O Gato, o Galo e a história

Imagem: Szalbocs Toth
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O Gato, o Galo e a história

Por TALES FONTANA SIQUEIRA CUNHA*

Monumentos em chamas iluminam ou apagam a nossa memória?

“É assim, pois, que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão. É impossível falar sobre uma única história sem falar sobre poder […] Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazer a história definitiva daquela pessoa” (Chimamanda Ngozi Adichie).

No dia 24 de julho, após imagens da estátua do bandeirante Borba Gato, localizada na Avenida Santo Amaro, ardendo em chamas viralizarem na internet, as redes sociais de parte dos paulistanos se viram às voltas com a pergunta que dá subtítulo ao texto. Ao lado da estátua, foi erguida uma faixa onde se lia: “Revolução periférica – a favela vai descer e não vai ser carnaval”. No mesmo dia, estavam agendadas manifestações em todo o País “em defesa da vida” e contra o presidente Jair Bolsonaro. Seria o incêndio uma forma legítima de protesto ou uma forma autoritária de apagamento da história? Qual o limite para esse tipo de intervenção?

Um primeiro aspecto que se deve levar em conta nessa discussão consiste na diferença entre o que é política de Estado e o que é revolta da população contra esse mesmo Estado. Sem dúvida, queimar estátuas enquanto política de Estado é uma prática autoritária que remonta a regimes totalitários.  Por outro lado, como parte de uma revolta contra poderes instituídos, é uma prática política que pode tanto remontar a experiências de dominação e apagamento violento da história – caso da destruição em 1996 do monumento de Oscar Niemeyer em homenagem às vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás em Marabá, no Pará, a mando de latifundiários locais – como também a experiências comumente referidas enquanto libertadoras e democráticas, caso da Independência Norte Americana. Na ocasião, colonos derrubaram e queimaram inúmeros símbolos associados à Grã-Bretanha e seu detestado rei, inclusive estátuas. Portanto, trata-se de um recurso passível de ser mobilizado por campos distintos do espectro político, como passeatas e comícios, com a diferença de confrontarem explicitamente a ordem legal.

“Derrubando a Estátua do Rei George III”, Quadro de Johannes Adam Simon Oertel de 1859 ilustra a derrubada do monumento em Nova York em 1776. A estátua foi fundida e seu chumbo utilizado para a produção de balas.

Parte das objeções levantadas, mesmo por pessoas simpáticas à luta antirracista, foi no sentido da indagação: “se for para ser assim, teríamos que incendiar milhares de monumentos. É isso mesmo que queremos?”. Perguntas como essa fariam sentido se endereçadas a políticas de Estado: elas se pautam por métricas e critérios objetivos, permitindo que coerência e transparência sejam cobradas. Por outro lado, os protestos não respondem a essa lógica. Vale dizer: o grupo de revoltosos não tem a autoridade para retirar a estátua, que continua hoje onde sempre esteve. A intervenção, mais do que tudo, teve um caráter imagético.

Outra diferença entre protestos e políticas de Estados refere-se à profundidade dos estudos prévios necessários. Aprofundar-se na biografia de Borba Gato e identificar como e em que intensidade esteve vinculado ao massacre de povos indígenas é algo relevante para políticas de memória. Em uma situação de protesto, a simples existência do vínculo pode ser suficiente. No caso da Independência norte-americana, a biografia dos homenageados, se virtuosa, não redimiu suas estátuas e nem a coroa britânica. Do mesmo modo, no momento em que o monumento foi incendiado, as eventuais benfeitorias de Borba Gato para sua comunidade em Santo Amaro falaram menos do que o movimento histórico ao qual terminou associado e que lhe rendeu lugar cativo no panteão da historiografia paulista. O que os protestos procuram é comunicar uma insatisfação a partir dos meios disponíveis. Vale lembrar que, dentro de uma democracia, esses meios podem sempre ser questionados, mas, em um regime de austeridade fiscal permanente, cruzar os braços alegando ser “contra destruir” porque se é “a favor de construir novos” pode ser bastante cômodo.

