A compaixão como princípio

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

Ela é atestada em todos os povos e culturas: a capacidade de colocar-se no lugar do outro, compartilhar de sua dor e assim aliviá-la.

Através do Covdi-19 a Mãe Terra está movendo um contra-ataque à humanidade como reação ao avassalador ataque que vem sofrendo já há séculos. Ela simplesmente está se defendendo. O Covif-19 é igualmente um sinal e uma advertência que nos envia: não podemos fazer-lhe uma guerra como temos feito até agora, pois está destruindo as bases biológicas que a sustenta e sustenta também todas as demais formas de vida, especialmente, a humana.

Temos que mudar, caso contrário nos poderá enviar vírus ainda mais letais, quem sabe, até um indefensável contra o qual nada poderíamos. Então estaríamos seriamente ameaçados como espécie. Não é sem razão que o Covid-19 atingiu apenas os seres humanos, como aviso e lição. Já levou milhões à morte, deixando uma via-sacra de sofrimentos a outros milhões e uma ameaça letal que pode atingir a todos os demais.

Os números frios escondem um mar de padecimentos por vidas perdidas, por amores destroçados e por projetos destruídos. Não há lenços suficientes para enxugar as lágrimas dos familiares queridos ou dos amigos mortos, dos quais não puderam dizer um último adeus, nem sequer celebrar o luto e acompanhá-los à sepultura.

Como se não bastasse o sofrimento produzido para grande parte da humanidade pelo sistema capitalista e neoliberal imperante, ferozmente competitivo e nada cooperativo. Ele permiitu que 1% dos mais ricos possuísse pessoalmente 45% de toda a riqueza global enquanto os 50% mais pobres ficasse com menos de 1%, segundo relatório recente do Crédit Suisse. Ouçamos aquele que mais entende de capitalismo no século XXI, o francês Thomas Piketty referindo-se ao caso brasileiro. Aqui, afirma, verifica-se a maior concentração de renda do mundo; os bilionários brasileiros, entre o 1% dos mais ricos, ficam à frente dos bilionários do petróleo do Oriente Médio. Não admira os milhões de marginalizados e excluídos que esta nefasta desigualdade produz.

Novamente os números frios não podem esconder a fome, a miséria, a alta mortandade de crianças e devastação da natureza, especialmente na Amazônia e em outros biomas, implicada nesse processo de pilhagem de riquezas naturais.

Mas nesse momento, pela intrusão do coronavírus, a humanidade está crucificada e mal sabemos como baixá-la da cruz. É então que devemos ativar em todos nós uma das mais sagradas virtudes do ser humano: a compaixão. Ela é atestada em todos os povos e culturas: a capacidade de colocar-se no lugar do outro, compartilhar de sua dor e assim aliviá-la.

O maior teólogo cristão, Tomás de Aquino, assinala na sua Suma Teológica que a compaixão é a mais elevada de todas as virtudes, pois não somente abre a pessoa para a outra pessoa senão que a abre para a mais fraca e necessitada de ajuda. Neste sentido, concluía, é uma característica essencial de Deus.

Referimo-nos ao princípio compaixão e não simplesmente à compaixão. O princípio, em sentido mais profundo (filosófico) significa uma disposição originária e essencial, geradora de uma atitude permanente que se traduz em atos, mas nunca se esgota neles. Sempre está aberta a novos atos. Em outras palavras, o princípio tem a ver com algo pertencente à natureza humana. Porque é assim podia dizer o economista e filósofo inglês Adam Smith (1723-1790) em seu livro sobre a Teoria dos Sentimentos Éticos: “até a pessoa mais brutal e anticomunitária não está imune à força da compaixão”.

A reflexão moderna nos ajudou a resgatar o princípio compaixão. Foi ficando cada vez mais claro para o pensamento crítico que o ser humano não se estrutura somente sobre a razão intelectual-analítica, necessária para darmos conta da complexidade de nosso mundo. Vigora em nós, algo mais profundo e ancestral, surgido há mais de 200 milhões de anos quando irromperam na evolução os mamíferos: a razão sensível e cordial. Ela significa a capacidade de sentir, de afetar e ser afetado, de ter empatia, sensibilidade e amor.

Somos seres racionais, mas essencialmente sensíveis. Na verdade, construímos o mundo a partir de laços afetivos. Tais laços fazem com que as pessoas e as situações sejam preciosas e portadoras de valor. Não apenas habitamos o mundo pelo trabalho senão pela empatia, o cuidado e a amorosidade. Este é o lugar da compaixão.

Quem tratou dessa virtude melhor que nós ocidentais foi o budismo. A compaixão (Karuná) se articula em dois movimentos distintos e complementares: o desapego total e o cuidado. Desapego significa deixar o outro ser, não enquadrá-lo, respeitar sua vida e destino. Cuidado por ele, implica nunca deixá-lo só em seu sofrimento, envolver-se afetivamente com ele para que possa viver melhor carregando mais levemente sua dor.

O terrível do sofrimento não é tanto o sofrimento em si, mas a solidão no sofrimento. A compaixão consiste em não deixar o outro só. É estar junto com ele, sentir seus padecimentos e angústias, dizer-lhe palavras de consolo e dar-lhe um abraço carregado de afeto.

