Produção de vacinas, questão de soberania nacional

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Por RAQUEL DE LIMA CAMARGO GIORDANO, RENATO MANCINI ASTRAY, ROBERTO DE CAMPOS GIORDANO, TERESA CRISTINA ZANGIROLAMI & VIVIANE MAIMONI GONÇALVES*

Por que não somos autossuficientes na produção de vacinas – e de biofármacos, de forma mais ampla?

Em junho de 2021 continuamos a testemunhar, com pesar, a maior crise sanitária da nossa história. É de conhecimento geral que o Brasil tem uma estrutura para vacinação única em nível mundial, já testada em outras ocasiões, o Programa Nacional de Imunizações (PNI)[i], inserido no Sistema Único de Saúde, SUS. Entretanto, um requisito indispensável para colocar essa máquina em movimento é a disponibilidade de vacinas.

Temos grandes parques instalados para produção industrial de imunobiológicos em Bio-Manguinhos/Fundação Oswaldo Cruz e no Instituto Butantan, duas instituições públicas motivo de orgulho para o povo brasileiro – junto com outras instituições de menor porte, país afora. Entretanto, em meio a esta pandemia, nos vemos na dependência da importação de ingredientes farmacêuticos ativos (IFAs)[ii] ou mesmo do produto já formulado, para apenas serem envasados no Brasil. Isto apesar de termos, também, centros de excelência em pesquisa básica em várias universidades e institutos públicos, com capacidade para desenvolver diferentes soluções para essa vacina.

O trabalho desses grupos continua hoje, mas a transformação dessas propostas em um produto disponível para o enfrentamento da COVID-19 levará mais tempo do que a maioria das vacinas já disponíveis e das mais de 100 candidatas atualmente em ensaios clínicos no mundo. No momento em que escrevemos este texto, nenhuma vacina desenvolvida majoritariamente no Brasil ou com tecnologia nacional está em teste clínico fase III. Assim, ficamos à mercê de políticas erráticas e, portanto, ineficientes, e da capacidade produtiva de outros países para obtenção de vacinas no exterior.

Por que não somos autossuficientes na produção de vacinas – e de biofármacos, de forma mais ampla? Como essa questão de segurança nacional pode ser resolvida? Entrevistamos diversos atores envolvidos no cenário do desenvolvimento e produção de medicamentos biológicos no Brasil para entender essa situação, como se pode ver nos agradecimentos ao final deste texto. Suas contribuições foram inestimáveis para esta reflexão. As ideias que seguem, entretanto, são unicamente de responsabilidade das(os) autoras(es), que procuraram lançar um olhar transversal para o problema, integrando suas múltiplas facetas também a partir da perspectiva da engenharia e dos processos industriais de produção. Pensamos, com isso, contribuir para o debate já levado à frente pelo GT-Vacinas da ABC.[iii]

Estabelecer uma Política de Estado para produção de vacinas com tecnologia nacional irá depender, sem dúvida, de decisões políticas complexas que contemplem as várias dimensões do problema. Aqui, levantamos alguns tópicos que entendemos estruturantes: a concepção de uma cadeia produtiva vertical; a questão regulatória; a questão do financiamento, incluindo o uso proativo do poder de compra do governo (Ministério da Saúde, MS/SUS); a transferência de tecnologia em biofármacos, como propõe o programa de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs)[iv]; o problema de termos uma massa crítica de pessoal altamente qualificado. Essas ideias são resumidas a seguir.

Consolidação de uma cadeia produtiva como política de Estado

Já houve, no passado, tentativas de construir a autossuficiência em vacinas no Brasil, como o Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos (PASNI)[v]. Entretanto, não conseguimos implementar até hoje um sistema integrado, baseado em tecnologias nacionais, com capacidade para dominar todo o arco que vai da ciência básica à tecnologia industrial. Ao contrário, nas últimas décadas a abordagem de transferência de tecnologia vem cada vez mais se tornando dominante (como ocorre agora com as vacinas anti-SARS-COV-2 do Butantan e da FioCruz). Há, portanto, vários gargalos a enfrentar, mas acreditamos que a melhor forma de os superar é pensando o problema de forma sistêmica: é preciso consolidar um sistema de ciência, tecnologia, inovação e produção industrial, baseado em Políticas de Estado (e não apenas de governo) consistentes, e integradas com os setores da economia que possam contribuir nessa tarefa.

