Por ALEXANDRE FAVARO LUCCHESI*
Não são soluções mirabolantes nem oportunistas que restabelecerão a convivência democrática no Brasil
Segundo Durkheim, anomia social é a ausência de solidariedade, e o desrespeito às regras comuns, às tradições e às práticas. Não é possível compreender o momento atual do Brasil sem se retomar alguns elementos do recente processo de crise institucional pelo qual passa a nação. Praticamente uma democracia sob ataque, no Brasil sempre foi conveniente “deixar como está” uma situação claramente adversa, porém sem solução. E isso está acontecendo no momento em que avança a letalidade de uma doença pandêmica num país que já foi modelo de saúde pública e que possui um sistema universal de atendimento.
Acontece que seu governante atual propõe a destruição desse sistema, pior do que isso, propõe uma ruptura institucional. Mas como? Não se pode esquecer que ele foi eleito numa conjuntura muito incomum e atende a propósitos do que tem sido chamado, segundo visões de autores como Achille Mbembe, entre outros, de necropolítica. Descartáveis são aqueles que não têm função no que se chama “mercado”, mas parece mais ser uma arena.
A ruptura democrática
Desde 2013 o Brasil vive uma crise institucional. As jornadas de junho daquele ano representaram a emersão de demandas do povo que estavam há muito contidas, inicialmente representadas nos movimentos de esquerda contra aumentos no preço da passagem de ônibus, portanto uma forma de se opor a oligopólios nocivos ao bem público. Mas a bandeira daqueles protestos passou a ser difusa, “contra a corrupção”, “por mais saúde e educação” e as lideranças dessas bandeiras “não poderiam ser” partidos políticos, uma postura assumidamente de direita. O cientista político Norberto Bobbio nos mostrou isso. Sinal de uma crise institucional, porque as instituições políticas não podem representar o povo, elas sofrem interferência. O próprio STF, ao finalizar o julgamento do chamado Mensalão, expôs uma fratura no aparato de jurídico, por admitir que, mesmo sem provas concretas, podia condenar os culpados. Pois bem, foi aceito o tribunal como palavra de última instância, afinal assim reza a Constituição.
Era um partido político no poder há dez anos, o PT compreendeu como funcionava o “presidencialismo de coalizão” de Sérgio Abranches e encontrou formas de se reeleger. Desfrutou de um período áureo de crescimento econômico, ainda que comedido. Paradoxalmente, a insatisfação popular veio numa parada da Copa das Confederações, sem clubes de futebol aparecendo na televisão, e despertou, via redes sociais, uma insatisfação generalizada. Demandas legítimas abriram espaço para manifestações de ódio, sim, essa palavra que explica muito bem o Brasil de hoje. A crise institucional ocorre quando o ódio fala mais alto que a união, que o respeito, enfim, quando ressentimentos (sim, no plural, porque são vários, como diz o jornalista Bob Fernandes) se sobrepõem ao entendimento. No poder, o PT de Dilma Roussef e Lula se defendeu acusando “eles”, elitistas, plutocratas, preconceituosos, de atacarem injustamente um governo eleito democraticamente. Estratégia conhecida como “nós contra eles” na eleição de 2014, quando o partido hegemônico da esquerda corretamente apontou o equívoco da velha direita, representada num decadente PSDB de Aécio Neves, em propor com muita vergonha o ajuste econômico contracionista e baseado na “meritocracia” no momento em que o povo pedia continuidade de políticas distributivas.
Porém, a maré cheia da economia havia ido embora e em 2015 essa continuidade deu lugar a um estelionato eleitoral, pois o PT colocou na Fazenda a visão de mundo oposta à qual foi eleito para implementar, na figura do ex-funcionário do Bradesco Joaquim Levy. E, no campo institucional, os ataques avançaram com a eleição para presidente da Câmara de um inescrupuloso Eduardo Cunha (MDB-RJ), disposto a interromper o ciclo de governo eleito contando com a ajuda dos derrotados das urnas, leia-se o PSDB de Aécio, José Serra e outros. Devido à inabilidade do núcleo de governo em dar sequência ao presidencialismo de coalizão, esses agressores decidiram romper com o pacto democrático. Em 2016, foi colocado em prática o plano de retirar à força o PT do governo, o que teve participação do STF ao impedir a posse de Lula como ministro da Casa Civil, com base num áudio ilicitamente vazado pelo então juiz federal e neófito político Sérgio Moro, exaltado a cada dia como o salvador de uma pátria sedenta por justiça a ser trazida apenas por ele e pelos procuradores do MPF de Curitiba.
