pelo exército brasileiro, responsável, ora pelo massacre que se segue a Revolta, ora na forma de uma ostentatória intimidação aos revoltosos.

“O Rio de Janeiro amanheceu cercado no dia 15 de novembro de 1904. Navios da Marinha brasileira se espalhavam ao longo do litoral, com a artilharia voltada para a cidade. Três torpedeiros tomavam a enseada de Botafogo para garantir a ordem nas imediações. No Flamengo esta o encouraçado Deodoro, que na véspera atingira a pedra da Urca com dois disparos de canhão para mostrar seu poder de fogo. Próximo ao porto, na região da Saúde, o rebocador Dezenove de Fevereiro fazia manobras, acompanhado por duas lanchas cheias de armamentos. Todo o litoral era vigiado por embarcações militares repletas de marinheiros com carabinas e metralhadoras. Em terra, praças do corpo da Marinha eram enviados com armamentos pesados para tomar os postos próximos ao litoral, como a Gamboa e o Cais Pharoux. No dia em que se comemorava o quinto aniversário da Proclamação da República, as forças militares se voltavam contra a capital do país, por ordem direta do presidente da República e seus ministros”.

Como já disse, o exército brasileiro tem uma fama ancestral de investidas contra o seu próprio povo, em completo abandono de sua missão institucional. Hoje, sob o desgoverno Bolsonaro, fala-se em mais de 10 mil militares usurpando cargos, funções e postos destinados a civis. Generais, da reserva ou não, se refestelam, inebriados, no poder e pelo poder. Podemos dormir em paz!!!???

Os cortiços, e as pessoas que os habitavam desde a segunda metade do século XIX, eram vistos de forma depreciativa e provocam medo e asco às classes dominantes desde o Rio Imperial, como nos diz Chalhoub:

“Os cortiços supostamente geravam e nutriam “o veneno” causador do vómito preto. Era preciso, dizia-se, intervir radicalmente na cidade para eliminar tais habitações coletivas e afastar do centro da capital as “classes perigosas” que neles residiam. Classes duplamente perigosas, porque propagavam a doença e desafiavam as políticas de controle social no meio urbano”. [8]

Onze anos depois dos eventos narrados por Chalhoub, que resultaram na bárbara e tirânica demolição do cortiço Cabeça de Porco, o Rio voltará a assistir, em 1904, cenas muito semelhantes àquele nefasto episódio, em que são renovados o mais profundo desrespeito pelos direitos à moradia, à dignidade e à vida da população pobre, que, no entanto, vai gerar uma inesperada reação popular.

O gatilho que fez disparar a revolta popular foi fruto de um “furo de reportagem”, publicado no Jornal “A Notícia”, no dia 9 de novembro de 1904.Tratava-se da divulgação, em primeira mão, de “Projeto de regulamentação” da Lei da Vacina Obrigatória contra a varíola, publicado sem consentimento expresso das autoridades, tendo sido elaborado e redigido por Oswaldo Cruz. A lei, não regulamentada, fora aprovada em 31 de outubro.

Como descreve Nicolau Sevcenko: “Os termos eram extremamente rígidos, abrangendo desde recém-nascidos até idosos, impondo-lhes vacinações, exames e reexames, ameaçando-os com multas pesadas e demissões sumárias, limitando as oportunidades de recursos, defesas e omissões. O objetivo era uma campanha maciça, rápida, sem nenhum embaraço e fulminante: o mais amplo sucesso, no mais curto prazo. Não se cogitou da preparação psicológica da população, da qual só se exigia a submissão incondicional. Essa insensibilidade política e tecnocrática foi fatal para a lei da vacina obrigatória”. [9]

Assim, ao contrário da passividade que se deu na demolição do Cabeça de Porco, confusa e revoltada, a população saiu às ruas, transformando o centro da cidade numa verdadeira praça de guerra, em que os presos, mortos e feridos contavam-se às centenas ou aos milhares, não dá para se saber ao certo, como afirma Sevcenko. Os embates entre a polícia e os revoltosos ocuparam as páginas dos principais jornais da época, que se dividiram entre favoráveis e contrários ao projeto de lei, trazendo opiniões de intelectuais, políticos e, uma tradição da época, inúmeras charges sobre os acontecimentos.