A produção de vacinas demanda uma estrutura complexa, indo desde grupos de ciência básica que desenvolvem novas propostas de imunizantes, até unidades industriais de grande escala. Essa cadeia precisa estar presente no país, embora a contratação de serviços no exterior e a importação de insumos provavelmente continuarão a ocorrer em longo prazo.

O primeiro elo dessa cadeia são os grupos de pesquisa altamente qualificados, da biotecnologia in silico à biologia molecular, e ao planejamento e análise de testes in vivo. Nesse aspecto, nas universidades e nos institutos de pesquisa públicos do Brasil já temos importante competência, estabelecida em décadas de trabalho árduo. A questão aqui é de financiamento, para a manutenção desses grupos e ampliação de seu número.

Infelizmente hoje temos uma situação muito ruim no país[vi], cuja rápida superação será essencial para não perdermos esse patrimônio intelectual.

Esses grupos, entretanto, precisam estar articulados à sequência da cadeia. É necessário haver conexão entre a pesquisa básica e o desenvolvimento e a melhoria do processo industrial, que irá permitir o aumento de escala da produção. Em outras palavras, cremos que falta articulação entre a descoberta do antígeno e a engenharia de bioprocessos. É preciso conceber um processo de produção em grande escala, indo do upstream (preparação de insumos, manutenção de bancos de células, dentre muitas outras operações), passando pelos biorreatores (de ovos embrionados a cultivos de células animais), até o downstream (separação e purificação do ingrediente ativo, formulação estabilizadora, escolha de adjuvantes, envase da vacina). Simultaneamente, deve-se fazer uma análise de viabilidade tecnoeconômica (e de impactos ambientais também, por que não?) desde a primeira concepção do processo. Essa articulação, hoje parca ou inexistente, permitirá voltar às etapas iniciais do desenvolvimento quando necessário, em um processo interativo para aumentar a produção, a estabilidade, a qualidade e a relação custo-efetividade. Isso inclui uma retroalimentação entre o pessoal de processos e o de biologia molecular, eventualmente até “voltando-se à prancheta” para refazer um clone de forma a atender a características que serão importantes para o processamento industrial do IFA. Esses elementos fazem parte do cotidiano das empresas produtoras de medicamentos e vacinas no mundo. Não é coincidência o fato de que várias vacinas contra o SARS-CoV-2 hoje em uso, ou que serão aprovadas em pouco tempo, tiveram origem em grandes empresas farmacêuticas aliadas a empresas de biotecnologia, cuja visão integrada dessas etapas permite rápido avanço no desenvolvimento da tecnologia.

Além disso, antes de chegarmos ao processo industrial, é preciso produzir lotes para ensaios clínicos em condições de boas práticas de fabricação, uma etapa intermediária essencial que exige que o bioprocesso já esteja definido, para então ser implantado em laboratórios especialmente construídos e operando a alto custo, utilizando sólido ambiente de qualidade, e demandando investimento em validações de processos e testes analíticos[vii].

A experiência internacional indica que há necessidade de articular várias dessas etapas com múltiplos agentes. Não é, normalmente, o produtor final que as executa sozinho. Contratação de serviços de manufatura (CMOs, da sigla em inglês para organizações contratadas para manufatura), e de serviços de pesquisa (CROs, organizações contratadas para pesquisa) é uma prática corriqueira neste campo. Assim, uma Política de Estado deve necessariamente incluir o estímulo à nucleação de empresas nacionais desse tipo.

Por outro lado, a própria produção demanda insumos e serviços que podem, em grande medida, ser fornecidos por empresas de pequeno-médio porte, incluindo start-ups e spin-offs. Serviços e produtos podem ser contratados dessas empresas, com estímulo por parte do governo através de cláusulas de participação nacional em contratos governamentais, por exemplo. Testes analíticos, insumos altamente especializados (como resinas, membranas, reagentes), para não falar de equipamentos (tanto para unidades de produção como para análises) são hoje essencialmente importados, e esse quadro precisa ser gradativamente alterado. Acreditamos que um grande obstáculo aqui talvez seja dispor de pessoal qualificado. Há que organizar um ambiente atrativo para os quadros que formamos em nossas universidades públicas – e que, muitas vezes, têm dificuldade para colocação no mercado. Precisamos atrair cérebros, de brasileiras e brasileiros que buscaram oportunidades no exterior, e também de profissionais estrangeiros qualificados.

