O colapso atual da ética

Imagem: Mati Mango
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

A globalização do capitalismo depredador e a mercantilização da sociedade atingem o coração da ética

Vivemos e sofremos no Brasil tempos sombrios sob o governo de Jair Bolsonaro, onde a ética foi enviada ao limbo e tudo praticamente valia (as fake news, as mentiras, a pregação da violência e a exaltação da tortura). Nos dias atuais assistimos, desolados, a guerra Rússia-Ucrânia. Esta guerra representa a negação de todos os valores civilizatórios, pois uma grande potência nuclear está literalmente destruindo uma pequena nação e seu povo.

Sem perder de vista os dois dados acima referidos, percebo dois fatores principais, entre outros, que atingem o coração da ética: a globalização do capitalismo depredador e a mercantilização da sociedade.

A mundialização do capitalismo, como modo de produção e sua expressão política, o neoliberalismo mostrou as consequências perversas da ética capitalista: seus eixos estruturantes são o lucro ilimitado, acumulado individualmente ou por grandes corporações, a concorrência desenfreada, o assalto aos bens e serviços da natureza, a flexibilização das leis e a redução ao mínimo do Estado em sua função de garantir uma sociedade equilibrada. Tal ética é altamente conflitiva porque não conhece a solidariedade, mas a concorrência que faz de todos adversários, senão inimigos a serem vencidos.

Bem diferente, por exemplo, é a ética da cultura maia. Esta coloca tudo centrado no coração, já que todas as coisas nasceram do amor de dois grandes corações, do Céu e da Terra. O ideal ético é criar em todas as pessoas corações sensíveis, justos, transparentes e verdadeiros. Ou a ética do “bien vivir y convivir” dos andinos, assentada no equilíbrio com todas as coisas, entre os humanos, com a natureza e com o universo.

A globalização, inter-relacionando todas as culturas, acabou também por revelar a pluralidade dos caminhos éticos. Uma de suas consequências está sendo a relativização generalidade dos valores éticos. Sabemos que a lei e a ordem, valores da prática ética fundamental, são os pré-requisitos para qualquer civilização em qualquer parte do mundo.

O que observamos é que a humanidade está cedendo diante da barbárie rumo a uma verdadeira idade das trevas mundial, tamanho é o descalabro ético que estamos vendo.

O segundo grande empecilho à ética é mercantilização da sociedade, aquilo que Karl Polaniy chamava já em 1944 de A grande transformação. É o fenômeno da passagem de uma economia de mercado para uma sociedade puramente de mercado.

Tudo se transforma em mercadoria, coisa já prevista por Karl Marx em seu livro A miséria da filosofia, de 1848, quando se referia ao tempo em que as coisas mais sagradas como a verdade e a consciência seriam levadas ao mercado; seria um “tempo da grande corrupção e da venalidade universal”. Pois vivemos este tempo.

A economia especialmente a especulativa dita os rumos da política e da sociedade como um todo que se caracteriza pela geração de um profundo fosso entre os poucos ricos e as grandes maiorias empobrecidas. Aqui se revelam traços de barbárie e de crueldade como poucas vezes na história.

Qual é a ética que nos poderá orientar como humanidade vivendo na mesma Casa Comum? É aquela ética que se enraiza naquilo que é específico nosso, enquanto humanos e que, por isso, seja universal e possa ser assumida por todos.

Estimo que que em primeiríssimo lugar é a “ética do cuidado”. Consoante a fabula 220 do escravo Higino, bem interpretada por Martin Heidegger em Ser e Tempo e detalhada por mim em Saber cuidar, constitui o substrato ontológico do ser humano, valer dizer, aquele conjunto de fatores objetivos sem os quais jamais surgiria o ser humano e outros seres vivos.

Pelo fato de o cuidado ser da essência do humano, todos podem vivê-lo e dar-lhe formas concretas, segundo as diferentes culturas. O cuidado pressupõe uma relação amigável e amorosa para com a realidade, da mão estendida para a solidariedade e não do punho cerrado para a competição. No centro do cuidado está a vida. A civilização deverá ser bio-sócio-centrada.

Outro dado de nossa essência humana é a “solidariedade” e a ética que daí se deriva. Sabemos hoje pelo bioantropologia que foi a solidariedade de nossos ancestrais antropóides que permitiu dar o salto da animalidade para a humanidade. Buscavam os alimentos e os consumiam solidariamente. Todos vivemos porque existiu e existe um mínimo de solidariedade, começando pela família. O que foi fundador ontem, continua sendo-o ainda hoje.

Outro caminho ético, ligado à nossa estrita humanidade, é a “ética da responsabilidade universal”. Ser responsável é dar-se conta das consequências benéficas ou maléficas de nossos atos pessoais e sociais. Ou assumimos juntos responsavelmente o destino de nossa Casa Comum ou então percorreremos um caminho sem retorno. Somos responsáveis pela sustentabilidade de Gaia e de seus ecossistemas para que possamos continuar a viver junto com toda a comunidade de vida.

O filosofo Hans Jonas que, por primeiro, elaborou O princípio responsabilidade, agregou a ele a importância do medo coletivo. Quando este surge e os humanos começarem a dar-se conta de que podem conhecer um fim trágico e até de desaparecer como espécie, irrompe um medo ancestral que os leva a uma ética de sobrevivência. O pressuposto inconsciente é que o valor da vida está acima de qualquer outro valor cultural, religioso ou econômico.

