Por PAULO CAPEL NARVAI*
A decisão do TJ-RJ em colocar a “liberdade de locomoção” acima da vida
O desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) que, em 29/9/2021, deu provimento a habeas corpus coletivo para suspender liminarmente os efeitos do Decreto municipal nº. 49.335, de 26/8/2021, que instituiu o passaporte sanitário no Rio de Janeiro, pensa ter feito justiça, assegurando a “liberdade de locomoção” a uma cidadã carioca, e a todos os cidadãos que por lá circulam. Engana-se. Sua decisão, ao contrário do que ele pretende, promove injustiça, pois equivale a autorizar um homem-bomba a explodir pessoas ao seu redor. Autoriza, in limine, a matar.
Quer o juiz que sua decisão, tomada em caráter liminar, seja “o remédio jurídico constitucional que visa proteger a liberdade de locomoção”. Está implícito logo nos primeiros parágrafos de sua decisão, que ele considera a “liberdade de locomoção” uma norma jurídica de aplicação absoluta e superior ao imperativo ético de não matar. Superior também ao sexto mandamento religioso cristão, “não matarás”. Daí considerar ser um remédio o referido habeas corpus.
Nada direi, decerto, sobre o que penso da expressão “remédio jurídico”, no contexto de descontrole sanitário da pandemia de covid-19 no Brasil, marcado por incúria de muitas autoridades públicas, em todos os poderes da República.
O texto que, no caso do Rio de Janeiro, fundamenta a decisão judicial é, como sói acontecer, uma longa peça, onde estão alinhavados dispositivos constitucionais, competências do TJ-RJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), legislação e jurisprudência sobre o direito de locomoção, considerações sobre presidiários e “pessoas livres e cumpridoras dos seus deveres que vivem de acordo com a lei”, comentários sobre indivíduos não vacinados que estariam, em decorrência do decreto municipal “marcados, rotulados, presos em suas residências” e ainda a afirmação de que a norma sanitária carioca seria hipócrita, uma vez que “o transporte público (BRT) anda lotado de gente. Metrô, barcas, ônibus idem”. Entre menções à “marcação a ferro e fogo dos escravos e gados através do ferrete ou ferro em brasas”, pode-se ler o que pensa o desembargador do TJ-RJ sobre estratégias de vigilância sanitária e de proteção da saúde pública, que a lei (sim a lei, incumbe aos prefeitos brasileiros).
Para o juiz, “hoje é a carteira da vacinação que separa a sociedade. O tempo passa, mas as práticas abusivas, ilegais e retrógradas são as mesmas. O que muda são os personagens e o tempo. A carteira de vacinação é um ato que estigmatiza as pessoas criando uma marca depreciativa e impedindo-as de circularem pelas ruas livremente, com nítido objetivo de controle social. O propósito é criar uma regra não admitida juridicamente, mas que visa marcar o indivíduo constituindo uma meta-regra que está associada ao estigma do NÃO VACINADO (maiúsculas no original]”. Segue-se, na peça judicial, além de comentários pessoais estranhos a documento desse teor, extensa peroração sobre estigmas e estigmatizados, racismo, perseguição a judeus, ciganos, práticas de untamento, medo, demagogia, ignorância, superstição, ética, peste na Itália, tortura, contaminação da água, fome, guerra, “leprosos”, estrangeiros, marginais, e caça aos feiticeiros e bruxas. “É uma ditadura sanitária”, vaticina o desembargador.
Mas o núcleo da argumentação apresentada pelo juiz questiona, essencialmente, o direito de o alcaide carioca editar um decreto que impeça “a circulação de pessoas pelas ruas e estabelecimentos sejam eles públicos e/ou privados, academias, eventos, shoppings, cinemas, teatros, lojas, piscinas, e outros estabelecimentos da cidade do Rio de Janeiro, salvo se possuírem o chamado ‘passaporte da vacina’ ou passaporte sanitário”. Assim, sua decisão visaria a proteger direitos de cidadania se “alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal”.