Um programa governamental que estimule e financie grupos e empresas para fazer engenharia, talvez em uma concepção que se inspire na experiência das PDPs – mas com garantia de continuidade (sem interrupções judiciais), reiteramos, como Política de Estado – pode ser uma solução para ajudar a suprir essa lacuna. Já há experiências consolidadas nessa área como, por exemplo, o programa PIPE-FAPESP para financiamento de pequenas empresas de alta tecnologia, que podem ser incorporadas. Estão principalmente nesse ambiente as melhores oportunidades para o Brasil desenvolver plataformas tecnológicas inovadoras, abrindo a possibilidade para a proposição e talvez o rápido desenvolvimento de soluções nacionais para nossos desafios. O que teria sido o surto de Zika anos atrás, se o país tivesse ao menos uma plataforma tecnológica de rápido desenvolvimento para a proposição de uma vacina? Nitidamente, a dimensão do problema mundial da pandemia de COVID-19 nos forneceu uma oportunidade de enfrentar a situação com vacinas produzidas no exterior, o que não ocorreu com o surto de Zika, que ficou restrito a países da América Latina, oferecendo pouco risco aos países do Norte global. A diferença que uma Política de Estado faz nesse âmbito é claramente exemplificada pela vacina de Oxford. Foi o governo do Reino Unido que injetou verbas de pesquisa durante anos naquela Universidade para o desenvolvimento de uma plataforma. O resultado foi visto na prática, quando o Reino Unido se tornou um dos primeiros países a ter altas taxas de cobertura vacinal contra a COVID-19.

O elo final da cadeia produtiva são as unidades industriais. Acreditamos que uma política consistente deve se basear na estrutura de produção que já temos, nos institutos públicos. Evidentemente, alternativas no setor privado também poderiam ser incentivadas, como apoio importante. Da mesma forma, a transferência de tecnologia, que irá continuar certamente, não pode ser estigmatizada como solução alternativa, embora não deva ser um obstáculo ao desenvolvimento nacional[viii]. Mas defendemos que a sustentação de nossa autonomia terá como espinha dorsal os institutos públicos como Butantan e FioCruz. Entretanto, a governança dessas instituições deve ser modificada. Certamente, seus laboratórios de pesquisa precisam ser apoiados e expandidos (como parte do primeiro elo da cadeia, já mencionado). Mas a produção tem outro escopo, exigindo agilidade e flexibilidade administrativa. Apenas para exemplificar, Bio-Manguinhos hoje é uma de dezesseis unidades técnico-científicas da Fundação Oswaldo Cruz. Isso implica a necessidade de atender à lei de licitações 8666/93, que rege compras do setor público. A Fundação Butantan tem perfil semelhante. Essas amarras têm que ser desatadas. A operação de uma indústria atendendo à 8666 torna-se um árduo exercício de habilidade e adaptação. Um esforço enorme, que poderia estar voltado para a melhoria de processos e produtos, precisa ser investido em compras e licitações de obras, por exemplo. E muitas vezes com resultados muito ruins. Faz parte do trágico anedotário no setor a compra de luvas pelo menor preço, que por seus constantes defeitos obrigam técnicas(os) a utilizarem duas delas sobrepostas. Ou a contratação de obras exigindo alta especialização, também pelo menor preço, feita à revelia da vontade dos contratantes, futuros usuários, resultando em uma licitação ganha por empresa que tinha “vínculos informais” com construtoras já processadas por não terem entregue obra semelhante dentro das especificações. Situações dantescas que precisam ser superadas com uma reformulação da legislação. Assim como não tem sentido usar a lei 8666 para atividades de pesquisa em universidades e institutos públicos, não tem sentido utilizá-la para compras industriais. O mesmo pode ser dito de processos de importação de material para pesquisa. É necessária uma urgente reformulação do arcabouço legal. É letal para os projetos e para a competitividade termos que aguardar às vezes durante meses por um reagente essencial a uma pesquisa.

De outra parte, a estrutura administrativa dos institutos públicos, ao menos no que se refere aos setores de produção, precisa ser mudada. Já há propostas amadurecidas pela comunidade do setor, como por exemplo a transformação de Bio-Manguinhos em empresa pública[ix], controlada integralmente pelo Estado. Essa discussão precisa ser aprofundada urgentemente.

