Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Depoimento sobre a gênese e os 14 números de “Almanaque – Cadernos de Literatura e Ensaio”
A Bento Prado Jr. in memoriam e a Luis F. S. Nascimento que puxou o fio
A Maria Antonia
A data primordial e fatal é esta: 3 de outubro de 1968. Foi nesse dia que a Maria Antonia – à rua Maria Antonia 294, no Centro de São Paulo –, nossa querida Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, foi desocupada a tiros, bombardeada e incendiada. Vida e mundo nunca mais foram os mesmos.
Seguiu-se a diáspora. Uns escolheram a clandestinidade, outros buscaram o exílio, como foi o caso de Bento Prado Jr., cassado na lista do AI-5 no início de 1969. A maioria dos sobreviventes teve seu destino determinado pelas autoridades, que enviaram estudantes, professores e funcionrios para terminar o ano letivo em aulas improvisadas em locais também improvisados, naquele lamaçal sem iluminação e sem condução que era então a futura Cidade Universitária. Muitas outras escolas, e em primeiro lugar e a toque de caixa aquelas que davam trabalho (afora a nossa, também a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a Faculdade de Economia e Administração etc.) foram lá reassentadas à força.
Por que a Maria Antonia teve esse destino? Por que tinha se tornado a sede do movimento estudantil brasileiro. Tudo partia de lá: as assembleias, as passeatas, as decisões que comprometiam o Brasil todo. Os líderes nacionais moravam lá, isto é, tinham moradia permanente e mais ou menos secreta nos meandros daquele edifício. E é de lá que sairia a luta armada, que, como vocês sabem, foi constituída majoritariamente por estudantes universitários. Estes, pelo planeta afora e por todo esse período, estiveram na vanguarda do processo histórico. Junto com os trabalhadores constituíram a camada social mais sacrificada pela ditadura. Lá sediava a central, mais do que do movimento estudantil nacional, da resistência à ditadura.
Fazia meses que a Maria Antonia fora ocupada pelos estudantes. Instaurara-se uma espécie de utopia, em que os estudantes ditavam aos professores o que é que queriam como aula e como sistema de ensino. Logo todos estariam empenhados em criar a Reforma Universitária. A visada era igualitária e por isso a primeira das reivindicações era que os alunos também dessem aulas, e foi a partir daí que se criou o famoso “seminário”, em que os alunos davam aula e os professores ouviam. Vocês não imaginam o quão revolucionário isso foi, pois havia alguns séculos (desde a criação das primeiras universidades entre os sécs. XI e XIV – Bolonha, Sorbonne, Carolus de Praga, Coimbra, Oxford) que só os professores falavam e os alunos ouviam sem abrir a boca: a comunicação era por escrito e a resposta vinha nos trabalhos redigidos. Daí, a querer reformular tudo no ensino universitário, de alto a baixo, foi apenas um passo.
Boa parte dos professores aderiu e entrou de cabeça nessa tentativa de democratizar o ensino e de ouvir o que os alunos tinham a dizer. Alguns participaram um pouco e depois desistiram, porque o hábito da cátedra e do magister dixit era difícil de descartar. Muitos ficaram até o fim, e entre eles Antonio Candido, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda, que estavam por lá todos os dias.
A dramaturga Consuelo de Castro, aluna de Ciências Sociais, conta que sua mãe foi ajudar na cozinha comunitária, onde voluntários preparavam caldeirões e mais caldeirões de comida, porque era preciso alimentar aquele contingente populacional, evidentemente faminto. Sérgio Buarque de Holanda entrou na fila, mas, quando chegou sua vez, a mãe da Consuelo olhou para ele e disse: “Não – o senhor não é aluno, não tem direito”. E ele: “Mas eu sou pai do Chico…”. Chico estava entre os ocupantes da FAU, também ocupada. E ela, que não tinha a menor ideia de quem eram nem o pai nem o filho, retrucou: “E eu sou mãe da Consuelo!” E recusou-lhe o prato de comida…
Consuelo escreveria uma peça, sua estreia no ofício em que faria brilhante carreira, sobre a ocupação da Maria Antonia, intitulada Prova de fogo. O título provinha de uma canção de Wanderléa, da Jovem Guarda liderada por Roberto Carlos, então na moda. A peça, é claro, foi imediatamente proibida pela censura. Só veria os palcos um quarto de século depois, no espaço do Grêmio da Maria Antonia, originando uma experiência curiosa para o espectador: ver uma obra de ficção encenada no próprio local de referência e avaliada por sua própria vivência ali mesmo.
A folha-corrida da peça é típica dos tempos. Escrita e proibida em 1969, foi premiada como a melhor peça brasileira em 1974 pelo Serviço Nacional de Teatro, portanto em plena ditadura e enquanto continuava proibida, para só ser liberada ao fim dela.
