Novo BRICS explode a ordem internacional

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ LUÍS FIORI*

Os efeitos e consequências mais importantes da expansão do bloco não serão imediatos, e irão se manifestando na forma de ondas sucessivas, e cada vez mais fortes

A importância histórica da ampliação dos BRICS

De forma muito curta e direta: a incorporação dos seis novos membros do BRICS – Arábia Saudita, Irã, Argentina, Egito, Emirados Árabes e Etiópia – significa uma verdadeira “explosão sistêmica” da ordem internacional construída e controlada pelos europeus e seus descendentes diretos há pelos menos três séculos. Mas seus efeitos e consequências mais importantes não serão imediatos, e irão se manifestando na forma de ondas sucessivas, e cada vez mais fortes.

Exatamente porque o BRICS não é uma organização militar do tipo OTAN, nem é uma organização econômica do tipo União Europeia. Nasceu como um de ponto de encontro – quase informal – e um espaço de convergência geopolítica e econômica, entre países situados fora do núcleo central das grandes potencias tradicionais, concentradas sobre o eixo do Atlântico Norte. Países que não são atrasados, nem, subdesenvolvidos, nem dependentes e que já são, ou se propõem ser grandes potências econômicas e políticas dentro de seus respectivos tabuleiros regionais. Na verdade, o próprio grupo original do BRICS já inclui três das cinco economias mais ricas do mundo, tomando em conta o seu “poder de paridade de compras”.

Chamá-los de “sul global’ me parece ser uma forma anódina e geográfica apenas, de renomear os antigos países do “terceiro mundo”, na sua maioria ex-colônias europeias. Os números estão sendo amplamente divulgados e todos já sabem que depois da incorporação dos seis novos sócios o grupo do BRICS terá mais de 40% da população mundial e cerca de 40% do PIB mundial, o que por si só já fala da importância deste grupo e de sua ampliação decidida na reunião de Joanesburgo.

Agora bem, apesar de que o BRICS tenha tido até hoje uma postura muito mais propositiva do que contestaria, não há dúvida que nos anos recentes, devido a belicosidade crescente entre os Estados Unidos e a China, e devido sobretudo à guerra no território da Ucrânia entre os países da OTAN e a Rússia, o BRICS acabou sofrendo uma mudança de natureza, tornando-se uma organização de resistência, sobretudo, com relação às estruturas e instituições econômicas e financeiras utilizadas pelos EUA e seus aliados europeus e asiáticos, que operam como verdadeiras armas de guerra nos momentos de intensificação da competição e de acirramento dos conflitos entre esses países reunidos no G7 e os demais países que eles agora chamam de “sul global”, apesar da incorreção geográfica da expressão uma vez que seu principal inimigo neste momento, a Rússia, encontra-se ao norte de quase todos os países do G7.

Seja como for uma coisa é certa, depois de Joanesburgo, o BRICS já é um ponto de referência incontornável dentro do sistema internacional, e dependendo da reação dos Estados Unidos e dos europeus, poderá se transformar nos próximos anos, num grupo de poder com capacidade de estreitar cada vez mais o horizonte da dominação euro-americana do mundo.

Uma nova organização comercial?

Não há dúvida que a partir de 2024 o BRICS+ estará reunindo alguns dos países detentores das maiores reservas de petróleo e gás do mundo, além de incluir alguns dos seus maiores produtores de grãos e alimentos. Para não falar dos recursos minerais estratégicos que se concentram nesses mesmos países, associados às velhas tecnologias nucleares e às novas tecnologia associadas à computação quântica, à inteligência artificial e a robótica. Mas não creio na possibilidade de que nasça daí nenhuma nova organização comercial, até porque seria rebarbativo com relação à OPEP, no caso do petróleo e do gás.

Não creio que seja este o objetivo do grupo, nem creio que seja necessário para que possam exercer de outras maneiras o seu poder de influenciar os mercados globais destes produtos. Mas sim creio que o maior poder e o maio golpe econômico desferido contra os interesses americanos e do G7 virá por outro lado, e atingirá em cheio o poder monetário e financeiro do dólar e dos Estados Unidos.

De fato, a reunião de Joanesburgo não criou uma nova moeda nem discutiu abertamente a criação dessa moeda. Mas de forma discreta antecipou a substituição do dólar nas transações energéticas entre os países-membros do grupo e desses países com todas as suas “zonas de influência”. E este talvez seja o maior golpe desferido até hoje contra a hegemonia do dólar, desde os Acordos de Bretton Woods, em 1944, e desde o grande acordo firmado entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando ficou estabelecida e garantida a intermediação do dólar, em todas as grandes operações do mercado mundial do petróleo.