Portanto, cabe perguntar: qual seria uma política de Estado adequada para esse tipo de situação? Em São Paulo, é possível enumerar algumas iniciativas, como o Projeto de Lei (PL 404) apresentado em 2020 pela vereadora Érica Malunguinho (PSOL), visando a transferência para museus estaduais de monumentos que prestem homenagens a escravocratas ou eventos ligados a práticas escravistas. Outro exemplo é a aprovação, em 2013, da previsão legal da possibilidade de alteração dos nomes de logradouros públicos quando se tratar de denominação referente a autoridades que tenham cometido crime de lesa-humanidade ou graves violações de direitos humanos. Porém, no caso do PL 404, o projeto não vingou, tendo o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) aprovado uma moção contrária. No segundo caso, resistências têm dificultado sua implementação. Um bom exemplo é a renomeação do elevado Costa e Silva, o “Minhocão”, para elevado João Goulart, proposta pelo vereador Eliseu Gabriel (PSB), em 2014, que levou 2 anos para ser aprovada.

Na contramão das boas práticas anteriormente mencionadas, a construção de monumentos e a nomeação de logradouros públicos como homenagem a personagens como os bandeirantes, somadas à elaboração de uma historiografia laudatória que reserva aos bandeirantes o papel de heróis e “pais fundadores” de São Paulo, torna-os parte integrante de nosso cotidiano, além de incentivar o desenvolvimento de afetos positivos por parte da população a esse tipo de personagem da nossa história, mesmo naqueles que descendem das vítimas dos movimentos históricos protagonizados pelos homenageados.

A própria construção de estátuas faz parte da articulação de um discurso sobre essas figuras. O monumento em homenagem a Borba Gato foi inaugurado em 1963, mais de dois séculos após a sua morte. Em contrapartida, outras dimensões de nossa cultura são relegadas ao apagamento histórico. Não por acaso, os frequentes incêndios criminosos em terreiros de umbanda e candomblé são menos noticiados e objeto de pouca indignação, se comparados ao incêndio da estátua do bandeirante. Assim, pode-se dizer que as respostas que o Estado brasileiro entrega como políticas públicas são insuficientes. Caberia a ele fazer um trabalho qualificado em termos de reconhecimento de memória, verdade, justiça, educação e reparação, porém, sua omissão acaba bloqueando um debate mais aprofundado a respeito de nossa história e de seus homenageados. Menos do que se dirigir a um passado, tentando “passar a borracha” nele, os protestos como os que vimos se dirigem a um presente que evita lidar com traumas, permitindo que eles se reproduzam reiteradamente.

Para além disso, monumentos não são intocáveis. Em seu projeto “Memória da Amnésia”, a artista plástica e professora da FAU-USP Giselle Beiguelman traçou o itinerário “nômade” de dez monumentos paulistanos que hoje, junto a inúmeros outros, encontram-se abandonados em depósitos municipais. Ao longo de um século, as estátuas ocuparam diferentes localidades da cidade, sendo realocadas por motivos diversos que vão desde requalificações urbanas até desavenças ideológicas com novos governos.

A principal forma de dilapidação do patrimônio cultural brasileiro é o abandono. Um exemplo disso é o Museu Nacional, no Rio de Janeiro: a antiga residência oficial do Imperador pegou fogo em 2018 devido à má qualidade de suas instalações elétricas, perdendo 85% de seu acervo histórico e científico construído ao longo de dois séculos. O museu, que deveria receber um repasse anual de 550 mil reais, vinha tendo seus recursos contingenciados desde 2014. No ano do incêndio, havia recebido apenas 33 mil reais. Assim, para além de ideias novas, é preciso que exista destinação de recursos.

Para além do patrimônio cultural: a luta antirracista e o direito à cidade

Em maio do ano passado, uma onda de protestos varreu os Estados Unidos após o americano George Floyd, de 46 anos, morrer asfixiado durante uma abordagem policial que, segundo a polícia norte-americana, foi motivada pelo suposto emprego de uma nota de 20 dólares falsificada para a compra de cigarros em um supermercado. Na autoproclamada “maior democracia do mundo”, as imagens de um guarda branco ajoelhando-se no pescoço do homem negro, deitado, algemado e sem resistir à abordagem, por quase 9 minutos, somadas às súplicas para que o algoz parasse, inclusive do próprio George antes de perder a consciência, rodaram o Planeta e inflamaram protestos antirracistas em mais de 60 países, em plena pandemia de Covid-19.