Dois parágrafos chamam especialmente a atenção, pois pretendem dar lições de epidemiologia (“Próximo passo no Brasil é insuflar os vacinados a denunciar e reagir contra os não vacinados acusando-os de serem vetores de transmissão do vírus, mas não esqueçam que vacinados também estão contraindo a doença”) e de ciência política (“Claro que hodiernamente o motivo é eleitoral e político. Politizaram o vírus. Transformaram-no no que há de mais nocivo num Estado: moeda de troca eleitoral. Lamentável, enquanto isso as pessoas morrem. Triste. Muito triste. Pessoas são presas por estarem sentadas na praça, por estarem circulando nas areias das praias. Inacreditável”).
Prossegue o desembargador: “Quem é o novo inimigo de hoje em pleno Século XXI? OS NÃO VACINADOS (maiúsculas no original). Querem obrigar as pessoas a se vacinar e em nome dessa bondade cerceiam liberdades públicas, prendem pessoas nas ruas, nas praças, fecham praias, estabelecem lockdown. Nunca imaginei que fosse assistir aos abusos que assisti. Resultado: quebraram o comércio, a indústria, fecharam lojas, restaurantes, pessoas perderam o emprego, tudo em nome do combate ao vírus quando em verdade o grande vírus são esses homens que não tem compromisso ético e público com a sociedade. INACREDITÁVEL (maiúsculas no original)”.
Ao reiterar que decreto não é lei e que, portanto, “não é fonte de obrigação”, restrita à lei no Estado Democrático de Direito brasileiro, o juiz desautoriza o decreto do prefeito Eduardo Paes.
Ao fazê-lo, comete, em minha opinião, um desvio de foco que é gerador de injustiça, tendo em vista o que a sociedade espera de autoridades do poder Judiciário, perdendo-se a perspectiva sanitária que, ao fim e ao cabo, é o cerne do problema que a liminar pretende remediar.
Cabe enfatizar, a propósito, o mérito do decreto municipal, que se fundamenta no direito social à saúde, expresso no Capítulo II – Dos Direitos Sociais, art. 6º, da Constituição de 1988, reiterado no art. 196 da Carta Magna que consagra a “saúde como direito de todos e dever do Estado”. Um detalhe importante parece ter escapado ao arguto magistrado: o fato de que o artigo art. 197 da CF-1988 caracteriza como “de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle (…)”. É de se supor que o togado do TJRJ conhece a Lei federal 8.080, de 19/9/1990, que regulamenta a Seção II – Da Saúde, do Capítulo II – Da Seguridade Social, da Constituição de 1988. A Seção I da Lei 8080/90 fixa (art. 15)“Atribuições Comuns” à “União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” que as “exercerão, em seu âmbito administrativo”, destacando-se, no que diz respeito ao decreto carioca, e similares nos 5.570 municípios brasileiros, no caso das ações de vigilância, prevenção e controle da pandemia de covid-19, incluindo-se, portanto, as ações de imunização, “para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas (…)” (art. 15, XIII), bem como “elaborar normas técnico-científicas de promoção, proteção e recuperação da saúde (art. 15, XVI) e, sobretudo, “definir as instâncias e mecanismos de controle e fiscalização inerentes ao poder de polícia sanitária” (art. 15, XX). Além disso, todo o artigo 18 da Lei 8080/90 é dedicado às competências da “direção municipal do Sistema Único de Saúde (SUS)”, compartilhadas com estados e a União. Também a Lei federal nº 13.979, de 6/2/2020, estabelece (art. 3º; III, d) que tendo em vista a pandemia de covid “as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas”.