A questão regulatória

Esta é uma questão muito delicada. A Anvisa tem sem dúvida papel essencial em garantir a qualidade dos produtos oferecidos à população, e ninguém pode defender um relaxamento de critérios que possa ser prejudicial a essa missão. Por outro lado, acreditamos que, respeitados esses critérios, a atuação dessa agência deva também ser parte da política de estado pró-vacinas nacionais. Essa política precisa ser vista de forma sistêmica, com cada parte dela interligada às demais. Há vários pontos aqui que podem ser analisados e aperfeiçoados. Um exemplo é o processo de credenciamento de laboratórios e unidades de produção que já trabalham com produtos semelhantes, que poderia ter uma via rápida.

De outra parte, a capacitação dos quadros dessa agência é notória. Entretanto, há modelos no exterior em que as próprias agências têm laboratórios de pesquisa. Quando não se dispõe de laboratórios de excelência, inclusive desenvolvendo metodologias, a tendência natural é pela adoção de critérios conservadores. E não se pode negar que a política de “levantar o sarrafo” desses critérios por parte das agências dos países centrais, sedes das grandes corporações farmacêuticas, pode ser uma estratégia sub-reptícia de controle por parte de oligopólios[x]. Assim, um quadro técnico da Anvisa que faça pesquisa de ponta pode ser fundamental para assegurar nossa política industrial soberana, considerando de forma crítica as exigências de agências de outros países. Esta proposta certamente levaria décadas para se consolidar. Inicialmente, acordos de cooperação com laboratórios em centros de excelência das universidades/institutos no Brasil e estágios no exterior seriam indispensáveis, mas em médio prazo essa alteração no papel da Anvisa, passando de agência essencialmente fiscalizadora para formuladora de critérios de análise e avaliação, pode ser um diferencial muito importante para o país.

Toda esta questão envolve uma aparente contraposição entre o “querer o melhor para o povo” e o desenvolvimento de uma indústria nacional. Esse tipo de desafio foi enfrentado por países que hoje são os maiores fornecedores de insumos mundialmente, Índia e China por exemplo. E são cotidianamente enfrentados por países com tradição em biotecnologia, mas fora do eixo da indústria farmacêutica ocidental (a big pharma), como Cuba e Rússia. Acordos de cooperação com esses países, também nessa área, podem ser de grande valia. Uma possibilidade no Brasil seria a constituição de algum tipo de conselho científico para consolidação de políticas regulatórias, com participação da comunidade científica nacional.

A questão do financiamento

O financiamento para um parque nacional de produção de vacinas – ou, de forma mais geral, de biofármacos – é ponto obviamente crucial, e será responsabilidade do Estado. O BNDES tem já uma rica história na construção das PDPs, programa que articula empresas privadas nacionais em acordos de transferência de tecnologia com empresas estrangeiras, com o setor público através de Bio-Manguinhos, Butantan, Tecpar e com o Ministério da Saúde, para produção de biofármacos. Essa experiência de articulação entre setores pode ser muito importante na construção e financiamento de um programa como o delineado aqui. Entretanto, uma grande dificuldade vem sendo sentida no que diz respeito à continuidade das PDPs quando da mudança de governos – daí a importância de termos um Programa de Estado, não de governo.

Ponto crucial neste arcabouço é o papel das compras governamentais. O SUS é o grande comprador de fármacos e imunobiológicos. O poder de compra do governo é, portanto, elemento central para sustentação econômica de toda esta construção. Uma concepção que tenha como único objetivo o menor preço pode, aparentemente, ser a preferível do ponto de vista das contas públicas, em uma visão economicista liberal. Entretanto, é preciso entender que cabe à União dar sustentabilidade ao sistema. A garantia de compra de produtos nacionais, a preço justo, independentemente de tentativas de dumping feitas por produtores estrangeiros, é o elemento que dará estabilidade a uma proposta de autossuficiência[xi]. Já houve situações em que a ausência dessa política por parte do Ministério da Saúde levou ao fracasso de empreendimentos autóctones – um exemplo notório foi a insulina recombinante nacional. Hoje a mesma insegurança pode estar pairando no ar para empresas das PDPs. Esse erro não pode repetir-se; há necessidade de financiamento governamental para consolidar uma área complexa como a de vacinas. E uma das formas de financiamento é a garantia de compra a preço justo. Como construir um sistema de precificação transparente e eficiente? Mais uma vez, a abertura de tais decisões em comitê com participação da comunidade técnica e científica, da representação institucional dos poderes executivo e legislativo, da sociedade civil organizada, pode ser uma forma interessante para tratar este problema crucial.