Inicialmente pacíficos, os protestos tornaram-se violentos, resultando em confrontos com a polícia, depredações de delegacias, viaturas e na retirada/depredação de estátuas de figuras vinculadas a períodos autoritários e à escravização. O exemplo mais emblemático aconteceu no caso da cidade de Bristol, na Inglaterra, onde a população indignada derrubou e jogou em um lago a estátua de bronze de Edward Colston, traficante do século 17, que lucrou com a negociação comercial de, ao menos, 80 mil pessoas escravizadas da África para o Caribe. Pode-se argumentar que os acontecimentos se deram “no calor do momento” e não de caso pensado, como no caso da estátua do Borba Gato. Porém, sabemos que por aqui a ausência de “estopins” se deve menos à inexistência de George Floyds do que à trivialidade com que esses episódios são tratados no Brasil.

Em maio deste ano, 29 jovens foram assassinados pela polícia militar na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, sem que qualquer responsabilidade fosse atribuída ao comando da operação que foi, inclusive, saudada pelo presidente. A morte de inocentes e crianças em investidas policiais em territórios populares, como no caso da designer de interiores e atendente da loja Farm, Kathlen Romeu, de 24 anos e grávida de 14 semanas, são eventos rotineiros que ilustram o que o movimento negro denuncia como sendo um genocídio permanente conduzido através da política de segurança pública do Estado.

Na mesma toada, em junho deste ano, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 490, que cria restrições a demarcação de terras indígenas e abre espaço para a exploração hídrica, energética, de mineração, garimpo e expansão da malha viária nesses territórios, caso haja interesse do governo, além de liberar a entrada e permanência das Forças Armadas e Polícia Federal, sem a necessidade de consultar as nações indígenas que ali habitam. Vale lembrar que vivemos um contexto de crescimento vertiginoso da violência contra esses povos. O atual governo aproveitou-se do contexto pandêmico para “passar a boiada” também no desmonte de marcos protetivos aos povos originários, como enunciou o então Secretário do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Ou seja, um outro fato que poderia ser um possível estopim para manifestações é visto como algo normalizado.

A realidade é que esses eventos são tidos como normais porque estão visceralmente entrelaçados com nosso legado histórico. O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão, tendo recebido entre 38% e 44% da quantidade absoluta de africanos obrigados a deixar o continente africano, como lembra a historiadora Lilia Schwarz. O mesmo vale para os povos indígenas, principais vítimas do bandeirismo, escravizados durante o processo de exploração territorial bandeirante em busca de riquezas minerais. As injustiças históricas não ficaram apenas no passado, mas continuam assombrando parte da população das mais diversas formas e povoam a paisagem das nossas cidades na forma de homenagens aos algozes de outrora.

Retomando a dicotomia entre revolta popular e política de Estado, podemos pensar horizontes para o dilema patrimonial brasileiro. No já enunciado caso de Bristol, a resposta do poder local foi recuperar o monumento danificado, levá-lo a um museu e abrir a discussão quanto ao seu destino. Uma petição pública foi criada e já conta com milhares de assinaturas. No momento, o “favorito” para substituí-lo é Paul Stephenson, um operário negro que liderou, em 1963, um boicote à companhia de ônibus da cidade para obrigá-la a acabar com suas políticas racistas para contratar trabalhadores.

No contexto atual, grafites homenageando Marielle Franco, memoriais a ciclistas e pedestres vitimados pelo trânsito e projeções luminosas nas fachadas de prédios passaram a compor a paisagem urbana, criando monumentos informais e passageiros que ressignificam a cidade e figuram suas disputas latentes. Daí o sentido da declaração do advogado e filósofo Silvio Almeida, quando questionado sobre o tema no programa Roda Viva, em junho de 2020, pontuando que: “Revisionismo histórico é tentar impedir o fluxo da história. (…) O espaço público, em uma luta antirracista, tem que ser reconfigurado. A história é conflito. Construir uma estátua é um ato político, assim como retirar uma estátua também é um ato político“. Daí também o sentido da bandeira estendida junto à estátua em chamas, fazendo referência ao carnaval e à possibilidade de outras formas de ocupação do espaço urbano que subvertam aquelas consagradas como normais.