O desembargador, porém, enviesado por sua notável adesão ao direito individual de se locomover sem qualquer restrição, não vê razões sanitárias para admitir qualquer restrição à locomoção, que supõe ser um direito de aplicação absoluta. Mas, como qualquer outra norma jurídica, esta também não o é. Até mesmo a pena de morte, não albergada pelo Direito Penal ordinário brasileiro, manteve-se como norma constitucional a viger, se necessário, em caso de guerra declarada (CF-1988, art. 5, XLVII, a). Não basta, portanto, que o juiz fundamente sua decisão liminar no respeito à pessoa humana. Constitui um fato biológico que um ser humano não é apenas uma vida. Hospedeiros que somos de milhares de outras espécies de vida, somos, cada um, milhões de vidas a um só tempo.
Somos, todos, portanto, um e milhões, simultaneamente. E, desses milhões que portamos e levamos de uma parte à outra, por onde vamos por todo o planeta, sói ocorrer de alguns deles serem lesivos a outros humanos. Numa palavra: matam. Somos hospedeiros e vetores epidemiológicos de seres mortais, por mais que isso possa não agradar ao juiz. Tal foi o caso da varíola, no passado. Tal é o caso, hoje, do ebola. O vírus ebola que circula hoje, agora, em países da África Central e Ocidental tem letalidade alta: o Zaire ebolavirus mata em 85% dos casos de infecção. Embora o SARS-CoV-2, o coronavírus causador da covid-19 tenha letalidade relativamente baixa, é pública e notória a mortandade que vem provocando em vários países e no Brasil, com registro de mais de 600 mil mortes até o final de setembro de 2021.
Não há vacina para o ebolavirus, mas há vacinas, e eficazes, para o SARS-CoV-2.
Se um homem-bomba não é detido, quando é possível detê-lo, alegando-se que tem direito à “liberdade de locomoção” e que seria ditatorial impedir seu direito de ir e vir, o que se está, efetivamente, autorizando, é que, ao explodir-se, ameace a vida dos circundantes. O direito das pessoas que estão em seu entorno justifica, plena e cabalmente, a restrição feita em seu direito de circular, sem regras. Fato análogo se dá quando um indivíduo vive em um meio social em que se desenvolve uma epidemia, em cuja estratégia de controle sanitário inclui-se uma vacina, comprovadamente eficaz. Parece lícito que a autoridade sanitária aja em defesa da proteção sanitária da população, exigindo às pessoas que, para circular, disponham-se a cumprir regras válidas para todos e que, ademais, estejam vacinadas.
Decerto que deve ser ressalvado o direito de uma pessoa não querer se vacinar. Nesse caso, para não representar o equivalente a um homem-bomba para os demais indivíduos que compõem a população na qual está inserido, parece justo impedir sua circulação, com regras restritivas, a todos impostas igualmente e que, justamente por isso, não pode ser vista como “estigmatização”, “perseguição” ou adjetivos do gênero.
Não há que ver nisso, nem de longe, algo que se possa caracterizar como “uma ditadura sanitária”, mas como uma medida protetiva da saúde pública e que, no limite, corresponde ao que o juiz carioca reclamou em sua decisão: a ética da alteridade. Como bem disse, “a ética para com o outro enquanto um ser igual a nós na sua diferença”. São justamente os princípios bioéticos da justiça e da não-maleficência que indicam a necessidade de, com regras claras e iguais para todos, restringir a autonomia (a de circular; não a de se vacinar, que deve ser respeitada).
Mas quer o desembargador que seja respeitado o direito do cidadão se vacinar ou não. Ele o considera “um problema seu [do cidadão] que se encontra amparado pelo princípio da autodeterminação e pelo princípio da legalidade” e que, “jamais um DECRETO MUNICIPAL (maiúsculas no original) pode impedir a liberdade de locomoção de quem quer que seja por não estar vacinado”. Pois, penso eu, equivoca-se o magistrado. Ainda que estribe sua decisão de concessão de liminar por considerar “estarem presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora”. Não estão e por isso a decisão deve ser revista pelo TJ-RJ.