Importantes no funcionamento da Maria Antonia eram os bares, sempre cheios, que todos frequentavam diariamente, nem que fosse só para tomar um cafezinho. Destacava-se entre eles o Bar Sem Nome, onde Chico Buarque vinha da FAU ali ao lado para tocar violão e cantar. O bar era célebre por ter inventado a caipirinha de agrião, que todo mundo tomava e achava uma delícia, mas que não recomendo. Chamava-se Bar Sem Nome porque, é óbvio, não tinha nome. Anos depois gentrificaram o bar e puseram uma enorme placa: “Bar Sem Nome”. Ora, a rotulação é falsa, porque, a não ser o Cientista (vejam que nome adequado), os nomes dos bares éramos nós que dávamos. Afora o mencionado Cientista havia o Bar do Zé, ambos na Maria Antonia, grudados na Faculdade; no meio, entre eles, ficava aquele que chamávamos de Bar do Meio. Todos eram ótimos bares.
Não podemos esquecer o Bar do Grêmio, que ficava no subsolo, ao lado da Gráfica – descia-se uma escada, atravessava-se o pátio, onde havia uma saída pela Faculdade de Economia que dava na Dr. Vilanova e que foi muito útil para evacuar os alunos no dia da batalha. Escapando por ali Bento foi preso, embora fosse solto no mesmo dia, depois de fichado: a essa altura a polícia já tinha cercado o quarteirão.
Ali era o Bar do Grêmio, foco de sociabilidade sem igual. Era onde se fazia política, dia e noite. O arrendatário do bar era um sujeito formidável: o Oswaldo, Oswaldo Monea, de quem se filava cigarro, que fazia fiado, emprestava dinheiro, dava recados, era confidente de todo mundo. Mantinha também uma barbearia ao lado, onde os homens faziam a barba e cortavam o cabelo. Deixou um pequeno depoimento no Livro Branco adiante citado. E se arruinou na batalha da Maria Antonia, pois forneceu todas as suas garrafas de reserva, uma quantidade enorme, para que se fizessem com elas coquetéis molotov.
É desse meio e dessa gente que saiu a revista Almanaque – Cadernos de Literatura e Ensaio, de que Bento e eu fomos co-diretores ao longo de toda a sua duração de 14 números, e de que passo a falar. Precisamos ter em mente que Almanaque é uma revista de resistência (resistência à ditadura), feita por sobreviventes. Daí decorrem muitas de suas características. Antes de abordar esse tópico, vamos ver qual era o contexto da Maria Antonia e o que ela importava por se situar no Centro de São Paulo.
A Maria Antonia e a USP
Ao comparar a Maria Antonia com a Faculdade de Direito, onde também estudou, Antonio Candido observa que a diferença se origina em nossos professores europeus, que eram de esquerda e vinham influenciados pelo período do Front Populaire dos anos 30. Esse período de entre-guerras, como vocês sabem, foi de intensa radicalização no mundo todo, os intelectuais tomando partido ou à direita ou à esquerda, e de preferência à esquerda. E transmitiram esse radicalismo aos alunos.[i]
Fundada para ser a cabeça teórica da USP, sua novidade científica foi a ciência não aplicada. No Brasil já havia escolas superiores de Direito, de Medicina, a Politécnica de engenharia, todas de ciência aplicada, que davam formação profissional. Mas não havia o estudo teórico das diferentes ciências – ciência pura e não aplicada – o que nossa Faculdade veio trazer.
Afora isso, outro fator crucial foi a importação de professores estrangeiros, a maioria muito jovem e iniciando a carreira, sem sequer título de doutor. Raro era aquele que já tinha publicado um livro. Esses professores foram mais ou menos agrupados por proveniência: os franceses se encarregaram das humanidades (Filosofia, Psicologia, Sociologia, Política, História, Geografia etc.), os italianos das ciências físicas e das matemáticas, os alemães das ciências naturais. A exemplo de Lévi-Strauss entre os franceses, havia entre os alemães e italianos vários judeus que fugiam ao nazismo então em ascensão.
Dentre os pioneiros franceses, além de Lévi-Strauss, o criador do Estruturalismo que se tornaria um dos mais brilhantes intelectuais do século XX, e que fez sua carreira estudando os mitos indígenas, houve Roger Bastide, que se tornaria a maior autoridade nas religiões afrobrasileiras. Ou seja, o impacto do Brasil foi determinante na obra de ambos, fornecendo-lhes a “epifania epistemológica” que os orientaria vida afora. Sobressaem ainda os nomes do futuro historiador Fernand Braudel, do professor de Política Paul Arbousse-Bastide e do geógrafo Pierre Monbeig.
Inicialmente foi uma fase heroica, pois a nova Faculdade só existia idealmente, isto é, não tinha prédio próprio, sendo as aulas ministradas em locais precários, cedidos por outras escolas nem sempre de boa-vontade. A sede seria criada em 1949, à rua Maria Antonia 294, no Centro.
Mas em 1968 o grande tema que congregava a ocupação da Maria Antonia, regida por uma Comissão Paritária docente e discente eleita por votação, era a Reforma Universitária democrática e progressista na qual estavam trabalhando alunos e professores. E que foi por água abaixo, enquanto se outorgava no ano seguinte uma reforma autoritária, conformista, de inspiração norte-americana, compartimentalizadora do saber, decretada do alto e sem consulta democrática aos por ela atingidos. Tudo o que não queríamos.