Memorial em homenagem à cicloativista Marina Harkot. Foto: Débora Ungaretti

A criminalização do protesto: cidadania cerceada na sociedade escravocrata

Seja pelo mercado, seja pelo Estado, falta no cenário atual qualquer perspectiva de inclusão social. O conjunto de transformações globais trazidas no bojo da Terceira Revolução Industrial (Técnico-Científico-Informacional), a crescente desindustrialização do País e as reformas neoliberais recentemente aprovadas parecem impor limites à integração social a partir do mundo do trabalho. Como é possível sobreviver em uma economia crescentemente antissocial e marcada pela exclusão? E como podemos combater essa exclusão? A ausência de um projeto claro que aponte horizontes para a sociedade empareda os desfavorecidos entre as heranças do passado, a barbárie do presente e a falta de promessas do futuro. Não é preciso uma bola de cristal para saber que novas revoltas surgirão. Diferentemente do século passado, no qual as fábricas foram o palco privilegiado de movimentos contestatórios, como as greves, neste século a própria cidade volta a ser o lócus dessas disputas, passando novos personagens a protagonizarem os seus momentos agonísticos. Um exemplo disso, foi o inusitado personagem que emergiu no debate sobre o incêndio da estátua de Borba Gato: o fundador do coletivo “Entregadores Antifascistas”, Paulo Roberto da Silva Lima, o “Galo”.

Após ser apontado pela polícia de São Paulo como um dos responsáveis pelo ato incendiário, Galo assumiu a autoria da ação. Junto com torcidas organizadas, e sem contar inicialmente com o apoio de partidos, o coletivo “Entregadores Antifascistas” foi o responsável por organizar, na esteira dos protestos nos Estados Unidos, os primeiros atos contra o presidente durante a pandemia, em junho do ano passado, quando o país somava pouco mais de 30 mil mortos em decorrência do novo vírus. De lá para cá, mais de meio milhão de pessoas morreram no País.

A Justiça do Estado de São Paulo decretou a prisão preventiva de Galo e de sua esposa, Géssica. A decisão se deu após o entregador colaborar com a Polícia Civil, que realizou busca e apreensão sem mandado judicial em sua residência, e de ter se apresentado voluntariamente no 11º Distrito Policial de Santo Amaro para prestar esclarecimentos. A medida, injustificada à luz do comportamento de Galo e injustificável no caso de Géssica, que sequer estava presente no momento do protesto, revela os limites estruturais para o exercício pleno da cidadania em uma sociedade de herança escravocrata. O Estado, que deveria mediar conflitos, prefere suprimi-los através de seu braço penal. Visto como encarnação de um projeto subversivo e contra-hegemônico de disputa do espaço público, o casal – que tem uma filha de três anos – não foi preso preventivamente por suas condutas, mas por aquilo que simboliza. Políticas de Estado, especialmente aquelas cerceadoras de liberdades civis, não podem se dar esse tipo de luxo. Autênticos liberais, se por aqui houver, deveriam ficar arrepiados.

Em nota divulgada à imprensa, Galo anunciou que “para aqueles que dizem que a gente precisa ir por meios democráticos, o objetivo do ato foi abrir o debate”.  Em consonância com a nota de Galo, também dizemos aqui que o objetivo desse texto é o de continuar o debate, apontando rumos possíveis a serem seguidos, sem a pretensão de esgotar um assunto tão complexo.

O incêndio do dia 24 não foi a primeira “ação direta” sofrida pelo monumento na avenida Santo Amaro. Em 2016, a estátua, juntamente com o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, amanheceu coberta de tinta. A resposta pública foi a instalação de uma vigia 24 horas nas estátuas, o que não impediu a atuação dos manifestantes no último sábado. Para políticas de segurança pública, nunca faltam recursos. Um bom caminho, se quisermos que monumentos como estes não tenham um destino semelhante ao da estátua de Cecil Rhodes, magnata diretamente ligado ao colonialismo e ao racismo, na Universidade do Cabo, que foi retirada após ser coberta de esterco e sacos de lixo por estudantes, é cobrar o poder público para que tome medidas mais efusivas no sentido de discutir a história e o significado que hoje entendemos como patrimônio cultural. Vale dizer que, ainda que represente um bom começo, uma política de patrimônio cultural mais sensível aos impasses de nossa história não será suficiente para resolver os dilemas da sociedade brasileira.

Essa resolução só se dará a partir do entendimento de que vidas periféricas importam e de que a criminalização de protestos e manifestantes não é uma solução, mas parte do problema. Em um país em que indígenas e negros são exterminados há séculos e que já conta – nunca é demais repetir – com mais de quinhentos mil mortos por conta da conduta displicente e criminosa de seu chefe de Estado frente à pandemia, construir esse entendimento não é tarefa pouca. Se não o fizermos, seguiremos no cabo de guerra.

*Tales Fontana Siqueira Cunha é doutorando em Arquitetura e Urbanismo na FAU-USP.

Queda da coluna de Vendôme durante a Comuna de Paris, maio de 1871. Fonte: National Gallery of Victoria.

 

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