O controle militar da Ucrânia

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Por JOSÉ LUÍS FIORI*

A crise energética, a escolha europeia e a “reviravolta russa”

“Se Hans Morgenthau estiver com a razão [a causa da Guerra da Geórgia, de 2008] é um segredo de polichinelo: a Rússia foi a grande perdedora da década de 1990 e será a grande questionadora da nova ordem mundial, até que lhe devolvam – ou ela retome – todo ou parte do seu velho território. Por isso a Guerra da Geórgia não deve ser considerada uma “guerra antiga”, pelo contrário, ela é o anúncio do futuro. (José Luís Fiori, “Guerra e Paz”. In: jornal Valor Econômico, em 28 de agosto de 2008).

“With the US distracted and Europe lacking both military clout and diplomatic unity, Putin may feel now is the best time Russia will ever have to attack Ukraine” (Financial Times, FT Weekend, January, 15, 2022).

Em apenas um ano, o mercado mundial de energia enfrentou duas grandes crises diametralmente opostas: a primeira, no início de 2020, no momento em que se generalizou a pandemia do coronavírus; e a segunda, ainda em pleno curso. Tudo começou com uma queda abrupta da demanda mundial e dos preços internacionais, provocada pela interrupção instantânea e universal da atividade econômica e pelo aumento exponencial do desemprego, começando pela China e atingindo, em sequência, a Europa e os Estados Unidos.

O consumo das empresas e das famílias caiu da noite para o dia, e os tanques e reservatórios de petróleo e gás ao redor do mundo ficaram cheios e ociosos; os próprios navios petroleiros ficaram à deriva sem ter onde desembarcar, provocando uma queda dos preços e uma paralização quase completa da produção de óleo. Como consequência, a economia mundial regrediu no ano de 2020 e a indústria energética sofreu um baque de rapidez e proporções desconhecidas. Menos de um ano depois, o cenário já havia se invertido radicalmente, depois da invenção e difusão das vacinas e depois da retomada da atividade econômica.

Com a desmontagem anterior das estruturas logísticas e a interrupção dos fluxos globais, a oferta de energia não conseguiu responder à retomada econômica, e um ano depois da primeira crise, os tanques e reservatórios de petróleo e gás natural encontravam-se vazios, e a própria oferta mundial de carvão foi interrompida por acidentes naturais e mudanças climáticas que se somaram a erros de planejamento estratégico, sobretudo no caso da China e dos Estados Unidos. Como consequência, durante o ano de 2021, os preços da energia dobraram ou triplicaram, dependendo de cada região; o suprimento de energia elétrica foi interrompido em vários países, e multiplicou-se o fechamento de empresas e as revoltas populares contra a inflação dos alimentos, do combustível e dos serviços públicos em geral.

Algumas causas dessa crise energética foram conjunturais e deverão ser superadas no transcurso de 2022, como no caso das condições climáticas extremamente adversas deste último ano. Mas outras causas se manterão e devem forçar mudanças dentro da própria matriz energética dos países mais afetados pela crise, redirecionando investimentos e apressando algumas escolhas dramáticas, como no caso mais urgente do abandono do carvão, sobretudo no caso do continente europeu. A Europa é fortemente dependente das importações de energia, sobretudo de petróleo e de gás, e é também o continente que vem liderando a luta mundial contra o uso do carvão e de todas as fontes de energia fósseis. Nesse contexto, a recente decisão da União Europeia de considerar o “gás natural” e a “energia nuclear” como “fontes de energia limpas” já deve ser vista como uma consequência imediata da crise, mas que deverá afetar a vida dos europeus, no curto, médio e longo prazo.

Na verdade, a Europa está decidindo e está sendo coagida ao mesmo tempo a transformar o gás natural na sua principal fonte de “energia limpa”, e esta decisão deve se manter e prolongar durante todo o período da “transição energética” europeia, programada para alcançar a meta de emissão zero de carbono em 2050. E já agora o mais provável é que, mesmo depois de alcançada esta meta, o gás natural siga sendo a principal componente da matriz energética europeia até o final do século, sobretudo devido ao veto alemão ao uso da energia atômica.