É aceitável o argumento de que o cidadão tem o direito de se vacinar ou não. Mas é incorreto que um decreto municipal não lhe possa cercear o direito de locomoção, mediante regras. Pode, sim. Admitir o contrário equivale a “travar a mão” da autoridade municipal, deixando o homem-bomba livre para agir – e, portanto, atentar contra o direito à vida de outros tantos cidadãos com os quais esteja em contato no momento crítico. Felizmente não há amparo, nas normas legais vigentes no Brasil, para tal despautério.
Aliás, não constitui novidade que o direito, no Brasil e no exterior, aprove e lide com naturalidade com restrições ao direito de locomoção, em várias situações cotidianas. Seria mesmo um consumado despropósito se o direito de ir e vir fosse tomado como um direito absoluto. É corriqueiro que, em uma via pública qualquer, por alguma razão, autoridades locais impeçam a circulação de civis, para protegê-los. Ou que, numa praça, se proíba caminhar sobre a grama. Ninguém reclama, nessas situações, cerceamento de sua liberdade de locomoção.
Apenas, reage-se com resignação a tais impedimentos. Não se trata, ressalte-se, de razões de ordem militar, ou segurança pública. São decorrentes de motivos que as autoridades locais tratam de esclarecer. Um desses motivos, singelo, é a proteção da grama para que possa se renovar. Ora, se é justificável, perante o direito, que o crescer da grama seja motivo válido para cercear o direito de ir e vir, por que não o seria uma medida que evita mortes e se destina à proteção da saúde pública?
São inúmeras as situações cotidianas em que o direito de ir e vir livremente é objeto de restrições. No trânsito, por exemplo, impõem-se limitações relevantes à locomoção, perfeitamente legais e sensatas. Os poderes locais seguem a lei geral quanto às cores utilizadas em semáforos, mas basta visitar algumas cidades brasileiras e se verá que, em várias, a lei geral é aplicada com variações locais em diferentes e criativos dispositivos, aos quais se acoplam temporizadores digitais, conjuntos de luzes flutuantes e controladas por computadores, angulações e aparas que se destinam a evitar ofuscações e efeitos contraluz, dentre outros.
Há ruas em que não se pode fazer conversão à esquerda ou à direita (e, por favor, que não se veja nesses termos, relativos a normas viárias que falam em impedimentos de entrar à “direita” ou à “esquerda” a tal “politização” mencionada pelo magistrado do TJRJ). Em inúmeras outras situações, em espaços públicos e ambientes privados, frequentemente defrontamo-nos com avisos de que “é proibida a circulação de pessoas”, e todos reagimos com civilidade e serenamente. Ninguém vê “ditadura” alguma em nada disso.
Penso que o desembargador, talvez querendo acertar, foi infeliz em sua decisão, e está sendo injusto, pois está claro que confundiu matéria própria de lei com conteúdo de mera norma técnica. Ninguém se opôs, ou colocou em questão, o papel da União de estabelecer normas gerais. Nem isso é afrontado pelo referido decreto municipal do Rio de Janeiro, que em boa hora exerceu a competência que incumbe aos poderes executivos, tanto o estadual quanto o municipal, de editar regulamentos que possibilitem a aplicação de leis gerais em nível local. É disso que se trata. Mas o juiz, a meu ver, desvia o foco.
A peça judicial com origem no TJRJ é concluída com uma inacreditável citação do conhecido poema de Bertolt Brecht, cujos versos iniciais dizem que “Primeiro levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não era negro/Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/Eu também não era operário (…)”.
É Brecht completamente fora de contexto. O apelo à liberdade e à não indiferença que marcam o poema do dramaturgo alemão nada têm a ver com o despropósito dos argumentos alinhavados na decisão do juiz injusto.
Lamentando profundamente a infeliz decisão emanada do TJRJ, e na expectativa de que, tão breve quanto possível, a decisão liminar seja revogada, valho-me do próprio Bertolt Brecht para expressar meu espanto com essa decisão. Brecht indagava, ao seu tempo, por motivos assemelhados aos que nos tocam no presente: “que tempos são estes, em que temos de defender o obvio?” E, também, muito a propósito, alertando-nos de que “aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso”.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.