Depois de 1968 tudo isso seria desmembrado, a Maria Antonia e seu grandioso projeto científico e educacional pulverizados, as diferentes seções transformadas em faculdades independentes, distantes do Centro da cidade e distantes umas das outras, para assim quebrar o espírito de contestação da escola. E a Faculdade de Filosofia seria reduzida ao núcleo das humanidades, tendo perdido todas as ciências. Foi assim que ela mudou de nome e deixou de ser “de Filosofia, Ciências e Letras” e passou a ser apenas “de Filosofia, Letras e Ciências Humanas”: a amputação que a degradou ostentada no nome.
Já se vê como era internamente a presença viva das especialidades todas em convívio, o contágio de todos, a não-compartimentação do saber. Segundo o professor de filosofia João Cruz Costa, aprendíamos mais nos corredores que na sala de aula. Some-se a isso a imersão no cadinho cultural que era o Centro de São Paulo, onde alunas e alunos saíam das aulas e iam a pé para as livrarias, bibliotecas, cinemas, teatros, óperas, concertos, museus, galerias de arte, exposições, bares e tudo mais que o Centro oferecia com exclusividade. E teremos, entre os vasos comunicantes internos que o expunham a todos os saberes, de um lado, e a cultura da cidade, de outro, um aluno muito especial, que era um cidadão da polis.
A Maria Antonia na polis
A cidade de São Paulo, nessa época, tinha um Centro urbano onde tudo, mas absolutamente tudo, se passava: constituía uma polis.
No plano das artes, a década anterior, ou seja, a de 50, viu iniciativas admiráveis como a Vera Cruz e o Teatro Brasileiro de Comédia. A primeira era uma companhia de cinema, com estúdios e ambição hollywoodianos, que por algum tempo produziu filmes da maior relevância, tirando o cinema brasileiro do aleatório e do amadorístico. O Teatro Brasileiro de Comédia, ou TBC, elevou a arte a um nível de profissionalismo e de ampliação de repertório, que assentaria as bases do teatro moderno em nossas terras.
Tudo convergia para um polo onde ficavam a Faculdade de Filosofia, a Faculdade de Arquitetura e a Faculdade de Economia, estas da USP, bem como a Escola de Sociologia e Política, mais o sistema educacional secundário e universitário do Mackenzie, acrescido pelo Colégio Rio Branco e pela Escola Normal Caetano de Campos. Nas adjacências, livrarias sofisticadas como a Pioneira, a Duas Cidades, a Jaraguá, a Partenon, a Francesa. O conjunto formava um complexo de urbanismo metropolitano.
Só depois de 1968 esse harmonioso complexo seria detonado, dispersando seus cacos pelo resto da cidade, quando não os aniquilando. A ditadura não permitiria que os tumultos estudantis daquele ano se repetissem e tratou de transferir as escolas para longe, em velha tática empregada também em outras latitudes. Quando fui dar um curso na Universidade de Paris VIII logo depois, achei esquisito que esta se chamasse “Vincennes à St-Denis”, dado que Vincennes e St.-Denis são dois bairros muito afastados um do outro, Vincennes a leste e St.-Denis na periferia norte. Então me explicaram que, em seguida aos famosos motins e ocupações de maio de 68, as autoridades tinham fechado Vincennes, onde pontificava Michel Foucault, ativíssimo em 68 e contumaz na Maria Antonia, onde tinha dado o curso que se tornaria Les mots et les choses (As palavras e as coisas). Vincennes era um dos três focos da rebelião, juntamente com Sorbonne e Nanterre, e por isso fora transferido para uma nova escola em St.-Denis. E meus colegas franceses acrescentaram: “Estamos aqui de castigo”… Exatamente o que fizeram conosco.
Ninguém tinha pensado que a alma da polis eram os estudantes. Retirados estes, exceto os do Mackenzie, a partir dessa época São Paulo ficou policêntrica – com pequenos centros parciais distribuídos pelos bairros – e sem Centro. O Centro propriamente dito entrou em derrocada, esvaziou-se de seus habitantes e se tornou marginal, destino comum à inner city nas Américas. Após um tempo de abandono, ainda recalcitra ante os esforços para revitalizá-lo, em toda a imponência de sua arquitetura.
A malha urbana da região era constituída por uma alta concentração cultural por metro quadrado. Ali se erguiam, e se erguem, o Teatro Municipal, o Teatro de Cultura Artística e a Biblioteca Municipal Mário de Andrade, de visitação diária, sobretudo para os “adoradores da estátua” (de que Bento fazia parte), que se reuniam ao pé de A Leitura no saguão. Em não mais que uma dúzia de quarteirões ficavam ainda o Clube dos Artistas e Amigos da Arte, afetuosamente chamado de Clubinho, a Biblioteca Infantil, o Teatro Leopoldo Fróis e a Aliança Francesa.
E, afora o Museu de Arte Moderna na Sete de Abril, com seu bar e uma ativíssima Filmoteca, como então se chamava a futura Cinemateca, o Centro oferecia uma constelação de majestosas salas de cinema, nenhuma com capacidade abaixo de mil assentos. Eram elas o Art Palácio, com mais de 3 mil, construído por um reputado arquiteto da época, Rino Lévi; e o Marabá, o Ipiranga, o Normandie, o República, o Metro, entre outros.[ii] Uma sala de arte, o Cine Bijou, com programação sofisticada e requintada, ficava logo ali, na Praça Roosevelt. Uns anos depois, seria a vez do Cine Belas Artes, na Consolação esquina da Avenida Paulista, que tinha a vantagem adicional de ficar defronte ao bar Riviera,[iii] de frequentação obrigatória pela turma da Maria Antonia.