Hoje os que sofrem, choram e se desalentam com o destino trágico da vida, precisam desta compaixão e desta profunda sensibilidade humanitária que nasce da razão sensível e cordial. As palavras ditas que parecem corriqueiras ganham outro sonido, reboam dentro do coração e trazem serenidade e suscitam um pequeno raio de esperança de que tudo vai passar. A partida foi trágica, mas a chega em Deus é bem-aventurada.

A tradição judaico-cristã testemunha a grandeza da compaixão. Em hebraico é “rahamim” que significa “ter entranhas”, sentir o outro com profundo sentimento. Mais que sentir é identificar-se com o outro. O Deus de Jesus e Jesus mesmo mostram-se especialmente misericordiosos como se revela nas parábolas do bom samaritano (Lc 10,30-37) e do filho pródigo (Lc 15,11-32).Curiosamente, neste parábola, a virada se dá não no filho pródigo que volta mas no pai que se volta para o filho pródigo.

Mais no que nunca antes, face a devastação feita pelo Covid-19 em toda a população, sem exceção, faz-se urgente viver a compaixão com os sofredores como o nosso lado mais humano, sensível e solidário.

*Leonardo Boff é ecoteólgo e filósofo. Autor com Werner Müller do livro Princípio compaixão&cuidado (Vozes).

 

 

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Érico Andrade Ronaldo Tadeu de Souza Slavoj Žižek Elias Jabbour Tales Ab'Sáber João Lanari Bo Eleutério F. S. Prado Luiz Eduardo Soares Antonino Infranca Flávio R. Kothe Paulo Nogueira Batista Jr Marjorie C. Marona Annateresa Fabris Bruno Machado Everaldo de Oliveira Andrade Walnice Nogueira Galvão João Paulo Ayub Fonseca Chico Alencar Flávio Aguiar Igor Felippe Santos Henry Burnett Luiz Marques José Micaelson Lacerda Morais Afrânio Catani Julian Rodrigues Daniel Costa Dênis de Moraes Sandra Bitencourt André Márcio Neves Soares Jean Marc Von Der Weid Paulo Capel Narvai Mário Maestri Caio Bugiato Denilson Cordeiro Paulo Sérgio Pinheiro João Adolfo Hansen Jean Pierre Chauvin Marcelo Módolo Alexandre de Freitas Barbosa Ronald León Núñez Francisco Fernandes Ladeira Celso Frederico Mariarosaria Fabris José Raimundo Trindade Celso Favaretto Liszt Vieira Luiz Werneck Vianna Luiz Renato Martins Chico Whitaker Fábio Konder Comparato Alexandre Aragão de Albuquerque Eduardo Borges Jorge Luiz Souto Maior Manuel Domingos Neto Fernão Pessoa Ramos Carla Teixeira Benicio Viero Schmidt Leonardo Avritzer Lincoln Secco Leonardo Boff Ricardo Antunes José Geraldo Couto Andrés del Río Rodrigo de Faria Michael Löwy Eleonora Albano Ronald Rocha Eliziário Andrade Tadeu Valadares Henri Acselrad João Sette Whitaker Ferreira Luiz Roberto Alves Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Feres Júnior Priscila Figueiredo Bento Prado Jr. Matheus Silveira de Souza Kátia Gerab Baggio Francisco Pereira de Farias Paulo Martins Vladimir Safatle João Carlos Loebens Ricardo Fabbrini Rubens Pinto Lyra Ricardo Abramovay Salem Nasser Thomas Piketty Ari Marcelo Solon Yuri Martins-Fontes Marilena Chauí Valerio Arcary Dennis Oliveira Airton Paschoa Alexandre de Lima Castro Tranjan Vanderlei Tenório Antônio Sales Rios Neto Milton Pinheiro Leda Maria Paulani Ricardo Musse Leonardo Sacramento Berenice Bento José Dirceu Marilia Pacheco Fiorillo Alysson Leandro Mascaro Juarez Guimarães Osvaldo Coggiola Claudio Katz Antonio Martins André Singer Plínio de Arruda Sampaio Jr. Gilberto Maringoni Marcos Aurélio da Silva Eugênio Bucci Otaviano Helene Gilberto Lopes Andrew Korybko Maria Rita Kehl Marcos Silva Luciano Nascimento Remy José Fontana João Carlos Salles Gerson Almeida Sergio Amadeu da Silveira Jorge Branco Marcelo Guimarães Lima Bernardo Ricupero Manchetômetro Ladislau Dowbor Daniel Afonso da Silva Eugênio Trivinho Atilio A. Boron José Luís Fiori Carlos Tautz Lorenzo Vitral Luiz Bernardo Pericás Bruno Fabricio Alcebino da Silva Rafael R. Ioris Marcus Ianoni José Costa Júnior Renato Dagnino Anselm Jappe Luis Felipe Miguel Luís Fernando Vitagliano Michael Roberts Samuel Kilsztajn Lucas Fiaschetti Estevez Francisco de Oliveira Barros Júnior Boaventura de Sousa Santos Vinício Carrilho Martinez Fernando Nogueira da Costa Luiz Carlos Bresser-Pereira José Machado Moita Neto Armando Boito Daniel Brazil Michel Goulart da Silva Heraldo Campos Gabriel Cohn Paulo Fernandes Silveira Valerio Arcary Tarso Genro

NOVAS PUBLICAÇÕES