Impulsionados por manifestantes verde-amarelos sem maiores interesses a não ser criminalizar o partido político hegemônico nas urnas, deputados federais e senadores da República golpearam a institucionalidade democrática ao admitir que “pedaladas”, manobras fiscais irregulares, praticadas há muito tempo e intensificadas durante a gestão petista, representavam a “gota d’água” para um governo “corrupto”. Golpe esse que abriu as portas para a entrada de derrotados no poder, mas, muito mais profundo e obscuro do que isso, permitiu que a Operação Lava Jato, da Polícia Federal, atentasse contra direitos previstos na Constituição. Permitiu também que pronunciamentos nada republicanos, como a exaltação de torturadores, fosse proferida na Casa que ouve o povo sem reação, e abriu espaço para que declarações quotidianas de racismo, machismo e homofobia tomassem força durante o governo interino do vice Michel Temer (MDB-SP). Trata-se de ninguém mais que Bolsonaro, aquele deputado do baixo clero há anos sem nenhum projeto de lei proposto, responsável por “normalizar” o preconceito, os ressentimentos e o ódio no nosso dia-a-dia.
Portanto, uma crise institucional que teve crescente participação da mídia tradicional sem maiores incômodos, tolerando o intolerante, ao contrário do que enunciou Karl Popper em seu famoso paradoxo. Os verde-amarelos, ressentidos em escala nacional, gostaram de ver reformas “anti-povo” serem aprovadas, como a trabalhista, e a supostamente “anti-corrupção” lei do teto do gasto, empurrando goela abaixo da esquerda uma pauta conservadora e retrógrada de país. Esqueceram-se da brutal desigualdade que nos assola de Norte a Sul, concentração de renda, discriminação racial e de gênero, perpetuando uma violência histórica contra raças como os negros e os índios, ignorando a precariedade das condições de trabalho rural e urbano e o meio ambiente. Solução proposta pela “novíssima” direita dos MBL da vida e do Partido Novo: “empreenda, nem que seja entregando Ifood ou dirigindo Uber”. Assim, processo de impeachment de Dilma Rousseff, deflagrado em 2016 mas com início nas manifestações de junho de 2013 é uma fratura na democracia brasileira. Na narrativa dos partidos de esquerda, e na Esquerda como um todo não homogêneo, convencionou-se tratar estritamente de golpe. De “Estado” para alguns, “parlamentar” para outros, mas o fato é que o enquadramento de uma manobra contábil, sabidamente a abertura de créditos suplementares em 2015, como ilegal, foi uma decisão política.
O capítulo seguinte da crise institucional ocorre quando o ex-presidente Lula é preso por cometer um crime de lavagem de dinheiro sem prova concreta, a compra do apartamento triplex no Guarujá, afinal representava evidente possibilidade de voltar ao poder em 2018 o PT criminalizado pela Lava Jato. Conduzido com velocidade totalmente excepcional, o caso de um dos mais populares ex-presidentes da História simbolizou contundente e severa punição das autoridades à corrupção sistêmica, “revoltante a qualquer cidadão de bem”, que, contudo, se esquecia de olhar para a tragédia cotidiana de milhões de brasileiros marginalizados nas comunidades. Pois bem, Lula pagou com sua liberdade pelos crimes de toda a classe política. Tudo para dar vez a “novos” políticos, ninguém mais do que o mesmo Bolsonaro, vítima de um polêmico e mal explicado atendado a faca às vésperas do feriado da Independência. Atendado esse que facultou ao então candidato declinar de todos os convites ao debate eleitoral, e a se aproveitar de uma máquina aterradora de “fake news”, método responsável por levar a intolerância e o ódio até a mais longínqua comunidade pobre, sempre esquecida pelas políticas públicas, mas prontas a dar subsídios e programas a grandes empresas. E com ajuda de igrejas evangélicas. A intolerância e os ressentimentos elegeram arautos “anti-sistema” Brasil afora, deputados, senadores, governadores e um presidente igualmente torpes.