Ação militar

Acho que o Brics nunca se tornará uma organização militar, nem jamais foi ou será este seu objetivo. Do ponto de vista militar, a aliança estratégica da Rússia com a China, que se consolidou nos dois últimos anos, já é por si mesma um contraponto ao poder miliar dos EUA e da Europa. E não creio que China ou Rússia queiram ter qualquer tipo de compromisso com seus novos parceiros, do ponto de vista de sua defesa mútua, como a Rússia tem, por exemplo, com a Bielorrusia.

Uma derrota importante para os Estados Unidos

Por conta disso tem aumentado a cada dia que passa as pressões e promessas do Departamento de Estado, exatamente em cima do Brasil, da Índia, e da África do Sul, três membros fundadores do BRICS. Aliás, deste ponto de vista, tem sido patética a peregrinação recorrente dos senhores Anthony Blinken e John Sullivan, e da onipresente senhora Victoria Nuland, tentando convencer – sem muito sucesso – os governos africanos, latino-americanos, ou mesmo asiáticos a apoiarem as sanções econômicas aplicadas pelos Estados Unidos contra a Rússia, por conta da guerra na Ucrânia.

Um sinal inequívoco de perda de liderança que se repetiu agora mesmo no caso do golpe militar do Niger, ocasião em que nem os Estados Unidos nem os europeus conseguiram, até agora pelo menos, convencer algumas de sus ex-colônias africanas a invadirem o Niger, ou seja convence-los a fazer a mesma coisa que atribuem e criticam na Rússia, com relação à Ucrânia.

Lula perdeu com essa ampliação?

Não há nada que sugira que Lula e o Brasil tenham perdido poder ou influência com a ampliação do BRICS, nem tampouco que ele tenha feito algo com que estivesse em desacordo submetendo-se à China ou a quem quer que seja. Pelo contrário, minha impressão é que ele conseguiu recuperar pelo menos em parte o que o Brasil perdeu e se submeteu durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Uma coisa completamente diferente é compreender que o Lula sozinho não tem como transformar o Brasil do dia para a noite numa potência equivalente à China, ou mesmo à Índia, do ponto de via econômico e tecnológico, ou mesmo à Rússia, do ponto de vista militar. Estes países lutaram muitos anos para chegarem a ser potências com capacidade de projeção de sua influência a escala global. O que esta reunião deixou claro é que o Brasil precisará ainda de tempo para chegar onde eles chegaram.

Os demais dão sinais inequívocos de que respeitam o presidente brasileiro e sua liderança ética e carismática mundial, mas isto não muda do dia para a noite a visão que o mundo construiu do Brasil ao ver sua elite política e econômica entregar o seu o seu país e o Estado brasileiro (como está se vendo agora) nas mãos de uma quadrilha de pequenos escroques e ladrões de carteira. E ainda mais, ao saber agora da participação que tiveram membros destacados das Forças Armadas brasileiras em toda a corrupção, e em todas as tratativas golpistas de um presidente que veio das suas próprias fileiras.

O que a imprensa corporativa não consegue entender é que o Brasil saiu da reunião de Joanesburgo do tamanho que tem hoje no mundo, o tamanho com que ficou depois de seis anos de destruição do seu Estado e de sua política externa, corrigido até onde foi possível, e até agora, pelo trabalho incessante da política externa brasileira e pela liderança mundial conquistada pelo presidente Lula.

Os novos integrantes do bloco são “ditaduras”?

Esta separação e polarização entre países democráticos e autoritários foi uma ideia da política externa do governo Biden que não teve maior repercussão internacional. Basta olhar para as duas reuniões que Joe Biden organizou com o objetivo de mobilizar a opinião pública mundial e que foram um absoluto fracasso. Mas o mais importante aqui não é isto, é apenas que o BRICS nunca se propôs a ser um grupo de países democráticos, nem muito menos um grupo missionário pregador da fé na democracia. Trata-se de um grupo pragmático e que tem por princípio a ideia chinesa do respeito absoluto pela autonomia política e cultural de cada um de seus membros e dos seus povos.

Paralelo entre os BRICS e o movimento dos países não alinhados

São propostas e organizações que nasceram em momentos geopolíticos muito diferentes. O Movimento dos Não Alinhados nasceu à sombra da Guerra Fria e da polarização mundial entre o mundo socialista e os países capitalistas ocidentais. Foi um enfrentamento e uma bipolarização com forte conotação ideológica e dimensão global. Já o BRICS nasceu em um mundo que se fragmenta cada vez mais e que é cada vez mais intolerante com relação a todo e qualquer tipo de polarização do sistema mundial.