“O povo, enfurecido, sai às ruas e, durante uma semana, enfrenta a polícia, o Exército, a Marinha e o Corpo de Bombeiros. As agitações começaram no dia 10 de novembro, com grandes ajuntamentos no centro da cidade. A polícia reagiu a tiros e com a ação da cavalaria. Barricadas e combates transformaram os bairros da Gamboa e da Saúde em praça de guerra. Os cadetes da Praia Vermelha se sublevaram, os sindicatos marcharam ao lado do povo. Saldo: segundo uns, 30 mortos, mais de cem feridos, quase mil presos – a metade deles deportada para o Acre, e sete estrangeiros banidos do país; segundo outros, centenas e talvez milhares de mortos.

Apesar das divergências estatísticas, sabe-se que a Revolta da Vacina foi o maior motim da história do Rio de Janeiro. Alguns historiadores consideram-na, pela violência de que se revestiu, da mesma importância, no espaço urbano, que a guerra de Canudos e a revolta do Contestado, no espaço rural. Pode ser considerada “um dos mais importantes movimentos populares de contestação” durante a primeira fase republicana ou “o levante popular, o mais indomável de que já fora palco a capital da República”. [10]

Um abismo sociológico se contrapõe entre os revoltosos de 1904, e os estultos insurgentes destes funestos tempos bolsonaristas. A revolta da vacina, na sua vertente histórica e trágica, tinha fortes raízes na injustiça social então vigente e ainda hoje existente, expressadas no varejo do descontentamento popular, fruto de inumeráveis atos de autoritarismo, exclusão social, preconceitos e violência estatal, nas searas legislativa, administrativa e policial. Ela foi a expressão, amalgamada e condensada, do microcosmo social brasileiro, de secular exclusão social, formando uma triste síntese de séculos de exploração, desigualdade estrutural, escravagismo ancestral, elitismo, egoísmo e completo desdém e desprezo pela sorte das camadas populares da sociedade brasileira.

Já a revolta da vacina, nascida no âmago das hostes bolsonaristas é, em face de sua antecedente histórica, uma farsa burlesca, tosca e bufa, comandada por patetas e fascistas, alimentados por densas camadas de mentiras, distorções e embustes.

O bolsonarismo é farsesco e grotesco, banal e reacionário, estulto e néscio. Constituiu-se em meio a mentiras, embustes, deturpações e engodo, ao arrepio da realidade fática e social brasileira.

Portanto, discrepam de maneira abissal e antagônica, os protagonistas da desditosa revolta do início do século XX e os nossos coetâneos que conspurcam o verde e amarelo, nos dias de hoje. No primeiro caso, situam-se as classes populares, os deserdados da vida, os espoliados e as vítimas de um sistema excludente e elitista. O segundo grupo é formado, fundamentalmente, por uma classe média estupidificada, dotada de uma mentalidade escravocrata, ligada a um cipoal de privilégios, os quais teme ver contestados e ameaçados por políticas públicas inclusivas, em direção a igualdade social. São massa de manobra dos interesses das elites dominantes. É formado, estruturalmente, com base em preconceitos, ignorância e reacionarismo. Tem um viés autoritário e protofascista em sua essência pequeno burguesa.

*Carlos Eduardo Araújo é mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG.

Notas


[1] Karl Marx. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Boitempo, 2011.

[2] Oswaldo Porto Rocha. A Era das demolições – A Cidade do Rio de Janeiro – 1870-1920. Prefeitura do Rio de Janeiro. Coleção Biblioteca Carioca, 2ª edição, 1995.

[3] Oswaldo Porto Rocha. A Era das demolições – A Cidade do Rio de Janeiro – 1870-1920. Prefeitura do Rio de Janeiro. Coleção Biblioteca Carioca, 2ª edição, 1995.

[4] Oswaldo Porto Rocha. A Era das demolições – A Cidade do Rio de Janeiro – 1870-1920. Prefeitura do Rio de Janeiro. Coleção Biblioteca Carioca, 2ª edição, 1995.

[5] Nicolau Sevcenko. A Revolta da Vacina. Cosac Naify, 2010.

[6] Nicolau Sevcenko. A Revolta da Vacina. Cosac Naify, 2010.

[7] Sidney Chalhoub. Cidade Febril – Cortiços e epidemias na corte imperial. Companhia das Letras, 1996.

[8] Sidney Chalhoub. Cidade Febril – Cortiços e epidemias na corte imperial. Companhia das Letras, 1996.

[9] Nicolau Sevcenko. A Revolta da Vacina. Cosac Naify, 2010.

[10] 1904 – Revolta da Vacina. A maior batalha do Rio. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. A Secretaria, 2006. (C

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