Por JEAN-JACQUES MARIE*
Comentário sobre o livro Iejov contre Stálin
O livro de Grover Furr, Iejov contre Stálin, modestamente subtitulado La vérité sur les répressions de masse en URSS, baptisées “la Grande terreur” [A verdade sobre as repressões em massa na URSS, batizadas de O Grande Terror], acaba de ser publicado em francês. Furr diz bobagens. Refutar tais bobagens teria muito pouco sentido ainda mais porque Josef Stálin o fez magistralmente sobre a questão central da repressão, como veremos a seguir. Furr inventa um Stálin defensor fanático da democracia, vexado por seus secretários regionais
Engajado numa introjeção bem pouco materialista do cérebro de Stálin, Furr pretende que, para este último, “o Partido devia dirigir as organizações, mas não os órgãos legislativos ou executivos do Estado. Uma vez o Partido privado do controle direto da sociedade, Stálin pensava que seu papel deveria se limitar à agitação e à propaganda” (p. 19).
Infelizmente, na reunião plenária do comitê central, de junho de 1936, “os delegados tinham aprovado por unanimidade o projeto de Constituição. Mas nenhum deles tomou posição em seu favor. A omissão de sequer aquiescer oralmente a uma proposta de Stálin indicava certamente uma oposição latente” (p. 22).
Ele repete: “Muitos elementos [misteriosamente suprimidos por Furr] sugerem que a direção central [Stálin] queria […] continuar a realizar eleições abertas e com voto secreto sobre a nova constituição” (p. 59). Ele insiste: “Stálin e seus próximos no governo soviético central e no Partido lutaram por tais eleições, mas não conseguiram levar o comitê central a aprová-las” (p. 61). Resultado trágico: “O pleno do comitê central de outubro de 1937 assistiu à anulação definitiva do projeto de eleições abertas nos sovietes […]. Isso significou uma grave derrota para Stálin e seus partidários no Politburo.” (p. 79).
Curioso! Stálin não pôde impor ao comitê central a democracia a que aspirava tão profundamente, mas pôde, no pleno de junho de 1937 desse órgão, supostamente dirigente do partido, excluir 31 membros, prendê-los e depois fuzilá-los nos meses seguintes! Quando o pleno se reunir em janeiro de 1938, contará com apenas 28 dos 71 membros eleitos em janeiro de 1934. Os pretensos vencedores de Stálin foram liquidados. Certas vitórias têm um sabor curioso de derrota!
Segundo Furr, enfim, Iejov “efetuou uma repressão em massa de inocentes e enganou Stálin assim como os dirigentes soviéticos, levando-os a crer numa batalha contra a subversão” (p. 132) a fim de suscitar o descontentamento da população. Ele repete isso várias vezes, como se a repetição de uma fabulação devesse, por uma misteriosa alquimia, estranha ao materialismo histórico, transformá-la em verdade. A repressão desencadeada em julho de 1937 ceifou perto de 750.000 homens, mulheres e crianças até o fim de 1938.
Furr pretende que: “As próprias confissões de Iejov provam que Stálin e os dirigentes soviéticos não eram responsáveis pelas execuções em massa” (p. 107). Tal é o último serviço que Iejov teve de prestar a Stálin. Furr acrescenta: “Assim que Iejov se demitiu, para ser substituído por Béria, ordens foram dadas para cessar imediatamente todas as repressões, para revogar todas as ordens operacionais da NKVD” (p. 100). Stálin o refuta. Em março de 1939, no XVIII congresso do partido comunista, ele declara: “Nós não teremos mais de empregar o método da depuração em massa” (registro estenográfico do XVIII congresso, p. 28).
O sentido dessa declaração é claro: Stálin assume a responsabilidade pela repressão desencadeada em 1937 e a justifica, qualificando-a de “depuração”, quer dizer, de eliminação de elementos declarados nocivos ou hostis; ele a mantém pelo ano em curso de 1938, mas reduzindo sua amplitude: de “em massa”, ela se tornará mais direcionada ou mais seletiva, mas não desaparecerá – contrariamente aos dizeres, uma vez mais, mentirosos de Furr. Partidário declarado de Stálin, Furr certamente leu esse discurso, mas, praticando em tal grau a arte da camuflagem, ele o dissimula de seu leitor.
Furr, enfim, descobriu que Iejov, preso em 10 de abril de 1939, tinha sido um agente alemão… Descoberta irrelevante. Iejov, conhecendo melhor do que ninguém os métodos utilizados pela NKVD para fazer os acusados confessar, e certamente pouco desejoso de suportá-los até arrebentar, “confessou” rapidamente que ele trabalhava para os alemães desde 1932. Furr julga suas confissões perfeitamente sinceras. Por acaso, os investigadores deixaram uma prova (?) de que Iejov teria toda liberdade de confirmar ou de refutar o que lhe era atribuído. Quando o investigador Bogdan Koboulov lhe recorda, em 11 de maio de 1939, que ele espancou sua mulher ao descobrir que ela se deitava com o escritor Mikhail Cholokhov, Iejov nega.
