Por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS*
Por que razão se perde a sensatez na política
Uma correspondente perguntava-me recentemente se eu, enquanto sociólogo, tinha uma explicação para a insensatez dos políticos. A pergunta intrigou-me, uma vez que nada distingue os políticos que os faça, em princípio, mais ou menos sensatos que os cidadãos comuns. Aliás, é hoje reconhecido internacionalmente que a nossa classe política foi bastante sensata durante a pandemia, inspirando os portugueses a um modelo de comportamento que é considerado exemplar e com o SNS a responder às exigências mais eficazmente que muitos países mais ricos que Portugal.
A pergunta referia-se, obviamente, à crise política desencadeada pela reprovação do orçamento. As razões que os políticos envolvidos invocaram para a justificar não convenceram a esmagadora maioria dos cidadãos e o seu comportamento pareceu insensato. É que a cidadania estava sobretudo preocupada com as incertezas que a pandemia tinha inscrito nas suas vidas. Sendo elas de sobra, era insensato adicionar outras e, para mais, de maneira que parecia artificial.
Os cidadãos e as cidadãs tinham a sensação de estar a entrar num longo período de pandemia intermitente com alternância entre momentos de crise aguda e de ameaça crônica. Desde então, as condições da pandemia vieram dar mais razões a esse sentimento. É de prever que será esse sentimento que comandará o seu comportamento nas próximas eleições. Com excepção de franjas extremistas, os portugueses quererão garantir a estabilidade política porque já lhes basta a instabilidade pessoal, interpessoal e social que temem vir a caracterizar a sua vida nos próximos tempos.
Por que razão se perdeu agora a sensatez política que nos acompanhou nas primeiras fases da pandemia? Em 1935, o antropólogo Gregory Bateson cunhou o termo cismogênese para designar um padrão de comportamento que consiste na tendência para indivíduos ou grupos se definirem por contraposição em relação a outros e para aumentarem as suas diferenças em resultado do diálogo, da interação e da confrontação. Diferenças que, antes da interação, pareceriam menores ou atenuáveis, tornam-se maiores e mais intransigentes à medida que decorre a interação. A investigação fora realizada na Papua-Nova Guiné. Tem isso algo a ver conosco? As discussões sobre o orçamento fizeram-me recordar Bateson.
Quando as conversações entre o PS, o BE e o PCP se iniciaram havia a sensação generalizada de que as diferenças entre os dois lados (centro-esquerda e esquerda) eram transponíveis. No entanto, à medida que o diálogo avançou as diferenças foram-se polarizando, a tal ponto que se tornaram inconciliáveis. Deu mesmo a sensação de que o que era conciliável orçamentalmente não o era politicamente. Por exemplo, à medida que o diálogo/confrontação avançou, foi-se tornando claro que as diferenças que antes pareciam ser contradições no interior das mesmas classes ou estratos sociais (intraclassistas) foram-se metamorfoseando em contradições entre classes ou estratos sociais opostos com interesses potencialmente inconciliáveis (interclassistas). O discurso contemporizador e ameno das diferenças intraclassistas foi dando lugar ao discurso polarizador e cáustico das diferenças interclassistas.
O desencanto da cidadania afeta a esta “família”(?) política e a consequente sensação de insensatez decorreu de uma fatal descoincidência entre partidos e eleitores. Enquanto os partidos revelavam contradições interclassistas, os cidadãos e as cidadãs apenas viam contradições intraclassistas. Enquanto os políticos viam as contradições a partir das suas ideologias e cálculos políticos, os cidadãos e as cidadãs viam-nas a partir da pandemia e das incertezas abissais que ela lhes causava. A insensatez e a descoincidência assumiram particular intensidade naqueles sectores que temiam que as eleições antecipadas pudessem vir a fortalecer a extrema-direita; se isso viesse a ocorrer, o discurso (e as ações) do ódio aumentariam e os seus alvos privilegiados seriam as bandeiras e os políticos de esquerda no seu conjunto.
