Clarice Lispector e Susan Sontag: furtos e abusos

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Por GUILHERME MAZZAFERA*

Comentário sobre duas biografias escritas pelo norte-americano Benjamin Moser

Assim como muitos, li Clarice, –  a biografia que leva o nome de Benjamin Moser – com certo deleito e curiosidade. Creio que foi por volta de 2017, após tê-la comprado em uma das diversas promoções da finada Cosacnaify. Desconhecendo os importantes trabalhos precedentes de Nádia Gotlib (Clarice, uma vida que se conta, Ática, 1995) e Teresa Montero (Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector, Rocco, 1999), aprendi muitas coisas e apreciei sua estrutura e pendor narrativo. Em uma breve pesquisa, no entanto, as animosidades entre Moser e Gotlib ficaram evidentes, em vídeo e por escrito. Num primeiro momento, não levei a coisa muito a sério, entendendo o fato como um ranço natural, colonialista quase, de uma pesquisadora brasileira diante de alguém que faz (tardiamente) um trabalho semelhante ao seu com repercussão muito mais ampla simplesmente por tê-lo feito em inglês.

Mas, ainda longe de descobrir o furto estrutural e de diversas intuições presentes no estudo de Gotlib levado a cabo por Moser, entendi que o centro do atrito entre os biógrafos parecia residir na afirmação feita por Moser de que a mãe de Clarice havia sido estuprada por soldados soviéticos durante os pogroms na Ucrânia e contraído sífilis nesta situação. Para Nádia e diversos resenhistas, no Brasil e fora dele, trata-se de puro achismo sensacionalista, sem provas que o sustentem. E o criminoso sempre volta à cena do crime, como veremos. É claro que todo biógrafo inevitavelmente ficcionaliza a vida de seu biografado, produzindo uma versão possível, eminentemente pessoal, mas espera-se que este gesto imaginativo esteja antes na amarração dos fatos, no rendilhar do retrato, do que na invenção de fatos tout court.

A resenha de Benjamin Abdala Junior dirime quaisquer dúvidas quanto ao transplante não diretamente nomeado de cenas, trechos literários, imagens (metafóricas e fotográficas), subtítulos, enfim, de todo o esqueleto e boa parte dos órgãos vitais do estudo de Gotlib para a biografia de Moser. Pensada para o público norte-americano, carente de outras biografias da autora e sem acesso ao livro de Gotlib, tais aspectos certamente passam batido. Abdala observa que o tênue diferencial do livro de Moser estaria no escavar da “tradição histórica judaica que provocou a saga dos movimentos migratórios, incluindo os da família Lispector”, o que não raro resvala em uma leitura dogmática da ficção clariciana pelo filtro judaico. Como um todo, portanto, tem-se “um vasto repertório de informações de interesse”, entremeado, no entanto, por “argumentos discutíveis, expostos num fluxo de linguagem sedutor e envolvente”.

Em agosto de 2019, no entanto, deparei-me, no Los Angeles Review of Books, com “Benjamin Moser e a menor mulher do mundo”, brilhante e corajoso ensaio de Magdalena Edwards, uma das tradutoras para o inglês das novas edições de Clarice no âmbito do projeto New Directions, capitaneado por Moser. É uma leitura estarrecedora. O ensaio de Edwards (que não parafraseio a fundo aqui porque o mesmo merece ser lido de forma integral) documenta passo a passo a sequência de iniquidades editoriais por ela enfrentadas a partir do momento que aceitou o convite de Moser para traduzir O lustre.

Aparentemente, Moser entende que se alguém reescreve/prepara/revisa (a distinção não é clara) determinado texto, pode arrogar-se direitos de autoria ou, no mínimo, de tradução. Ao que tudo indica, alegando que Edwards produzira um trabalho abaixo do esperado – sem falar nas tentativas de demiti-la –, passou a editar seu arquivo de tradução e, mais tarde, quando o livro foi publicado, creditou Edwards como cotradutora, ao lado de si mesmo, Moser, cujo nome naturalmente aparece primeiro.

Poder-se-ia pensar que Moser é apenas alguém excessivamente zeloso pelo trabalho editorial que exerce – e que, é claro, não gosta de categorias mesquinhas como “revisão de tradução” –, mas Edwards elenca várias outras ocorrências que deixam claro a natureza machista, autoritária, egocêntrica e essencialmente plagiária da figura. Entre vários exemplos, Moser não só furtou sem mea culpa uma belíssima imagem presente no prefácio de Katrina Dodson (as vírgulas de Clarice como cabelos na sopa do leitor), a tradutora de Complete Stories, como excluiu Dodson dos eventos de lançamento do livro.