Koboulov lhe lê então um testemunho que confirma o fato. Furr compreende a mensagem e jubila: “Essas duas passagens comprovam que […] a investigação era autêntica” (p. 184). Iejov podia então negar o que quisesse! Tudo o que o investigador lhe ditou e que ele finalmente assinou era, pois, verdade. Mas, que importa afinal que Iejov, descontente por ter sido corneado, tenha esbofeteado e espancado sua mulher e receba o direito de negar isso para melhor apresentar suas confissões como voluntárias, ante a acusação de ser um agente alemão desde 1932, de ter enviado hordas de inocentes para a morte, de ter preparado o assassinato de Stálin e de Molotov e um golpe violento para a data 7 de novembro de 1938?
A qualidade própria de Furr para o cômico, sempre involuntário, vai ao grotesco. Recordemos as contorções que ele atingia em Khrouchtchev a Menti [Khruschióv Mentiu], quando apontava sem rir “a existência de uma série de complôs antigovernamentais direitistas-trotskistas”, e depois acrescentava “Existem muitas provas circunstanciais para sugerir [sic! provas que se contentam em sugerir evidentemente nada provam] que o próprio Khruschióv bem poderia [duas vezes sic!] ter participado de tal conspiração direitista-trotskista […]. A hipótese [três vezes sic!] de que Khruschióv pode [quatro vezes sic!] ter sido um membro de um ramo secreto [que, secreto, não deixou então qualquer traço!] da muito ramificada ‘conspiração trotskista-direitista’ é reforçada pelo fato de que ele certamente estava [cinco vezes sic!] implicado num certo número de outros complôs”, ignorados por todos, mas dos quais Furr estabelece uma lista que consiste sobretudo em acusações de dissimulação e destruição de documentos, lista recheada de fórmulas bombásticas do tipo “Khruschióv devia [?] dirigir uma outra conspiração […]”,seguida pela ladainha “Pode-se supor que”, “sem dúvida”, “provavelmente”, “parece provável que”, sem falar da fórmula magnífica: “Um grande número de pesquisadores e de funcionários, incluindo certamente os funcionários do partido fiéis a Khruschióv, mas ainda desconhecidos de nós [sic!] deve [duas vezes sic!] estar implicado”. (Khrouchtchev a Menti [Khruschióv Mentiu], pp 34-5 e pp. 220-1).
Esses “desconhecidos que devem estar implicados” representam… sem dúvida um dos ápices da pesquisa histórica. Em suma, Furr diz a seus leitores: não sei de nada, mas tenho certeza.
Em resumo, para ele, parece assim sem dúvida talvez provavelmente provável que Khruschióv tenha sido membro de um grande número de complôs, mal, pouco ou nada conhecidos, mas detectados por Furr e graças aos quais o senhor K. tornou-se primeiro secretário do Partido Comunista da União Soviética. Tal é o método do prestidigitador, mas com uma ligeira diferença: o prestidigitador acerta seus passes, Furr erra todos.
Assim, em seu Iejov Contre Staline [Iejov Contra Stálin], Furr esquece de colocar uma questão embaraçosa (entre tantas outras). Se toda a ação de Iejov, enquanto agente alemão, tinha visado a preparar a população soviética, para a sublevar contra Stálin e seu governo, por que não o fizeram confessar esse plano sinistro – e assim aliviar os dirigentes soviéticos e Stálin de suas consequências dolorosas – num processo público, assim como Stálin o fez para Iagoda, seu predecessor? Ora, Iejov foi condenado à morte em 4 de fevereiro de 1940 e fuzilado imediatamente.
A resposta é de uma simplicidade infantil, ainda que – Furr poderia comentar – sem dúvida seja talvez provavelmente provável que ela não figure em nenhum dos documentos do caso Iejov. Em 23 de junho de 1939, Hitler e Stálin tinham firmado um pacto de não agressão por dez anos e um protocolo secreto de partilha da Polônia. Como organizar nesse período o processo público de um pretenso “agente alemão” que, ademais, assistiu Stálin entregar à Gestapo, por gentil colaboração prática, dezenas de comunistas alemães refugiados na URSS, entre os quais Margarete Buber-Neumann, mulher de Heinz Neumann, antigo dirigente do PC alemão e redator chefe de seu diário Die Rote Fahne [A Bandeira Vermelha]?
Este último, por um milagre tipicamente stalinista, escapou dessa manifestação de tocante amizade germano-soviética. Sobre esta, Furr foi incapaz de dizer uma palavra sequer – apesar das múltiplas contorções de seu escasso pensar, para atribuí-la seja a Trótski, seja a Iejov, então na prisão. Stálin mandou prender e fuzilar Neumann em 1937, poucos meses depois. O matador Iejov nada teve a ver com isso. Com efeito, já em 2 de maio de 1934 – quando Iagoda estava à frente da NKVD e ainda ficaria por dois bons anos – Stálin declarara a Dimitrov: “Neumann […] é um político degenerado” (Journal de Dimitrov [Diário de Dimitrov], p. 123).
Sua sorte então já estava selada. Só a data restava em suspenso. O melhor a fazer então era abater discretamente Iejov, longe do barulho da rua, num daqueles discretos porões que ele conhecia tão bem…
*Jean-Jacques Marie é o diretor dos Cahiers du Mouvement Ouvrier. Autor, entre outros livros, de Staline (Fayard).
Tradução: Rafael Padial; revisão técnica de Luiz Renato Martins.
Referência
Grover Furr. Iejov Contre Staline, la vérité sur les répressions de masse en URSS, baptisées “la grande terreur”. Paris, Éditions Delga, 2018.