Este bar era dominado por uma figura inesquecível, o garçon Juvenal, que tomava conta de todo mundo (dizia: “Não entra agora que ela está aí com outro…”), recebia correspondência, avisava se havia suspeitos de espionar para a ditadura etc. Acabaria por se tornar protagonista de história em quadrinhos, pela pena do desenhista Angeli, na série da tirinha “Rê Bordosa”, sempre como um inestimável garçon e com seu próprio nome. A protagonista Rê Bordosa foi capa do primeiro número da revista desse cartunista, Chiclete com Banana, que vendeu 100 mil exemplares. Angeli e Laerte também eram fregueses do Riviera, é claro, tal como os irmãos Caruso, todos eles humoristas políticos da linha de frente na resistência à ditadura.[iv]
O cine Marrocos foi sede do festival internacional de cinema do IV Centenário de São Paulo, quando ali pousaram não só a mundanidade de uma delegação do star system hollywoodiano para embasbacar os circunstantes, mas também monumentos da sétima arte como Erich von Stroheim, Abel Gance, Henri Langlois, André Bazin. De Stroheim viu-se uma retrospectiva de filmes mudos. Também do cinema mudo e um de seus maiores diretores era Abel Gance, que trouxe Napoléon, clássico aqui exibido atendendo a todas as suas exigências de vários projetores. Henri Langlois, inventor da cinemateca, foi o criador da Cinemathèque Française e seu diretor: mais tarde, sua demissão sumária pelo governo seria o estopim do Maio de 68 em Paris. Por sua vez, André Bazin até hoje é considerado o maior crítico que o cinema já teve. Esse era o modesto naipe que veio prestigiar o festival.[v]
A circunstância que explica uma tal afluência de gente notável e séria é a presença ativa de Paulo Emílio Salles Gomes como organizador do Festival. Antes, militante que fugira da prisão, fora obrigado a exilar-se e vivera por vários anos em Paris, onde pesquisara o cinema (mudo) de Jean Vigo, o grande cineasta de L`Atalante e Zéro de conduite, publicando um livro sobre ele e ganhando o prêmio de livro europeu de cinema. Ficaria famoso por lá e amigo de todo mundo.[vi] Entre os que na ocasião saudaram por escrito a premiação de seu livro estavam (excusez du peu) François Truffaut, e outros da incipiente Nouvelle Vague, com foco na revista Cahiers du Cinéma.
Paulo Emílio era membro fundador da prestigiosa revista Clima, criada por alunos da Faculdade de Filosofia entre 1941 e 1944. Essa revista foi um dos modelos deliberados de Almanaque.
Criada em 1941, compreendia, afora Paulo Emílio que se encarregaria de cinema, Antonio Candido em literatura, Decio de Almeida Prado em teatro, Gilda de Mello e Souza em estética, Lourival Gomes Machado em artes visuais. Todos eles eram alunos dos professores europeus, a primeira geração de alunos da Faculdade de Filosofia. E no exercício de suas atribuições na revista viriam a definir suas carreiras, em que se destacariam. Clima foi, para nós de Almanaque, modelo e contrapartida, porque, sendo outras nossas circunstâncias, não queríamos laborar no gênero “ensaio sério”, mas sim fazer outra coisa.
Retormando ao Centro de São Paulo: em apenas uma dúzia de quarteirões esse era o perímetro mais trepidante da cidade. No coração do perímetro lá estava o novíssimo Teatro de Arena, tendo ao lado o bar Redondo, sempre cheio. O Teatro de Arena, que afinal ficava a apenas três quarteirões de nossa Faculdade, era uma espécie de anexo da Maria Antonia, pois alunos e professores estavam sempre por lá, enquanto o pessoal do teatro estava sempre na Maria Antonia.
Foi nesse teatro que Os Jograis estrearam e permaneceram em longa temporada com o Recital Fernando Pessoa, tornando-o um programa metropolitano obrigatório: ninguém podia deixar de assisti-lo. Pagu – a famosa Patrícia Galvão do Modernismo – foi um dos fãs que assistiram ao espetáculo e depois escreveram a respeito. Os Jograis foram responsáveis pela precoce popularização de Fernando Pessoa em nosso país, antes mesmo de Portugal. Os estudantes sabiam Fernando Pessoa de cor e se tornou símbolo de status ir à Faculdade com seus livros, identificáveis pela vinheta de Pégaso da Editora Ática, embaixo do braço.
Estudos, cinema e teatro
Há vários livros importantes sobre a Maria Antonia, todos da autoria de ex-alunos. Entre eles os de Maria Cecília Loschiavo dos Santos, da Filosofia e da FAU (Maria Antonia – Uma rua na contramão); os dois de Irene Cardoso, da Sociologia (A universidade da comunhão paulista e Para uma crítica do presente); o de Adélia Bezerra de Menezes, de Letras (Militância cultural – A Mariantonia nos anos 60); o de Benjamin Abdala, também de Letras (O mundo coberto de jovens).