O gás natural apareceu junto com o petróleo no século XIX, tanto nos EUA como na Rússia, mas só começou a ser utilizado de forma mais sistemática pelos EUA nas décadas de 20 e 30 do século passado, quando os americanos possuíam apenas 10 gasodutos. Tal situação, entretanto, mudou radicalmente depois da “crise do petróleo” dos anos 60 e 70, quando o gás natural se “autonomizou” e deu um salto como fonte energética, com a multiplicação acelerada dos gasodutos nos EUA. Hoje há cerca de um milhão de quilômetros de gasodutos ao redor do mundo, 25 vezes a circunferência da Terra, e o gás natural já representa 24% do consumo mundial de energia primária, um pouco abaixo apenas do carvão, com 27%, e do petróleo, com 34%. Por isto, a nova centralidade energética do gás natural não deve se restringir à Europa, mas só a Europa tomou a decisão de privilegiar o gás na montagem de sua matriz energética, no presente e no futuro.

Esta escolha europeia deverá produzir consequências geoeconômicas imediatas, bastando ter-se em conta que um terço das reservas mundiais de gás natural se encontram nos territórios da Rússia e do Irã, que um quarto do gás consumido pela China vem do Cazaquistão, e que hoje as exportações do gás russo já são responsáveis por 40% do mercado europeu, onde os russos concorrem diretamente com o gás natural liquefeito, ou shale gas norte-americano.

Por outro lado, esta simples distribuição geográfica já fala por si só da importância geopolítica envolvida em todas as disputas comerciais e territoriais envolvendo a distribuição mundial do gás natural. Basta lembrar que as “crises do gás” de 2006, 2009 e 2014, já estiveram diretamente associadas com a interrupção dos gasodutos russos que atravessam o território ucraniano na direção da Europa. E, portanto, também, com a disputa entre Rússia, Estados Unidos e as forças da OTAN, em torno do controle militar do território da Ucrânia. Uma disputa que inclui os demais países da chamada “Europa Central” e que se prolonga desde o fim da Guerra Fria, mas que neste momento está concentrada queda de braço entre Rússia e OTAN, em torno à incorporação ou não da Ucrânia e da Geórgia como países membros da organização militar do Atlântico Norte liderada pelos Estados Unidos.

Em 1991, depois do fim da Guerra Fria, não houve a assinatura de um “acordo de paz” que definisse de forma explícita as regras da nova ordem mundial, imposta pelos vitoriosos, como havia acontecido no fim da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais. De fato, o território soviético não foi bombardeado e seu exército não foi destruído, mas durante toda a década de 90, os EUA e a OTAN promoveram ativamente a cooptação dos países do antigo Pacto de Varsóvia, a o desmembramento do próprio território russo, consolidado desde o início do século XIX, pela Dinastia dos Romanov. Começando pela Letônia, Estônia e Lituânia, e seguindo pela Ucrânia, a Bielorrússia, os Bálcãs, o Cáucaso e os países da Ásia Central. E depois disto, os EUA e a OTAN participaram das Guerras da Bósnia, da Iugoslávia e do Kosovo, e iniciaram de imediato a instalação de armamento balístico nos países da Europa Central que foram sendo incorporados à OTAN.

Somando e subtraindo, a Rússia – e não apenas a URSS –, perdeu em apenas uma década, cerca de 5.000.000 km2 do seu território imperial, e cerca de 140 milhões de habitantes do seu território soviético. Podendo se compreender assim como o desaparecimento da União Soviética transformou a Rússia numa potência derrotada e humilhada que se colocou como objetivo central, sobretudo depois do ano 2001, reconquistar seu espaço perdido questionando o novo “equilíbrio estratégico” imposto pelos EUA e pela OTAN, através de sua expansão pura e simples na direção do leste e da fronteira ocidental da Rússia.