Começou em 2019 um desgoverno proposto para oito anos, cujo método é o caos e que precisa dele para se perpetuar, como diz o filósofo Marcos Severino Nobre (Cebrap). A crise institucional atinge o ponto crítico quando o governante do país, valendo-se da “insatisfação popular” com essas mesmas instituições, passa a ameaçá-las cotidianamente, como se ainda fosse candidato, e não parte do sistema que tanto condena. Cotidiano também é o ritmo das revelações de corrupção cometida justamente pela família mais perigosa do Brasil, os Bolsonaro do Rio de Janeiro, ligados ao mesmo tempo aos porões das Forças Armadas e às mais obscuras, intolerantes e violentas milícias pró-armamento. Crise institucional que traz ao “debate” negacionistas, pessoas que julgam ser “obra de comunistas” qualquer avanço ou progresso social explicado pela ciência e pela interação social. Que negam ser redondo nosso planeta Terra (algo provado por Galileu e Copérnico no século XVI!) e que ele esteja claramente sendo vítima de um processo de aquecimento causado por emissão de gases estufa, além de ter seu equilíbrio ecológico afetado. Não só negam como incentivam que aumente a depredação ambiental de uma das maiores reservas deste planeta, a Amazônia.
Como dizer que “funcionam as instituições” num país que promove uma reforma previdenciária que vai na contramão do mundo? Sabidamente a idade mínima é um dispositivo necessário, mas dificultar o acesso ao benefício, efeito prático da proposta de capitalização da seguridade, certamente não é. Como dizer que “funcionam as instituições” num país que descobre estar o juiz Moro da Operação Lava Jato intimamente em contato com o procurador Deltan Dallagnol em pleno andamento do processo, revelação do jornalista Glenn Greenwald e sua equipe do Intercept, de maneira não apenas a combinar que o ex-presidente Lula seria o único atingido eleitoralmente, mas também a garantir a sua própria participação em um governo inspirado abertamente no fascismo e na tortura? Que instituições são essas como a mídia, que se abstém de apontar o dedo para o caráter contra democrático de uma eleição sem debate no Segundo Turno e claramente financiada por rede empresarial de disparos em massa de mensagens falsas no WhatsApp?
O caos da pandemia
Eis que a crise institucional recebe a visita de dentro da já latente crise humanitária brasileira, tristemente precipitada pela pandemia em março de 2020. Pega de surpresa governantes, empresários, trabalhadores, ricos, médios e pobres, brancos, mestiços, índios e negros, estes últimos finalmente lembrados por aqueles primeiros. Crise humanitária porque obriga a humanidade a se reinventar, mas antes de mais nada, a sobreviver renovada. O capitalismo industrial, que dera vazão à sua fase financeira no século XX, já sinalizava exaustão em 1929 e 2008. Os ressentimentos de classe já não são mais facilmente escondidos pela bonança econômica. O preconceito racial já não pode mais e já esgotou qualquer possibilidade de ser ignorado. A esquerda política não pode mais ser achincalhada como corrupta ou totalitária porque a velha direta não quis mais ficar no armário e se mostrou, vejam só, corrupta e totalitária como há tempos não admitia. Superar o luto da perda de milhares de compatriotas tornou-se desafio para tantos em meio ao negacionismo advogado pelos governantes golpistas, obscurantistas e perseguidores. Cuidar da saúde pública, o esperado de um governo neste momento, dá lugar a um sem número de pretextos e manobras diversionistas.
E chega-se ao incompreensível impasse entre cuidar da saúde do povo e “reativar a economia”, falso problema apontado já nos idos da pandemia de 1918, como lembrado pelo microbiólogo Atila Iamarino. A economia serve à humanidade, não o contrário. É isto que a institucionalidade deve ter em mente, qualquer ação no sentido contrário dessa lógica é anacrônica e perversa. Ninguém merece morrer para “salvar a economia”, simplesmente porque ninguém, absolutamente ninguém é descartável. Como podem as instituições admitir no poder alguém a favor de relevar perdas humanas porque são idosos, obesos, doentes, em suma, “não-atletas”, ou ainda porque são pobres e negros, gente “inferior”? Uma visão tão imoral, eugenista, nazifascista e genocida em pleno século XXI? E não apenas no Brasil, mas sabidamente em várias partes do mundo, como nos próprios EUA. Não à toa, e na verdade já não tardava, insurreições antifascistas tomam corpo em plena quarentena nos meses de maio e junho de 2020, não porque desprezam os riscos de contágio, mas sim porque absolutamente não suportam mais ver “manifestações” golpistas em silêncio.