Contamos ainda com mais obras de ex-alunos. Uma é a supracitada peça de teatro de Consuelo de Castro, que estudou Ciências Sociais, Prova de fogo, dramatizando a ocupação da Faculdade pelos alunos. Outra, mais recente, o filme de Renato Tapajós (2014), que fez Ciências Sociais, intitulado A batalha da Maria Antonia. Em 2013, ou exatos 45 anos após a data fatal, e com direção de Cristiane Zuan Esteves, o novo Tusp encena lá mesmo na sede original a peça Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antonia, com base nos depoimentos do Livro branco que se menciona a seguir.
Dois livros de âmbito mais geral interessam igualmente. Rebeldes e contestadores – 1968: Brasil, França e Alemanha, organizado por Marco Aurélio Garcia, endereça-se aos motins estudantis do ano de 1968, colocando o nosso em perspectiva. Levantes, de G. Didi-Huberman, amplia ainda mais sua alçada, interrogando as muitas formas de dissidência ou mesmo de desobediência civil que se expressam nesses movimentos espontâneos, hoje e no passado, ao redor do planeta. No cinema, o documentário do grande Chris Marker, Le fond de l´air est rouge, caminha no mesmo sentido.
O Livro branco sobre os acontecimentos da rua Maria Antonia (2 e 3 de outubro de 1968), exclusivamente sobre a batalha da Maria Antonia, organizado por uma comissão de professores tendo Antonio Candido por relator, recolhe depoimentos cruciais de testemunhas de vista. Um primeiro original, entregue pelo relator ao diretor da Faculdade, desapareceu. Mas o professor, membro eleito da Comissão Paritária que regia a ocupação, tinha guardado cópia de tudo, de modo que foi possível publicá-lo, embora vinte anos depois, pois o livro só saiu em 1988. Ele tinha à mão em sua casa, e ali ficou por muito tempo e à vista de todos, uma prova que recolhera e que implicava o aparelho policial-militar: uma bomba de gás lacrimogênio que fora atirada em nossa Faculdade. Assim se desmentia a versão oficial de que se tratava de uma mera briga de estudantes, com participação do CCC.
Outra publicação, iniciativa da Associação dos Docentes da USP (Adusp) em 1978, O livro negro da USP – O controle ideológico na Universidade, focaliza a repressão na Universidade toda, investigando a infiltração e controle efetuados pelos órgãos de segurança instalados “clandestinamente” na reitoria, durante os anos de ditadura.
Mais recente, o Relatório da Comissão da Verdade da USP, em 10 volumes, foi publicado em 2018. Verdadeiro monumento, amplo e exaustivo, cobre todo o período da ditadura e tudo o que se passou em toda a Universidade; mas o volume VII é dedicado exclusivamente aos eventos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a Maria Antonia.
Dinâmica de Almanaque – flagrantes
Há que ter em mente que nós éramos revisteiros e enturmados. Um dia, ou aqui ou em Paris aonde eu ia visitar periodicamente os exilados, Bento e eu dissemos ao mesmo tempo: “O que é que você acha de fazer uma revista?”. Fomos conferir nossas forças e idealizar essa revista, que nós dois realizaríamos conjuntamente como co-diretores, juntando dois plantéis: o Bento o de Filosofia, eu o de Letras e Artes. E assim foi feito.
Selecionou-se uma Mesa de Redação, que não variou até o fim da revista sete anos depois, formada por voluntários dedicadíssimos. Houve algumas rápidas entradas e saídas de um grande número de colaboradores, mas essa Mesa ficou firme até o último número. Compunham-na, em ordem alfabética, Haquira Osakabe, Lígia Chiappini de Morais Leite, Michel Lahud, Rubens Rodrigues Torres Filho e Vera M. Chalmers.
Levamos alguns meses para definir o feitio da revista. Tanto do lado das Letras quanto da Filosofia, enturmados como eu disse, já vínhamos de outras experiências coletivas, inclusive seminários permanentes reunidos em torno de um livro ou de um tema. Era uma época em que havia sempre muitos seminários, nem dava para frequentar todos. Um dia uma colega, a Mary, entrou, sentou-se, olhou para os lados e perguntou: “Vocês poderiam me dizer em qual reunião que eu estou?” Isso era comum…
Afora os dois plantéis – um de Filosofia, outro de Letras -, começamos a reunir as pessoas e aos poucos fomos definindo alguns critérios. Abaixo seguem os pontos principais dessa definição.
– Faríamos a revista para nos divertir e não para sofrer. Sob a ditadura, já sofríamos o suficiente.
– Tínhamos toda a intenção de continuar sobrevivendo. Por isso, o título anódino que escolhemos (Almanaque – Cadernos de literatura e ensaio) – para não chamar a atenção nem da censura nem da repressão, correndo o risco de ficarmos restritos apenas a dois números como ocorrera com a revista Aparte, obra de gente da Maria Antonia e da FAU fechada pela polícia, lição que ainda nos ardia e que procuramos incorporar. E, de fato, escapamos incólumes.
– Estávamos preparados para que isso não acontecesse. Combinamos logo que, havendo censura ou prisão, duas outras pessoas da Mesa de Redação (mas sempre uma mulher e um homem) assumiriam a direção da revista, sem problema. Também fazíamos questão de que houvesse número igual de mulheres e homens.