Tendo conhecimento de tudo isso, me pareceu um acintoso disparate o anúncio da Companhia das Letras, feito meses atrás, de que publicaria a biografia de Susan Sontag escrita por Moser (indicado para a tarefa pela própria família de Sontag). Dado o histórico do biógrafo, que já lesou a comunidade acadêmica brasileira antes, a escolha soou-me – para usar um termo irônico-ominoso – antipatriótica. Mas é claro que Sontag (brilhante intelectual que foi) tem apelo, e que Moser (cada vez mais poderoso no meio editorial norte-americano) tem apelo. E é claro, também, que Companhia das Letras já não é mais tão brasileira assim.

Não li e não lerei sua biografia, mas o que as resenhas – como a da grande Janet Malcolm – parecem deixar claro é que mais uma vez a suposta grande revelação do livro carece de provas. Desta vez, Moser afirma que Sontag é de fato a autora de Freud: The Mind oftheMoralist, livro que teria pavimentado a carreira de seu então marido, Philip Rieff, seu professor de sociologia na Universidade de Chicago com quem se casou antes dos vinte. Para Moser, o livro dialoga profundamente com diversos temas futuros da obra de Sontag e estaria muito acima do que Rieff teria escrito posteriormente, o que evidenciaria o mascaramento da autoria.

Que Sontag atuou como ghost-writer para Rieff em certas resenhas parece certo, mas uma coisa é reescrever/preparar/revisar um texto alheio, como parece ter sido o caso com Freud, outra bem diversa é concebê-lo de todo. Mas, como indica Malcolm, para Moser “todo autor que foi fortemente editado não pode mais reivindicar autoria sobre seu trabalho”.

Abstraindo o julgamento quanto à verdade da questão, a insistência de Moser na mesma é sem dúvida o ponto mais revelador de tudo que foi dito aqui. Afinal, se ele está disposto a arriscar seu pescoço de biógrafo para, mesmo sem provas cabais, defender o trabalho autoral de uma jovem e brilhante intelectual indevidamente apropriado por um marido-professor opressor, medíocre e interesseiro, sua biografia parece clamar para si o papel de uma reparação histórica louvável.

Clamor que acaba de ser referendado, pois Moser venceu o Pulitzer.

A resposta, coletiva e brilhante, não tardou: em 13 de maio de 2020, o mesmo Los Angeles Review of Books publicou um texto assinado por Magdalena Edwards, Nádia Gotlib, Lisa Paddock e Carl Rollyson (estes últimos, autores de Susan Sontag: The Making of na Icon (2000) e as mais recentes vítimas da sanha moseriana) com o título direto de “Benjamin’s Moser Pulitzer Prize for Biographyis a Travesty” [O Prêmio Pulitzer de Biografia dado a Benjamin Moser é uma farsa]. Sem meias palavras, qualquer noção de reparação histórica esfacela-se diante de alguém que “repetidamente tem feito uso de seu papel como editor para roubar o crédito de mulheres por seu trabalho”.

Não deixa de ser interessante – ou melhor, perversamente bentrovato – o agudo desprezo de Moser pela figura de Rieff, seu duplo nem tão absconditus assim. Assumindo a definição da postura de Moser nesta biografia como a de “adversário intelectual do seu objeto” (Malcolm de novo), o desamor pela biografada evidenciado por mais de uma resenha do livro não parece se limitar a Susan, abrangendo outras (ou todas?) brilhantes intelectuais que lhe cruzam o caminho.

Cabe aqui o fecho do texto coletivo, que não só pede a revisão justificada do prêmio, como deixa a seguinte advertência: “Mas isto vai muito além de um prêmio literário. Trata-se de duas escritores brilhantes, Clarice Lispector e Susan Sontag, cujo legado está agora nas mãos de um homem com o terrível histórico de roubo e intimidação de suas colegas.”

O fato da biografia de Moser ter sido lançada por aqui pela mesma editora que publica os livros de Sontag (e também a atual reedição da Clarice, de Moser, traduzida pelo mesmo tradutor da biografia de Sontag, que não tem qualquer culpa nessa história, naturalmente) torna mais difícil separar o joio do trigo. Mas é preciso fazê-lo.

Leiam Clarice e Sontag, sempre.

Mas não Moser.

*Guilherme Mazzafera é doutorando em literatura brasileira na USP.

Publicado originalmente no blog Letras In.verso e Re.verso

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