Em 2021, tornou-se latente aquilo que parece ser o fracasso de nossa sociedade. Mortalidade simplesmente explodindo em meio ao descontrole do contágio e uma crise social sem precedentes que nos obriga a refletir quem somos como nação, a partir de nossa ideia de construção de um país para todo(a)(e)s. É impossível entender nosso desastre sem mencionar que não há sinais de que somos solidários no sentido da coesão social. Os brasileiros, infelizmente, não são um povo unido. Ao longo da História se verificam os fatos que apontam para uma violência brutal em paralelo ao sustento da união política, paralelo esse que explica a contradição de um povo desunido mas que vive junto.
Elementos importantes para digressões futuras mas que assinalam a característica fundamental do povo que elegeu um governante sem empatia por seus compatriotas e cujos planos são, descaradamente, de perpetuar-se no poder às custas da estabilidade social. Seguindo uma visão de mundo totalmente reacionária, ou seja, buscando a destruição institucional conquistada pela Constituinte de 1988 e, mais além ainda, implementando uma lógica capitalista predatória com o rótulo de “liberalismo” que, na verdade, significa mais algo como vale-tudo. Sabidamente resultado de uma eleição ancorada no ódio, o presidente ascendeu para impedir que o partido de esquerda majoritário por 13 anos retornasse ao comando federal. Muito embora isso explique muito do que aconteceu, pode nos deixar desatentos aos efeitos perversos de uma população que vive, em sua maioria, em condições insatisfatórias, não confiar na escolha eleitoral e desdenhar do processo. No mundo em que vivemos, é bombardeada com informações falsas e distorcidas, reflexo do descaso das autoridades mesmo em garantir condições de dignidade.
Assim chegamos ao pico de uma pandemia em abril cujo dado mais alarmante é o colapso do sistema de saúde em atender os doentes ainda na fila de espera. Para agir, com medidas de contenção imediata do problema, governos estaduais e municipais decretaram novo fechamento de comércio e até mesmo feriados antecipados, sendo que em 2020 foram abertos hospitais de campanha e outras ações mais paliativas que preventivas. Não admira que a falta de cuidado para consigo próprio, triste característica do comportamento do brasileiro, tenha reflexo nos próprios governantes e na descoordenação total. Autoridades procuram apagar incêndios, não os evitar, porque afinal é uma sociedade desestruturada e que convive com o perigo e o absurdo.
Em países avançados, a pandemia provocou ações públicas coordenadas e rígidas. O famigerado “lockdown”, o confinamento obrigatório de cidadãos, é a medida mais eficiente possível para interromper o contágio de um vírus respiratório, uma vez que, simplesmente, as pessoas estão proibidas de sair de seus domicílios para não entrarem em contato. Polícia cumpre a função de fiscalizar, no período de vigência, aonde o cidadão está, por quê está saindo e quanto tempo demora. Especialistas em epidemiologia, virologia e saúde pública estão reivindicando tal medida mundo afora. Pois bem, se nos países avançados do chamado Ocidente, isto é, europeus e americanos a população acata a rigidez dessa medida restritiva não farmacológica, assim como a obrigatoriedade do uso de máscaras em ambiente compartilhado de contato, a história não é a mesma nos países emergentes. México, Brasil entre outros, para se tratar dos mais populosos, enfrentam o problema de administração pública que é lidar com a recusa de cidadãos, cujo nexo com o movimento negacionista pode ser tanto de causalidade como de consequência. Fato é que a tarefa é óbvia para os cientistas, afinal o remédio é amargo mas funciona, mas não é para administradores públicos, ou seja, prefeitos, governadores, ou mesmo gestores de diversos negócios e estabelecimentos. Isso porque lidar com cidadãos resistentes às restrições, revoltados com o mal maior e incrédulos quanto à sua própria exposição ao risco de morte depende da coordenação, seja para informa, seja para solidarizar. Na abordagem de epidemiologistas como Miguel Nicolelis, o “lockdown” é “para ontem” se pretendemos diminuir a curva de óbitos e de contágio, a que se some mais medidas como rastreio de contatos e de vacinação em massa. Perfeito, concordamos. Mas para se colocar isso em prática, a dificuldade é enorme. Um estudo por iniciativa do Cepedisa (Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo), em parceria com a Conectas Direitos Humanos propõe que a presidência da República está lidando indevidamente com a pandemia, pelo argumento de que disseminou, deliberadamente, o vírus na sociedade por desprezar as medidas não farmacológicas, ironizar a eficácia das vacinas num primeiro momento e, num segundo, retardar a aquisição junto a laboratórios internacionais no ano de 2020. A tese por trás desse comportamento do governo federal era a da imunização “por contágio”, quer dizer, tornar as pessoas “naturalmente” resistentes criando anticorpos ao coronavírus por meio da exposição direta, em desafio à tese cientificamente aceita da imunização “por rebanho” das vacinas para 70% (em média) da população.