A mesma fronteira que já havia sido atacada e invadida pelos Cavaleiros Teutônicos do Papa, no início do século XVIII; pelas tropas polonesas e católica do Rei Sigismundo II, no início do século XVII; pelas tropas suecas e luteranas do Rei Carlos XII, no início do século XVIII; pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte, no início do século XIX; e pelas tropas da Alemanha Nazista e de sua Operação Barbarossa, iniciada em 22 de junho de 1941, envolvendo 3,5 milhões de soldados, responsáveis pela morte de cerca de 20 milhões de russos, muitos deles trucidados pura e simplesmente, com vistas a apropriação dos recursos naturais da Ucrânia e do Cáucaso.

Foi a partir desta história de invasões e humilhações, e com o genocídio alemão ainda na sua memória, que a Rússia resolveu dizer um basta, em 2008, na Guerra da Geórgia que interrompeu por alguns anos o desejo da OTAN de colocar um pé na região do Cáucaso, onde se concentra uma boa parte das reservas energéticas da Rússia. E é também dentro deste contexto que deve ser lida a disputa em torno da Ucrânia e seu entrelaçamento com a atual crise energética europeia. Sobretudo neste momento em que a oferta europeia do gás liquefeito norte-americano vem sendo afetada pelo aumento da demanda interna do próprio mercado americano e pela concorrência dos mercados asiáticos, que estão pagando até quatro vezes mais do que seu valor no mercado europeu.

Devendo-se somar as agruras europeia neste inverno de 2022, a disputa sem fim, primeiro em torno à construção, e agora em torno à liberação do Gasoduto do Báltico, o Nord Stream 2, construído entre Vyborg na Rússia, e Greifswald na Alemanha, com capacidade imediata de entregar aos alemães e europeus mais 55 milhões de metros cúbicos anuais do gás natural russo que já se transformou numa peça chave da escalada diplomática e bélica das últimas semanas em torno ao controle militar da Ucrânia.

O que é certo é que neste momento, em plena crise energética, pandêmica e inflacionária europeia, só a Rússia tem capacidade imediata de aumentar a oferta do gás que os europeus necessitam para esquentar suas casas, baixar seus custos de produção e recuperar a competitividade de sua indústria, diminuindo o grau de insatisfação de suas populações. É esta excepcional posição excepcional da Rússia que explica o seu empoderamento e sua decisão de avançar suas peças no tabuleiro do xadrez geopolítico da Europa, colocando sentados na mesa de negociações, os EUA, a OTAN e todos os demais países europeus, para discutir a sua própria proposta de redefinição pacífica dos parâmetros estratégicos impostos à Rússia, pela “força dos fatos e das armas”, durante a década de 1990.

O mais provável é que as negociações iniciadas na segunda semana de janeiro de 2022 se prolonguem por muito tempo, ou simplesmente permaneçam congeladas. Até porque a Rússia já venceu o primeiro round, na medida em que colocou sobre a mesa de forma explícita a sua condição fundamental e inarredável para que se possa estabilizar um novo equilíbrio estratégico europeu: a não incorporação da Ucrânia e da Geórgia como países membros da OTAN. A partir deste momento, a “próxima movida” no tabuleiro cabe às “potências ocidentais, que estão plenamente notificadas de que sua eventual decisão de incorporar estes dois países à sua organização militar, representará uma declaração automática e simultânea de guerra com a Rússia.

Ou seja, servirá como sinal para o início uma invasão massiva do território ucraniano por parte do poder militar russo. E não seria improvável, nestas condições, que houvesse uma suspensão imediata do fornecimento do gás russo para os países europeus envolvidos mais diretamente num conflito que pode se transformar numa nova grande guerra mundial, no caso em que envolva uma participação direta da China, que numa situação como esta poderia se sentir livre e autorizada para atacar e ocupar Taiwan.

*José Luís Fiori é professor do Programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).

 

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