– Se a revista fosse fechada, já estava combinado de antemão que abriríamos outra, com outro título, e o mais disfarçadamente possível: mas não desistiríamos. Gostávamos de lembrar que o que era importante nas revistas modernistas não era cada uma, quantos números tinha tirado etc. Havia revistas que só haviam tirado um número, outras dois. Mas o que importava era o conjunto de todas as revistas modernistas, das quais só Klaxon chegara mais longe, com 9 números. Uma delas, a importantíssima Revista de Antropofagia, só tirara duas “dentições”, como Oswald de Andrade dizia, embora cada uma com vários “dentes” – na realidade nem bem revista era, mas um encarte em jornal. Dois números foi o caso de Estética, de Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais Neto.
– O espectro da revista seria o mais amplo possível. Ensaios, trechos de romances, capítulos de teses, projetos de pesquisa, contos, poemas, brincadeiras e exercícios, cartas, entrevistas, paródias e pastiches etc. Até horóscopo teve – só uma vez, e por deboche, claro. Era uma perspectiva um pouco anárquica, convenhamos, e podia afugentar os menos afoitos. Uma vez apareceu um convidado que estava interessado em fazer parte da comissão editorial da revista. Ficou assustado com o teor aparentemente caótico da reunião, e começou a exigir “estatuto” e “organograma”. Não foi vaiado, mas quase: o fato é que nunca mais apareceu. Chegou a ser discutida, mas acabamos não realizando, uma charge em que ele aparecia com a legenda “Bode Organizatório” – pois bode foi o que ele nos deu com suas exigências burocráticas. A charge seria um bode de pé nas patas traseiras, com as dianteiras cheias de pilhas de papeis, planilhas, pranchetas e pastas com legendas de contabilidade, meio que perdendo o controle delas, que transbordavam de seus braços e se espalhavam pelo chão.
– Tínhamos como modelo as revistas surrealistas (sobretudo as francesas), as revistas modernistas e a própria revista Clima, da nossa Faculdade nos anos 40 e constituída por aqueles que agora eram nossos professores. Clima, que era uma revista dedicada ao “gênero ensaio universitário”, gênero que aliás elevou a um patamar inédito entre nós, era tão sisuda que Oswald de Andrade apelidou seus membros de chato-boys. Apesar de todo nosso respeito e reconhecimento a ela, não queríamos imitá-la nisso, pois éramos sérios mas não graves, ao contrário, brincalhões e piadistas: Bento era mestre nisso. Não pretendíamos ser chato-boys.
– Quando comentei com Antonio Candido que um de nossos modelos era Clima, ele mais que depressa deu uma resposta modestíssima, bem de seu feitio e na clave mineira, dizendo que Almanaque era muito melhor porque todos éramos doutores, enquanto Clima era só de alunos. Mas que alunos! Aqueles que escolheram suas especialidades e definiram o ensaísmo mediante a própria revista, e que seriam indisputáveis em seus respectivos campos.
– Das revistas surrealistas e das modernistas queríamos guardar o lúdico e o experimental.
– Como vocês já devem ter percebido: de um ponto de vista formal praticávamos uma estética do inacabado, do imperfeito e do provisório, do fragmento e da intertextualidade.
– Outro ponto não-negociável: as reuniões de pauta seriam feitas num bar, só excepcionalmente em nossas casas. Que bares? Sobretudo o ChicChá, na Av. Angélica, e o Bora-Bora, na Faria Lima; às vezes o Paribar na Praça D. José Gaspar, atrás da Biblioteca Mário de Andrade; e o Riviera, defronte ao Cine Belas Artes, de que já falei. Bem mais tarde, já em plena Abertura, também o Pirandello no Centro, em Pinheiros o 22 e o Quincas Borba, que logo se tornariam os mais populares. Com a perda da Maria Antonia, tínhamos perdido também os bares ao redor dela. Nosso orientador em matéria de bares era o Bento, que conhecia as virtudes de todos – não fosse ele autor do artigo “A Biblioteca e os bares na década de 50” [vii].
Uma palavra sobre o ChicChá, onde nos reuníamos habitualmente. Quem descobriu o bar foi Bento, pois era perto de sua casa. Ficou amigo de algumas pessoas que ali faziam ponto, como o César e o Otto Hopf, da FAU, entre outros. Eles, cativados pelo Bento, a quem respeitavam e chamavam de “Professor”, renderam-se aos encantos daquele gentleman de maneiras impecáveis: a liderança natural e despretensiosa, a cortesia que empenhava em ouvir o outro, a lhaneza de trato que estendia a qualquer um, a seriedade ao esmiuçar um raciocínio e a graça ao radiografar uma tolice. Até sua gravata borboleta era irretocável.
Por isso, por causa do Bento, acabaram frequentando a Maria Antonia e participando das passeatas. Nestas, eram insubstituíveis, porque praticavam karatê e iam na frente, como seguranças. A turma do ChicChá era conhecida por ser “barra pesada”, como se dizia à época. Por causa dessa coincidência até fortuita, alguns se complicaram politicamente, e Otto exilou-se na Suécia por muitos anos, só regressando com a Abertura em 1978. Quando voltou, não contava muitas coisas, mas entoava canções em sueco, com sua bela voz de barítono.