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É dessa forma que se constituiu uma pressão organizada pelas elites empresariais visando tirar o governo federal do estado de anomia, materializando uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado Federal, a CPI da Covid. Certamente o resultado mais claro de reação institucional ao ataque negacionista e reacionário liderado por Bolsonaro, cuja aceitação incondicional na sociedade brasileira decai para algo em torno de 15% do eleitorado de acordo com sondagens de organismos sérios de pesquisa como o Datafolha. A isto se relaciona a movimentação das esquerdas nos protestos de rua, reivindicando postura responsável do Estado brasileiro frente à necessidade de trabalho da população e com vistas a acelerar a vacinação, que sempre foi salutar no país graças ao Sistema Único de Saúde, o SUS. Tem-se, portanto, um claro anseio popular por mudança que resvala em Bolsonaro por meio de pedidos de impeachment endereçados ao presidente da Câmara do Deputados, Arthur Lira (PP-AL).
Politicamente, são inúmeros fatores que dificultam a deposição desse governo no Brasil. Mas em termos concretos se sobressai o fato inconveniente de que aquele que assumir uma administração fadada ao combate da pandemia terá de consertar estragos e, na melhor das hipóteses, reduzir danos. Soma-se a isso o receio, justificado, de muitas lideranças em conduzir hordas e legiões contra o que pode ser um confronto macabro entre militares, milícias armadas, crime organizado e a população civil despreparada. Assim se configura a crise institucional no Brasil em julho de 2021, oito anos após o grande levante autônomo que despertou boa parte da juventude e a levou então às ruas.
À esquerda, Lula tem sua reputação restabelecida pelo Judiciário, que tornou nulo o processo do triplex e considerou Sérgio Moro suspeito. Ao ser informado da decisão, fez um discurso de estadista, como bem apontou o jornalista Luís Nassif, colocando-se como solução moderada à insensatez de Bolsonaro e de seus comandados, reaproximando-se até mesmo do opositor Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP). Ciro Gomes (PDT-CE), até outro momento hesitante entre apoiar Lula ou colocar-se como alternativa, intensifica a estratégia adotada na eleição de 2018, apostando na aversão de parte do eleitorado às candidaturas de esquerda. Busca alianças com setores conservadores da sociedade, tentando somar votos que ficaram brancos/nulos/abstêmios em 2018 e, além disso, convencer eleitores optaram por Fernando Haddad (PT) e por Bolsonaro, porém sem ser bolsonaristas. A conta é difícil de fechar por causa do alcance militante do PT e seus aliados de esquerda, de um lado, e da virulência bolsonarista em destruir opositores, de outro. Ciro precisa aceitar que seu personalismo será ineficaz frente à horda destrutiva do bolsonarismo, não aceita que sua figura seja menor do que o PT, muito embora tenha admitido retirar sua candidatura em 2018 caso o ex presidente Lula estivesse no pleito. A revolta do ex governador do Ceará é com o fato de precisar ser um figurante na estratégia petista na solução de consenso à esquerda. Ele poderia ter um papel relevante na campanha e numa eventual administração coligada. Não obstante, Ciro se dispõe a sentar à mesa para negociar com setores conservadores, ou seja, admite um papel para a direita na restauração de um ambiente institucional minimamente democrático, ponto esse que é justamente a razão da recusa da esquerda num acordo com o PDT, PSB e outros, pois não aceitam negociar com os responsáveis pela deposição de Dilma Rousseff em 2016, momento chave da ruptura da convivência democrática. Em parte, oportunismo, em parte, visão estratégica. Mas fato é que Ciro, bem ou mal, oferece uma ponte. Infelizmente, nada indica que será construída e a tendência continua sendo de divisão na esquerda, porque o PT não abrirá mão de sua superioridade, e nem pode. Os palanques estaduais determinarão uma possível aliança para definir as coligações, que não poderão deixar de levar em conta o papel de Guilherme Boulos (PSOL-SP) cujo desempenho nas eleições municipais em 2020 superou as expectativas e emerge como hábil e relevante opção.