Financiamento de testes clínicos, cujo planejamento e execução já são dominados nacionalmente, é outro ponto importante. Testes em fase inicial, talvez até fase I, poderiam ter suporte também de agências financiadoras de pesquisa como FINEP/CNPq e FAPs, enquanto que fases II e III poderiam ter no BNDES, e eventualmente na FINEP, fontes de financiamento estatal.

Pessoal qualificado

Seria uma redundância insistir na importância de haver uma massa crítica de cientistas, técnicos, pesquisadores das mais diversas áreas que interagem nessa indústria de caráter transversal. Da área médica à farmacêutica, da engenharia à estatística, da bioquímica à bioinformática. Temos no Brasil um número considerável de centros de formação, em nível de graduação e de pós-graduação, mas observamos que muito desse pessoal não se insere em empresas de biotecnologia industrial voltadas à saúde humana.

Além de se buscar consolidar esses centros de formação, é necessário expandi-los, aprofundar programas de intercâmbio, de repatriação de cérebros e de atração de talentos do exterior. O caminho das pedras é conhecido, mas falta uma política consistente que, por décadas, promova o desenvolvimento desses quadros. A própria implementação de um Programa de Estado para consolidação da indústria nacional de imunobiológicos será estímulo nessa direção, incluindo-se aí a nucleação de novas empresas de alta tecnologia, cuja presença pode ser um requisito em propostas submetidas a esse programa.

Enfim, acreditamos que grandes crises podem gerar grandes oportunidades. A reindustrialização do Brasil, após um período trágico de nossa história, cheio de retrocessos, poderá e deverá abarcar áreas de alta tecnologia, com sistemas produtivos socioambientalmente corretos. Nossa expectativa é que se espraie nacionalmente a consciência da importância de termos incluído nesse processo de reindustrialização um parque produtor de biofármacos, um setor que pode aderir a concepções sustentáveis de produção, gerando vacinas não só para o Brasil, mas também para exportação, notadamente para vizinhos na América Latina, para países do Sul global e no futuro para o planeta inteiro. Um sonho sonhado juntos, quem sabe um dia tornando-se realidade.

P.S. As(os) autoras(es) agradecem imensamente a atenção que especialistas de grande respeitabilidade nos deram em longas entrevistas. Obviamente as ideias aqui expostas são de responsabilidade exclusiva dos autores, mas a contribuição desses colegas enriqueceu sobremaneira nossa visão do tema. Agradecemos, portanto, ao Dr. Antonio Barbosa, Bio-Manguinhos; Prof. Jorge Kalil, FM-USP; Profa. Leda Castilho, Coppe-UFRJ; Dr. Luciano Vilela, Biomm; Dr. Pedro Palmeira, consultor de empresas farmacêuticas e de biotecnologia; Dr. Thiago Mares Guia, Bionovis.

*Raquel de Lima Camargo Giordano é professora sênior do Departamento de Engenharia Química da UFSCar.

*Renato Mancini Astray é pesquisador científico do Instituto Butantan.

*Roberto de Campos Giordano é professor sênior do Departamento de Engenharia Química da UFSCar.

*Teresa Cristina Zangirolami é professora sênior do Departamento de Engenharia Química da UFSCar.

*Viviane Maimoni Gonçalves é pesquisador científico do Instituto Butantan.

Notas


[i] O PNI foi criado em 1973, portanto antes mesmo da criação do SUS pela Constituição de 1988, ao qual foi prontamente incorporado. Este programa conquistou grandes feitos ao longo dos anos como a Campanha Nacional de Vacinação Contra a Meningite Meningocócica de 1975, quando chegou a vacinar 9 milhões de pessoas em apenas quatro dias na região metropolitana de São Paulo, e a eliminação da poliomielite no Brasil, cujo último caso foi registrado em 1989.