E agora está se expandindo no espaço aberto justamente pela perda de liderança de liderança dos europeus e dos norte-americanos, sobretudo depois do fracasso de sua tentativa de universalizar suas sanções econômicas contra a Rússia. Afinal, alinharam-se com os Estados Unidos e a OTAN um grupo de apenas 30 ou 40 países, uma minoria dentro do sistema das Nações Unidas. O objetivo das sanções era isolar e enfraquecer economicamente a Rússia, mas acabou isolando o G7 e enfraquecendo a economia europeia, que já foi ultrapassada em poder de compra pela própria Rússia, apesar de que este país esteja sob o mais intenso ataque econômico jamais desfechado contra qualquer outro país do mundo, em qualquer tempo da história.

Impacto sobre a guerra na Ucrânia

Eu acho que a ordem dos fatores é inversa. A simples invasão e resistência russa dentro do território da Ucrânia, frente à mobilização e intervenção direta dos Estados Unidos e de todos os países sócios da OTAN, já rompeu com a “ordem mundial” estabelecida pelos Estados Unidos e seus aliados depois do fim da Guerra Fria.

Além disso, a guerra na Ucrânia acelerou a formação de uma aliança estratégica entre a Rússia e a China, que deu alguns passos diplomáticos gigantescos à sombra da própria guerra, na direção do estreitamento de suas relações econômicas e estratégicas e do alargamento de sua influência sobre o Oriente Médio e a África. Incluindo esta expansão recente e bem-sucedida do BRICS.

As próprias sociedades europeias estão começando a se dar conta e reagir frente ao fato de que os Estados Unidos estão se comportando cada vez mais na defensiva, e atuando de forma completamente reativa, frente à inciativa militar russa, e frente à iniciativa econômica chinesa. Neste sentido, já se pode mesmo dizer que a guerra na Ucrânia apressou o declínio da hegemonia cultural dos valores europeus, e vem encolhendo significativamente o poder do império militar global dos Estados Unidos.

O lugar da Argentina no BRICS

Considero a entrada da Argentina no BRICS uma vitória diplomática do Brasil, e um passo extremamente importante na construção de uma “zona de co-prosperidade” na Bacia do Prata. Uma decisão e um passo cujos efeitos, entretanto, deverão se dar ao longo do tempo, não de forma imediata. Mas não há como enganar-se: este estreitamento da aliança entre o Brasil e a Argentina, como prognosticou o geopolítico americano Nicholas Spykmen, já em1944, será visto hoje como já foi no passado como uma “linha vermelha” para os interesses dos EUA e de sua rede de apoios dentro do continente.

E muito mais ainda, neste caso, em que este estreitamente ocorre dentro de uma organização liderada economicamente pela China, e que conta ainda com a participação do grande “demônio do ocidente” neste momento, que é a Rússia. Desse ponto de vista, é necessário olhar com cuidado para o futuro imediato, porque se as próximas eleições presidenciais argentinas não forem vencidas pelas forças de extrema direita contrárias à participação da Argentina no BRICS, não é impossível que a Argentina entre na linha tiro das chamadas “guerras híbridas” que vão mudando governos e regimes ao redor do mundo que são considerados inimigos ou obstáculo para o projeto de poder global euro-americano

Uma nova liderança global?

Tudo indica que a China não se propõe a substituir os Estados Unidos e seus aliados europeus como centro hegemônico do sistema mundial, pelo menos na primeira metade do século XXI. Nem tampouco a Rússia tem possibilidade de alcançar este objetivo. Mesmo assim, a aliança entre a força militar russa e o extraordinário sucesso tecnológico e econômico da China deve ter um impacto “exemplar” sobre o resto do mundo. Muito mais agora em que a China assumiu de forma explicita e declara a liderança de um projeto “desenvolvimentista global” (ocupada pelos EUA depois da Segunda Guerra Mundial), propondo a construção de um “mundo inclusivo” e de soma positiva entre todos os povos do universo, sem exclusão do Atlântico Norte.

