A terra é redonda e o capitalismo é o seu problema

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Alysson Leandro Mascaro*

Saber para agir alcança no marxismo sua mais alta expressão como ciência e revolução. Tal articulação é o quadrante dinâmico das possibilidades, impasses e contradições da sociabilidade capitalista. Em alguns momentos, desde o século XIX até agora, a falha se demonstrou incontrolável aos mecanismos de constituição ideológica do capital. De modo aberto ou deliberado, ocorreram revoluções, revoltas, protestos, lutas. A superação do capitalismo, no entanto, só se faz dando um sentido a tal efervescência da falha da reprodução social: a superação das formas do capital.

Tais formas – mercadoria, valor, Estado e direito – não são castelos a serem mantidos mediante trocas de guarda, nem monumentos a serem mais bem modulados, mas destruídos em favor de uma nova sociabilidade. O socialismo, sendo de cada qual segundo sua capacidade e a cada qual segundo sua necessidade, nada guarda de relação com dísticos de centro-esquerda como distribuição de renda, republicanismo ou melhores políticas públicas. Trata-se do radicalmente outro e novo na sociabilidade, para o qual, via de regra, ideologicamente as subjetividades não se encontram preparadas.

Está no problema da ideologia o plexo central da dor impotente das classes, grupos, movimentos e indivíduos na contemporaneidade. Sofre-se, e isto em graus e dosagens absurdos de horror existencial. A falha e a crise estão estampadas inequivocamente no rosto da maioria da humanidade. No entanto, a constituição ideológica vai bem.

O capitalismo reproduz, em suas teias, a plenitude da inteligibilidade e o desejo geral das sociedades presentes. Contra isso, não são suficientes – e são mesmo inócuos – os reclames por consciência. A ideologia não opera no plano das vontades conscientes ou autônomas. Sua inscrição está no inconsciente, haurida que é do mais arraigado das práticas da materialidade e da constituição – não de eventuais distorções ou alienações – das subjetividades. A luta, então, deve se dar neste terreno.

A ideologia é material. As relações sociais concretas são todas estabelecidas mediante formas sociais historicamente específicas. A vida, as interações, as possibilidades e as interdições são pensadas e calculadas a partir de tais materialidades cujas formas são determinantes. O dinheiro é o cálculo universal não por uma deformação dos indivíduos – avaros, interesseiros, egoístas –, mas porque, efetivamente, a disponibilidade relacional social é toda ela determinada pelo dinheiro. O que se chama de avareza ou mesquinharia é apenas uma quantificação exacerbada do mesmo das formas gerais constitutivas da sociabilidade capitalista que a todos atravessam.

Por ser material, a ideologia não comporta uma contraideologia sustentada apenas por vontade. Não há contraface do ideológico. Ele é a-histórico para todas as subjetividades por si constituídas. O capital, materialmente, totaliza o possível, dando a coerção e a dimensão dos vínculos. O desejo e a repressão são intrínsecos à forma específica de reprodutibilidade social capitalista. Por isso, via de regra, quando se busca irromper politicamente contra o quadro dado, as posições da esquerda recaem sobre as mesmas formas sociais constituintes: mais direitos, reconhecimento, acesso ao Estado, novas políticas públicas. A forma política estatal e a forma de subjetividade jurídica operam o vasto campo do conservadorismo e do reformismo capitalista.

O capitalismo pós-fordista, cuja crise se arrasta como um dínamo particular e virtualmente excelente em seus termos de acumulação e de regulação, fez tábua rasa de todas as contraideologias que se levantaram até então nas sociedades mundiais. O leninismo e o sovietismo soçobraram com o peso da declaração de horror à passagem a outro modo de produção. A energia crítica foi direcionada à microrresistência, impedindo o cultivo da revolução como modelo desejado de câmbio social. Entre afastamento de possibilidades outras e modulações do desejo e do ímpeto transformador, as últimas décadas viram a ideologia reinar sem qualquer contraste que lhe viesse a fazer, materialmente, ameaça.

O ideológico se espraia por uma materialidade relacional imediata forjando, também, uma inteligibilidade sobre si. Neste sentido, os aparelhos ideológicos são sua chave decisiva. A materialidade que dá constituição positiva de intelecção aos sujeitos é feita mediante aparelhagens. Ouvindo-se, vendo-se, lendo-se, tocando-se, constitui-se subjetivamente. Por isso, família, religião, escola, universidade, artes, livros, jornais, revistas, rádio, televisão, internet são os instrumentos ideológicos constituintes.

Suas formas, seus proprietários, seus comandos, interditos, sugestões, desejos e repressões são o motor da forja das subjetividades. O capitalismo é vitorioso sem contraste porque controla ampla e decisivamente a quantidade dos aparelhos ideológicos. A exploração e suas falhas não encontram sujeitos que assim as reconheçam, ou, se as reconheçam, nunca as põem na conta do próprio capitalismo, e sim da política, dos políticos, da corrupção, da imoralidade, das esquerdas etc. A crítica está submetida às formas. A ideologia não permite prosperar uma contraideologia porque os aparelhos ideológicos constituem a inteligibilidade possível à própria crítica.

Os governos de esquerda pelo mundo, nestas primeiras décadas do século XXI, operaram sempre mediante o desejo interno aos quadrantes das formas da sociabilidade capitalista. Não romperam com os aparelhos ideológicos que são os inimigos das lutas revolucionárias. Não o fizeram porque não são governos de movimentos revolucionários.