[ii] O ingrediente farmacêutico ativo é a substância fundamental do produto farmacêutico; no caso de vacinas virais, trata-se de molécula, vírus inativo, vírus atenuado ou vetor viral, após sua produção e purificação em escala industrial.

[iii] Vacinas para o Brasil. Grupo de Trabalho da Academia Brasileira de Ciências. Abril 2021. Disponível em: http://www.abc.org.br/

[iv] As Parcerias para Desenvolvimento Produtivo, PDPs, fazem parte de um mecanismo de política industrial para ampliar o acesso a medicamentos estratégicos e/ou de alto custo para o SUS, fomentando o desenvolvimento nacional para reduzir os custos com importação. O Ministério da Saúde firma acordos com laboratórios privados para transferir a tecnologia de produção aos laboratórios públicos. Durante o período de transferência, o governo garante aos laboratórios privados a exclusividade na compra. Ao final do período, o laboratório público torna-se o detentor da tecnologia e passa a ser o produtor e fornecedor do SUS.

[v] O PASNI foi criado em 1986 para fazer frente a uma enorme crise na produção de produtos imunobiológicos no Brasil. O programa permitiu a recuperação dos institutos públicos com o objetivo de tornar o país independente na produção de soros e vacinas até 1990, investindo na aquisição de equipamentos, adequação das instalações e modernização dos processos de produção (Ibañez, Wen, Fernandes. A autossuficiência na produção de imunobiológicos e a criação do Centro de Biotecnologia do Instituto Butantan. Cad. hist. ciênc. 2007;  3(1): 9-34. Disponível em: http://periodicos.ses.sp.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-76342007000100002&lng=en).

[vi] Após aumento expressivo dos dispêndios em P&D por parte de CAPES, CNPq e FNDCT a partir de 2004, atingindo pouco mais de R$ 13 bilhões em 2015, a estimativa da execução orçamentária federal para apoio à pesquisa científica e tecnológica no Brasil despencou para pouco mais de R$ 2 bilhões em 2020, retrocedendo para valores inferiores aos do ano 2000 (Koller, P. Investimentos federais em pesquisa e desenvolvimento: estimativas para o período 2000-2020, Nota técnica 56, Diset-Ipea. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9656/1/NT_56_Diset_Investimentos%20federais%20em%20pesquisa%20e%20desenvolvimento.pdf)

[vii] Muito tem sido dito no sentido de que o problema seria a falta de locais para produção em condições de boas práticas de fabricação, sem considerar que antes disso é necessário que o processo de produção esteja desenvolvido (além da já citada ABC, nota 4, ver também https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/02/vacinas-brasileiras-lutam-para-ir-alem-da-pesquisa-basica)

[viii] Se por um lado a transferência de tecnologia é uma opção para atender mais rapidamente o PNI, uma vez que o produto, primeiramente envasado e depois a granel, passa a ser importado durante o processo, por outro lado o tempo para completar a transferência e os recursos investidos devem ser cuidadosamente avaliados em relação à possibilidade de aplicar os mesmos recursos para o desenvolvimento local da tecnologia. Além disso, o tempo para completar a transferência não pode ser tão longo que a tecnologia ou o produto já estejam obsoletos ao final.

[ix] Esta proposta está detalhada em Silva, Soares, De La Veja, Lacerda. Inovação na gestão pública: a construção da empresa Bio-Manguinhos, Porto Alegre: Bookman, 2017.

[x] Métodos ou equipamentos com maior sensibilidade são constantemente adotados por grandes empresas, muitas vezes com elevados investimentos, sem ter necessariamente correlação com a qualidade do produto, pois a detecção de 0,1% a mais ou a menos de uma impureza, por exemplo, pode não ter impacto algum na eficácia do produto. Assim, as grandes empresas acabam pressionando os órgãos reguladores a adotar critérios cada vez mais estritos e que somente elas conseguem seguir.

[xi] Em 1995, a vacina importada para hepatite B custava US$ 8,00 a dose. Naquele ano a vacina brasileira para hepatite B, primeira vacina recombinante produzida na América Latina, começou a ser testada em um centro de saúde da USP e, depois de cerca de cinco anos, o preço da vacina importada caiu para US$ 0,50, enquanto o custo estimado de produção da vacina nacional era de US$ 0,35 (Cerqueira Leite R. C., Tendências/Debates, Folha de São Paulo, 11 de novembro de 2001)

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