Como se pode observar na própria estratégia de expansão do BRICS, já agora trazendo para dentro da organização representantes de todas as grandes civilizações que dominaram o mundo até o século XVII, e que depois disto foram deslocadas, derrotadas ou submetidas pela expansão vitoriosa do colonialismo europeu, que na segunda metade do século XX foi substituído pelo império militar e financeiro global dos Estados Unidos. Como já dissemos, esse império está se enfrentando com seus limites, estes limites estão aumentando, mas isto não significa automaticamente que a China vá substituir de imediato esta posição de liderança global.

*José Luís Fiori é professor Emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O mito de Babel e a disputa do poder global (Vozes).

Texto estabelecido a partir de entrevista concedida a Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena no site Tutaméia.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Flávio R. Kothe Ladislau Dowbor João Adolfo Hansen Ronald León Núñez Bento Prado Jr. Vinício Carrilho Martinez Anselm Jappe Marcelo Guimarães Lima Paulo Nogueira Batista Jr Antônio Sales Rios Neto Michel Goulart da Silva Sandra Bitencourt Rodrigo de Faria Daniel Afonso da Silva Yuri Martins-Fontes Francisco Pereira de Farias José Raimundo Trindade Bruno Machado Mariarosaria Fabris Leonardo Boff João Paulo Ayub Fonseca José Machado Moita Neto Eugênio Trivinho Juarez Guimarães Dênis de Moraes Heraldo Campos Manchetômetro Milton Pinheiro Ronaldo Tadeu de Souza Alysson Leandro Mascaro José Luís Fiori Atilio A. Boron Valerio Arcary Leonardo Avritzer Andrés del Río Tadeu Valadares Marjorie C. Marona Paulo Fernandes Silveira Berenice Bento Slavoj Žižek Igor Felippe Santos Fernando Nogueira da Costa Luiz Carlos Bresser-Pereira Claudio Katz Francisco de Oliveira Barros Júnior Michael Roberts José Dirceu João Lanari Bo Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Marques Kátia Gerab Baggio Jean Marc Von Der Weid José Geraldo Couto Annateresa Fabris André Márcio Neves Soares Remy José Fontana Luiz Bernardo Pericás Daniel Costa Salem Nasser Henri Acselrad Valerio Arcary Celso Favaretto Chico Whitaker Matheus Silveira de Souza Jorge Branco Rafael R. Ioris Antonio Martins Boaventura de Sousa Santos Luis Felipe Miguel Luiz Werneck Vianna Priscila Figueiredo Fernão Pessoa Ramos Ricardo Abramovay Flávio Aguiar Everaldo de Oliveira Andrade Alexandre Aragão de Albuquerque Otaviano Helene Ari Marcelo Solon Renato Dagnino José Micaelson Lacerda Morais Liszt Vieira Osvaldo Coggiola Lorenzo Vitral Leonardo Sacramento Marcos Aurélio da Silva Jean Pierre Chauvin Eleonora Albano Gabriel Cohn Caio Bugiato Thomas Piketty Ricardo Musse Vladimir Safatle João Feres Júnior Samuel Kilsztajn Celso Frederico Airton Paschoa Chico Alencar Gilberto Lopes Gilberto Maringoni Ronald Rocha Luiz Eduardo Soares João Carlos Salles Marilia Pacheco Fiorillo Armando Boito Paulo Capel Narvai Walnice Nogueira Galvão Eugênio Bucci Carla Teixeira Bernardo Ricupero Rubens Pinto Lyra Dennis Oliveira Eliziário Andrade João Carlos Loebens Paulo Sérgio Pinheiro Eleutério F. S. Prado José Costa Júnior Bruno Fabricio Alcebino da Silva Vanderlei Tenório Leda Maria Paulani Mário Maestri Jorge Luiz Souto Maior Henry Burnett Marcos Silva André Singer Paulo Martins Daniel Brazil Benicio Viero Schmidt Érico Andrade Sergio Amadeu da Silveira Alexandre de Lima Castro Tranjan Luiz Roberto Alves Antonino Infranca Maria Rita Kehl Plínio de Arruda Sampaio Jr. Alexandre de Freitas Barbosa Marcelo Módolo Lincoln Secco Manuel Domingos Neto Tales Ab'Sáber Marcus Ianoni Fábio Konder Comparato Luiz Renato Martins Julian Rodrigues Andrew Korybko Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Michael Löwy Luís Fernando Vitagliano Ricardo Antunes Denilson Cordeiro Ricardo Fabbrini João Sette Whitaker Ferreira Gerson Almeida Francisco Fernandes Ladeira Carlos Tautz Marilena Chauí Tarso Genro Afrânio Catani Elias Jabbour Luciano Nascimento Eduardo Borges

NOVAS PUBLICAÇÕES