De fato, no seio das formas sociais capitalistas, não pode haver governos revolucionários. Mas, se se quiser sustentar uma posterior passagem à transformação social revolucionária, governos populares, trabalhistas ou progressistas devem ultrapassar suas próprias limitações e contradições constituindo inteligibilidade crítica às massas. Os aparelhos ideológicos, assim, são elementos cruciais da ação progressista em busca da continuidade de lutas superadoras das formas capitalistas.

A crise e a falha se reiteram por todo o capitalismo. A guerra mundial de 1914 e a crise econômica de 1929 poderiam ter ensejado o socialismo no mundo todo; ensejaram o nazismo. A crise do fordismo poderia ter levado à superação da forma mercadoria; gerou o domínio de uma classe rentista mundial contra o próprio mundo. As crises e as falhas se repetem hoje.

Nas poucas vezes em que elas são tamanhas a ponto de fazerem irromper movimentos populares fortes ou mesmo governos à esquerda, elas devem servir de ensejo a uma energização de lutas nacionais e internacionais, operando materialmente aparelhos ideológicos constituintes de subjetividades e desejos. Para não se arrastarem voos de galinha que geram sempre energias de resistência não-superadora e posteriores desapontamentos por seus fracassos, é preciso começar a unificar as lutas do povo e o que se chama de esquerda por uma só inteligibilidade: a crítica do capitalismo. A terra é redonda e o capitalismo é o seu problema.

*Alysson Leandro Mascaro é professor da Faculdade de Direito da USP.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Feres Júnior Ricardo Antunes Flávio R. Kothe João Carlos Salles Maria Rita Kehl João Paulo Ayub Fonseca Samuel Kilsztajn Otaviano Helene Rubens Pinto Lyra Sandra Bitencourt Chico Whitaker Heraldo Campos Celso Frederico José Raimundo Trindade Celso Favaretto Luiz Werneck Vianna Airton Paschoa Dênis de Moraes Rafael R. Ioris Salem Nasser Daniel Costa Carla Teixeira Annateresa Fabris Liszt Vieira Paulo Martins Gerson Almeida Paulo Fernandes Silveira Claudio Katz Remy José Fontana Vladimir Safatle Leda Maria Paulani Paulo Capel Narvai Luiz Renato Martins Benicio Viero Schmidt Afrânio Catani Ronaldo Tadeu de Souza Marcus Ianoni Fábio Konder Comparato Vanderlei Tenório Eugênio Trivinho Tadeu Valadares Luís Fernando Vitagliano Michael Roberts Paulo Nogueira Batista Jr Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Antonio Martins Matheus Silveira de Souza Andrés del Río Dennis Oliveira Marilena Chauí Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Bernardo Pericás Milton Pinheiro Jorge Branco Eduardo Borges Denilson Cordeiro Juarez Guimarães Mariarosaria Fabris Igor Felippe Santos Daniel Brazil Tarso Genro Marcelo Módolo Michel Goulart da Silva Vinício Carrilho Martinez Jean Marc Von Der Weid Ronald Rocha Kátia Gerab Baggio Marilia Pacheco Fiorillo João Carlos Loebens Francisco de Oliveira Barros Júnior José Dirceu Boaventura de Sousa Santos Gabriel Cohn Thomas Piketty Manuel Domingos Neto Leonardo Sacramento Tales Ab'Sáber Flávio Aguiar Paulo Sérgio Pinheiro Henri Acselrad João Lanari Bo Marcos Silva Alysson Leandro Mascaro Luciano Nascimento Francisco Fernandes Ladeira Atilio A. Boron Chico Alencar Renato Dagnino Anselm Jappe Bernardo Ricupero Ronald León Núñez Walnice Nogueira Galvão Francisco Pereira de Farias Michael Löwy José Luís Fiori Érico Andrade Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcos Aurélio da Silva André Singer Ricardo Musse Osvaldo Coggiola Gilberto Lopes Valerio Arcary Antônio Sales Rios Neto Alexandre Aragão de Albuquerque Lincoln Secco José Costa Júnior Fernão Pessoa Ramos Priscila Figueiredo Elias Jabbour Mário Maestri Yuri Martins-Fontes Gilberto Maringoni Rodrigo de Faria Leonardo Avritzer Slavoj Žižek Carlos Tautz Plínio de Arruda Sampaio Jr. João Adolfo Hansen Antonino Infranca Daniel Afonso da Silva Valerio Arcary José Machado Moita Neto Bento Prado Jr. Lorenzo Vitral Caio Bugiato Jean Pierre Chauvin Luiz Roberto Alves Alexandre de Freitas Barbosa Ricardo Fabbrini Julian Rodrigues Jorge Luiz Souto Maior Marjorie C. Marona Leonardo Boff Luis Felipe Miguel Ricardo Abramovay Manchetômetro José Micaelson Lacerda Morais Bruno Fabricio Alcebino da Silva Sergio Amadeu da Silveira José Geraldo Couto Berenice Bento Luiz Marques Andrew Korybko André Márcio Neves Soares Fernando Nogueira da Costa João Sette Whitaker Ferreira Ladislau Dowbor Everaldo de Oliveira Andrade Eliziário Andrade Marcelo Guimarães Lima Eugênio Bucci Armando Boito Alexandre de Lima Castro Tranjan Henry Burnett Bruno Machado Luiz Eduardo Soares Eleutério F. S. Prado Ari Marcelo Solon Eleonora Albano

NOVAS PUBLICAÇÕES