Otto era grandão e nada bonito. Mas, dentro dos novos padrões masculinos que a Nouvelle Vague francesa propunha no cinema, estava perdendo vigência o modelo de estátua grega. Descobriu-se então que Otto era sósia de Jean-Paul Belmondo, astro em ascensão, que justamente não era nenhuma beldade mas encarnava o charme menos perfeito, mais rústico, de um certo tipo de homem, que trazia uma centelha de perigo na pupila. E nunca mais ninguém achou que Otto era feio.
– Decidimos na revista que também haveria muita crítica ao número anterior, seja abertamente, seja sob a forma de pastiches e brincadeiras. A ideia é que não fosse uma revista institucional – novamente para driblar não só a censura como qualquer controle. Por isso, falei com Caio Graco, da Editora Brasiliense, bom militante de esquerda, grande amigo e editor de vários livros meus. Disse que estava montando uma revista com essas características e ele imediatamente se ofereceu para editá-la. Era uma boa solução, porque com isso não ganharíamos nenhum tostão, mas em compensação toda a despesa (bem como todo o possível lucro) seria do editor. Também ficaríamos livres do trabalho de editar, que não é pouco. Com uma editora na mão, não faltava mais nada.
– Pedimos a Cláudio Tozzi, da FAU, um dos mais notáveis artistas visuais que então surgira, que nos cedesse uma de suas maravilhosas gravuras para a capa – aquela evidentemente alusiva aos tempos, em que se vê um enorme parafuso atravessando um cérebro. O que ele prontamente topou. E essa foi a capa dos primeiros números. Infelizmente, o editor resolveu a certa altura que deveria variar a ilustração de capa a cada número, e minha capa predileta, aquela do Cláudio Tozzi, não mais apareceu. Mas era tão significativa que ficou por muitos anos pendurada na sala da casa do editor.
– Cláudio Tozzi ainda indicou Júlio Abe Wakawara, também da FAU, para fazer a diagramação. E ninguém nunca cobrou nada.
– O entusiasmo de Bento pela revista era tal que fazia questão de um lançamento festivo para cada número – num bar, é claro. Providenciava tudo e, animando-se cada vez mais, distribuía os exemplares, se necessário recolhia ele mesmo o pagamento, fazia o troco, dava autógrafos, com o maior desprendimento.
– A certa altura, inventou e espalhou que o ChicChá ia incluir no cardápio um tiragosto chamado “Miolos a Almanaque”. A iguaria, dizia ele, constava de nacos de miolos fritos que, em vez de virem espetados em palitos como de hábito, seriam servidos… com parafusos.
– Outro exemplo do estilo do Bento, que se saiu com esta ao dar seu parecer sobre um artigo de linguística relativo a “enunciados existenciais”, que aliás aprovamos e publicamos. Alguém disse que ainda não tinha entendido o que era um enunciado existencial, ao que o relator, em vez de explicar outra vez, preferiu exemplificar, dizendo: “Que fossa!”
– Foram ao todo 14 números, entre 1975 e 1982, com periodicidade entre trimestral e quadrimestral; mas no último ano a revista já estava reduzida a semestral. E tenho a impressão até hoje de que a revista morreu “de Abertura”. Com a Abertura, revistas e similares começaram a pulular, e a nossa perdeu relevância: não era mais o único escoadouro para desafogar essa produção de esquerda.
– Mas é bom lembrar que o primeiro número já estava pronto quando Vlado Herzog, nosso colega e amigo, também da Maria Antonia onde estudou Filosofia, foi assassinado sob tortura no infame Doi-Codi. Mal tivemos tempo, em meio ao horror que se apossou de nós e que quase nos fez desistir de tudo, de inserir um pequeno poema de minha autoria, mas anônimo, dedicado a ele – bem hermético e sem título que o denunciasse: Idos de outubro. Mas era estranho um poema datado, e com a data tão em evidência, de modo que todo mundo, menos o censor, sabia do que falava aquele poema. Para que não fique a impressão errônea de que tudo era uma festa, registro esse fato.
– A revista foi logo um sucesso – e o maior problema de uma revista, que é a falta de matérias para publicar, nunca ocorreu. Éramos procurados de todos os quadrantes e inclusive do exterior, por pessoas que nos mandavam suas produções. A revista tinha um ar paroquial (Maria Antonia mais FAU) e de nós-com-nós? Tinha sim. Mas nossa exigência principal era a qualidade e para isso éramos atentíssimos. Trabalhávamos muito, com esse objetivo em mente, lendo, discutindo e selecionando originais. Também encomendávamos textos sobre assuntos a nosso ver escassamente abordados.
– Entre as muitas coisas que publicamos, afora o que nos mandavam de fora os exilados, estava o primeiro capítulo de um romance sobre a tortura, Quatro olhos. Tortura que havia sofrido seu autor, Renato Pompeu, e romance que ninguém queria publicar. Foi historicamente o primeiro a aparecer, mas depois com a Abertura se tornariam numerosos – aliás, até hoje, tantas décadas depois, ainda saem. Nem que fosse só por isso, a revista já teria valido a pena. Depois de vir à luz, encontrou editor com facilidade. O autor era da Maria Antonia, aluno do curso de Ciências Sociais. E a censura não se deu conta do que tinha saído na revista.