Importa também resgatar a “ética da justiça” para todos. A justiça é o direito mínimo que tributamos ao outro, de que possa continuar a existir e dando-lhe o que lhe cabe como pessoa: dignidade e respeito. Especialmente as instituições devem ser justas e equitativas para evitar os privilégios e as exclusões sociais que tantas vítimas produzem, particularmente no Brasil, um dos mais desiguais, vale dizer, mais injustos do mundo. Daí se explica o ódio e as discriminações que dilaceram a sociedade, vindos não do povo, mas daquelas elites endinheiradas que não aceitam o direito para todos mas querem preservar seus privilégios.

A justiça não vale apenas entre os humanos, mas também para com a natureza e a Terra que são portadores de direitos e, por isso, devem ser incluídas em nosso conceito de democracia sócio-ecológica.

Por fim, devemos incorporar uma “ética da sobriedade compartida” para lograr o que dizia Xi Jinping, chefe supremo da China “uma sociedade moderadamente abastecida”. Isto significa um ideal mínimo e alcançável.

Estes são alguns parâmetros fundamentais para uma ética, válida para cada povo e para a humanidade, reunida na Casa Comum. Caso contrário poderemos conhecer um Armagedon social e ecológico.

*Leonardo Boff, é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Como cuidar da Casa Comum (Vozes).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Andrés del Río Marcus Ianoni Celso Frederico Marcelo Módolo Mário Maestri Francisco Fernandes Ladeira Benicio Viero Schmidt Ari Marcelo Solon Eduardo Borges Leonardo Boff Berenice Bento Alexandre de Freitas Barbosa Jean Marc Von Der Weid Gilberto Maringoni José Geraldo Couto Gerson Almeida Fernão Pessoa Ramos José Raimundo Trindade Jorge Luiz Souto Maior Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ladislau Dowbor Valerio Arcary Renato Dagnino Marjorie C. Marona Anselm Jappe André Márcio Neves Soares Gabriel Cohn Paulo Capel Narvai Jorge Branco Manchetômetro Antonio Martins Marcos Aurélio da Silva Bruno Machado Ricardo Musse Bernardo Ricupero Leonardo Avritzer Ricardo Antunes Michael Roberts Dennis Oliveira Annateresa Fabris Michel Goulart da Silva Priscila Figueiredo Igor Felippe Santos Daniel Afonso da Silva Lincoln Secco Luis Felipe Miguel Ronald León Núñez Eliziário Andrade Lorenzo Vitral José Costa Júnior Atilio A. Boron Luiz Renato Martins Milton Pinheiro Leonardo Sacramento Juarez Guimarães Henry Burnett Armando Boito Ricardo Fabbrini Eugênio Trivinho Elias Jabbour Gilberto Lopes Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bento Prado Jr. Tales Ab'Sáber Luís Fernando Vitagliano Salem Nasser Ricardo Abramovay Paulo Fernandes Silveira José Machado Moita Neto Vladimir Safatle Tadeu Valadares Otaviano Helene Luiz Carlos Bresser-Pereira Vanderlei Tenório Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Bernardo Pericás Valerio Arcary Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Eduardo Soares Manuel Domingos Neto Osvaldo Coggiola Thomas Piketty Paulo Nogueira Batista Jr Daniel Brazil Everaldo de Oliveira Andrade Francisco Pereira de Farias Carla Teixeira José Luís Fiori Slavoj Žižek José Dirceu João Carlos Salles Marcelo Guimarães Lima Fernando Nogueira da Costa Remy José Fontana Liszt Vieira João Carlos Loebens Jean Pierre Chauvin Alexandre Aragão de Albuquerque Celso Favaretto Ronald Rocha Francisco de Oliveira Barros Júnior Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Marques Marilena Chauí Eugênio Bucci Carlos Tautz Luiz Werneck Vianna Eleonora Albano Leda Maria Paulani André Singer Rodrigo de Faria Dênis de Moraes Flávio Aguiar João Sette Whitaker Ferreira Airton Paschoa Flávio R. Kothe Antonino Infranca Andrew Korybko Julian Rodrigues Paulo Martins Luciano Nascimento José Micaelson Lacerda Morais Mariarosaria Fabris Chico Whitaker Walnice Nogueira Galvão João Feres Júnior João Lanari Bo João Adolfo Hansen Daniel Costa Michael Löwy Antônio Sales Rios Neto Rubens Pinto Lyra Alexandre de Lima Castro Tranjan Marcos Silva Yuri Martins-Fontes Claudio Katz Caio Bugiato Boaventura de Sousa Santos Ronaldo Tadeu de Souza Sandra Bitencourt Fábio Konder Comparato Matheus Silveira de Souza Eleutério F. S. Prado Kátia Gerab Baggio Tarso Genro João Paulo Ayub Fonseca Plínio de Arruda Sampaio Jr. Sergio Amadeu da Silveira Chico Alencar Vinício Carrilho Martinez Samuel Kilsztajn Rafael R. Ioris Heraldo Campos Luiz Roberto Alves Afrânio Catani Érico Andrade Denilson Cordeiro Maria Rita Kehl Alysson Leandro Mascaro Henri Acselrad

NOVAS PUBLICAÇÕES