Mas a insensatez não foi um monopólio das forças de esquerda. As forças de direita não ficaram atrás. Num momento em que era já previsível a reprovação do orçamento e que as esquerdas lhes davam a oportunidade para se fortalecerem nas próximas eleições, envolveram-se em desgastantes disputas internas que só podem ter efeitos contraproducentes. Também aqui se verificou a cismogênese entre candidatos à liderança: diferenças de personalidade e “entre amigos” transformaram-se gradualmente em diferenças políticas do tipo entre água e azeite. E também ocorreu a descoincidência entre as lideranças políticas e os seus eleitores.
Enquanto aquelas faziam cálculos políticos (alguns bem medíocres), estes, tal como os eleitores de esquerda, temiam sobretudo as incertezas da pandemia e a instabilidade política que as poderia agravar. E se as recentes eleições diretas no PSD revelam algo importante é precisamente o desejo de estabilidade dos seus militantes de base, um desejo não partilhado por muitos dos seus dirigentes. E se houvesse diretas no PS, no BE ou no PCP?
A cismogênese não é uma fatalidade, nem o que é válido para os rapazes e raparigas da Papua-Nova Guiné é necessariamente válido para os políticos portugueses. Mas é como se fosse, pelo menos na opinião dos comentadores políticos. É quase unânime a ideia de que a geringonça acabou, dadas as posições inconciliáveis. Entre os comentadores não parece existir a cismogênese. Pelo contrário, se alguma dinâmica existe entre eles, seria adequado designá-la por conformogênese: por mais que divirjam, as suas opiniões acabam sempre por concluir o mesmo. Mas, pelo contrário, parece igualmente existir a descoincidência, neste caso, entre as suas elucubrações e os que as lêem ou ouvem.
Se em tempos de pandemia os cidadãos estão sobretudo angustiados com as incertezas do futuro próximo, e se todos aspiram a alguma estabilidade, pelo menos até que haja condições para tolerar ou mesmo celebrar instabilidades menos existenciais, está longe da verdade que todos pensem que algo como a geringonça não é possível ou desejável. As recentes sondagens mostram, aliás, o contrário. Os obstáculos são bem menores do que se imagina. Basta comparar com a situação no país vizinho onde a solução política em vigor (o acordo entre o PSOE e Unidas-Podemos) foi inspirada na gerigonça portuguesa.
Trata-se, no caso espanhol, de duas formações políticas com identidades mais polarizadas do que as que dividem as forças políticas correspondentes em Portugal. Basta recordar que o PSOE defende a monarquia, enquanto o UP é republicano. Mas porque a questão do regime não faz parte do acordo limitado em que acordaram, a coligação perdura e acaba de conseguir o que em Portugal até agora não foi conseguido: o acordo para anular as leis laborais que foram impostas pela troika. Será porque a Espanha é a quarta economia da UE e a dívida externa, apesar de grande, é menor que a portuguesa? Será porque em Espanha os dois partidos partilham a governação e não apenas as decisões parlamentares? Será porque em Espanha o PSOE aprendeu de vez que articulações com a direita podem ser mais fáceis do que com a esquerda, mas dão sempre mau resultado? Isto tudo leva a crer que não há obstáculos intransponíveis se a insensatez for superável.
Se houver um compromisso escrito pré-eleitoral entre forças políticas afins e com peso eleitoral significativo, os cidadãos saberão que, votando numa delas, estará garantida a estabilidade política, se o conjunto tiver a maioria dos votos. Poderão assim votar com tranquilidade segundo as suas convicções políticas. Não havendo tal acordo, é previsível que a preocupação com a estabilidade política incentive o voto útil que favorece sempre os partidos maiores. Só assim não sucederá se os diferentes partidos envolvidos derem provas convincentes e assumirem compromissos reveladores de que o entendimento pós-eleitoral prevalecerá.
*Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de O fim do império cognitivo (Autêntica).