– Mas só para mostrar que a ditadura não era brincadeira: Renato Tapajós, nosso querido cineasta, seria no futuro o grande documentarista do movimento operário no ABC e recentemente fez um filme chamado A batalha da Maria Antonia (2014). Ex-aluno de Ciências Sociais, ele já tinha cumprido cinco anos de cadeia por sua participação na luta armada, mas foi preso novamente quando saiu seu livro de testemunho Em câmara lenta (1977), desta vez por “incitação à subversão”.
Nosso poema
Para terminar, deixo com vocês um último episódio a respeito do Bento. Como vocês devem saber, Bento, que tinha alma de poeta e também era poeta nas horas vagas, guardava um poeta no coração e esse era Carlos Drummond de Andrade, que ele praticamente sabia de cor inteiro. Numa das reuniões de Almanaque, decidimos celebrar os dez anos de 1968 republicando um poema de Drummond alusivo a nós, os de maio de 68. Esse poema, “Relatório de maio”, fora publicado no jornal Correio da Manhã no dia 26 desse mês, portanto no auge do movimento estudantil tomando as ruas e ocupando as escolas no mundo todo. É um poema belíssimo, nem é preciso dizer.
Quando saiu em jornal fora devidamente apreciado por nós, que venerávamos o poeta e estávamos precisando de apoio face à ditadura naquele momento. Entretanto, tinham-se passado dez anos, o poema não fora recolhido em livro pelo próprio autor e já o dávamos por perdido. Considerávamos que esse era “nosso poema” – porque mostrava uma compreensão única do que se passava conosco – e queríamos resgatá-lo.
Escrito e estampado em jornal no próprio mês de maio de 68, “Relatório de maio” não é portanto uma reminiscência (segundo a célebre fórmula de Wordsworth: “emotion recollected in tranquility”) mas um surto de inspiração poética em cima da hora, portando a energia e a vivacidade de um testemunho de primeira mão.
Escrevemos uma cartinha ao Drummond, pedindo licença para republicá-lo. Ele respondeu imediatamente, autorizando. É claro que disputamos a posse da carta entre nós, mas quem ganhou foi Bento, para quem era de fato um tesouro, e que a carregou na carteira por muitos anos.
O poema, em seus 67 versos, fala dos acontecimentos daquele maio, quando nosso país e o mundo foram tomados de surpresa pelo súbito levante estudantil. Uma boa síntese das contradições envolvidas (mas há outras) é lançada com ironia logo no início, falando de “violão e violência”. Depois, ”voaram paralelepípedos/ exigindo a universidade crítica”.
Privilegiando pontos altos na percepção daquele momento, o poema fala de Lire le Capital e de MacLuhan, mostrando como o poeta andava bem informado. Não falta a repressão presente (“o delegado saiu prendendo/ cortando cabelo”) (“vinha um homem / fardado por fora ou por dentro”), o temor do caos, a energia elétrica desligada escurecendo tudo “como prefixo de morte”.
E no entanto o poema termina por uma bela metáfora da esperança:
“e mesmo assim na treva uma ave tonta
riscava o céu naquele maio.”
Gosto de imaginar que fizemos o poeta pensar duas vezes a respeito do poema, porque ele o incluiu posteriormente no livro Amar se aprende amando (1985), organizado por Ivan Junqueira quase vinte anos depois, quando já tinha lançado cerca de uma dezena de livros de poesia após a publicação em jornal em 1968, sem inclui-lo. E assim, por termos reivindicado sua publicação no número 6 de Almanaque (1978), quem sabe o poema foi salvo do esquecimento.
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac/Ouro sobre azul).
Notas
[i] Antonio Candido escreveu várias vezes sobre a Maria Antonia. Ver, entre outros, “O mundo coberto de moços”, Recortes. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2004, 3ª. ed. Ele lembra que nossa Faculdade cobria um largo espectro do saber, indo, em suas palavras, “da Matemática à Educação”. Ali ficavam as secretarias da Geologia, com aulas na Alameda Glete, bem como as da Pedagogia, da Física, e outras mais.
[ii] Inimá Simões, Salas de cinema em São Paulo. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria Estadual de Cultura, 1999.
[iii] Fundado em 1949, subsistiu até 2006; permaneceria fechado até 2015, quando foi reaberto por velhos fãs e fregueses.
[iv] No Rio de Janeiro imperava a turma de O Pasquim.
[v] Festival Internacional de Cinema de 1954. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2004.
[vi] O premiado Jean Vigo afinal era apenas uma parte da pesquisa, que levaria perto de meio século para ser publicada na íntegra. Ver Vigo, vulgo Almereyda. São Paulo: Companhia das Letras/Edusp, 1991, sobre a trajetória política do militante anarquista pai do cineasta.
[vii] Bento Prado Jr., “A Biblioteca e os bares de São Paulo na década de 50”, Revista da Biblioteca Mário de Andrade, no. 50, 1992. Francesc Petit, São Paulo de bar em bar. São Paulo: Siciliano, 1994. Lúcia Helena Gama, Nos bares da vida: produção cultural e sociabilidade em São Paulo. São Paulo: Senac, 1998. Nirlando Beirão e Rômulo Fialdini, Original – Histórias de um bar comum. São Paulo: DBA, 2007.