À direita, há uma resignação de um presidente “sem modos”, cuja imagem nunca deixou dúvidas, é ligado ao submundo do crime e executa um projeto de destruição. Mas está disposta a tolerar o absurdo se for para manter a esquerda longe do poder e receber os lucros da privatização e do espólio da riqueza nacional. Assim, produz soluções pasteurizadas pela mídia como Eduardo Leite (PSDB-RS), Luiz Henrique Mandetta (DEM-PR) ou mesmo João Doria (PSDB-SP), até agora incapazes de angariar apoio para além do eixo Centro-Sul do país. Gilberto Kassab (PSD-SP) e Rodrigo Maia (Sem Partido/RJ) serão fiadores de qualquer “terceira via” (de direita, claro) que surja, sabendo que tal hipótese é remota. E a “solução Mourão”, numa hipótese mais remota ainda de queda de Bolsonaro, seria a manutenção de um governo angariado tanto nos militares como nos financistas.
É importante assinalar que, sejam quais forem as alternativas competitivas à mesa, haverá sempre o peso de se lidar com o mais marcante personagem da recente democracia brasileira, o Centrão. Apelido carinhoso dado pela mídia ao caldo amorfo e heterogêneo que alia fisiologismo a práticas coronelistas e concentra toda ordem de deputadas e deputados de profunda identificação com os preconceitos da sociedade, são na verdade a velha direita de políticos profissionais que “não se vende, mas se aluga” pelo maior preço e pelos cargos com maior capacidade de vitrine eleitoral para uma população despreparada, e que entrega figuras da mais obscura presença nas bancadas do Boi, da Bíblia, da bala e da Bola no Congresso Nacional. Bolsonaro é um representante típico, foi filiado ao PP por anos. Muitos dos que, ainda em 2014, deslumbraram-se com a Lava Jato tinham, nas melhores de suas intenções, limpar o Centrão. Mas eis que, em 2021, ele se releva totalmente fortalecido e, ironicamente, renovado para fazer algo surpreendente: assumir a casa Civil, o coração do governo federal. Resta-nos prestar atenção a isso como um aviso meteorológico: para onde vai o Centrão, é onde há chances claras de um vencedor das eleições.
Conclusão
Não são soluções mirabolantes nem oportunistas que restabelecerão a convivência democrática no Brasil. Voto impresso, semipresidencialismo, “reformas” e outras soluções retóricas trazidas pela direita já de antemão indicam que se trata de mudar para deixar como fica. Advogam o liberalismo econômico e a administração austera das contas públicas como caminho honesto do desenvolvimento, esquecendo que o Estado é parte fundamental de qualquer projeto para uma país profundamente desigual e de injustiças históricas como o Brasil. Não se pode depender de uma trajetória de crescimento econômico predatório e concentrador de renda. Nem de um arranjo tributário que onera os mais pobres. Menos ainda de políticas públicas evasivas.
Ironicamente em confinamento (para quem pode e para quem tem juízo, claro), ensaiamos o que poderia ser o mundo devir em nossas cabeças bombardeadas por todo esse espectro de injustiça e desespero. Ainda assim, há esperança. Há esperança nas instituições, porque o Estado pode sim mediar interesses e colocar os do público acima dos privados. O que dirá se a saída está na livre iniciativa, no reformismo, no comunismo ou no ambientalismo somente o debate dirá, mas certamente não será o totalitarismo, braço armado de um capitalismo neoliberal. Comecemos esse debate silenciando intolerantes, pois para eles não há espaço. A palavra-chave do futuro é Solidariedade. Não aquela simplesmente “meritocrata” ou “empreendedora”, mas a Solidariedade de respeitar o próximo e a Terra (redonda), de aceitar as raças como iguais e de incluir efetivamente negros e índios no nosso convívio como merecem, ou seja, como sujeitos, dotados de honra e cultura própria. Inclusive enaltecendo a pujança da cultura africana e indígena, o que significa participar das instituições. E Solidária será também a economia que tenha base não na exploração, mas no reconhecimento de que o trabalho é a fonte de toda riqueza e deve ser distribuída a quem o gera, dando força a entidades de classe, essas sim a verdadeira ponte para um futuro mais humano, que convive com, e não depreda, o ambiente.
Porque instituições que se respeitam vivem em democracia.
*Alexandre Favaro Lucchesi é professor e doutor em Economia pela Unicamp.