Por FERNÃO PESSOA RAMOS*
Considerações sobre o curta-metragem dirigido por Ivan Cardoso
Nosferato no Brasil, de 1971, é um curta-metragem dirigido por Ivan Cardoso, produção caseira da geração ‘Marginal’ do cinema brasileiro. Para quem se interessar, há uma versão (26 min.) na internet (Vimeo). O filme mostra o caldo da contracultura e da intertextualidade pop deglutidora, ausentes, neste modo mais intenso, da geração anterior do Cinema Novo.
Conceitos gerais, como o de modernidade, nem sempre dão conta da diversidade do cinema brasileiro produzido na segunda metade do século XX. Uma vanguarda com dominância inicial realista, ou neorrealista (Rio, 40 Graus), deu lugar a narrativas de estrutura cada vez mais fragmentadas e intertextuais, com referências ideológicas cruzadas sucedendo-se rapidamente.
Nosferato corresponde à produção que chamamos Cinema Marginal: jovens cineastas com vocação parricida, ligados a cultura underground que penetra em amplos setores da classe média brasileira no início dos anos 70. Drogas, rock&roll e MPB clássica, questões de gênero, afirmação da mulher e nova sexualidade LGBT, preconceito racial com população negra e questões etnográficas (Andrea Tonacci), comunidades marginais alternativas com preocupações ambientais holísticas, formam o contexto ideológico inovador que os cerca. Uma intertextualidade deglutiva (antropofágica) encara na narrativa o cinema de gênero clássico, no modo do deboche, com gritos de horror exacerbado e figuração extrema da abjeção corporal.
Estes são traços que, num horizonte maior, singularizam com nuances o Cinema Marginal. Cruzamentos com a geração Cinema Novo existem, sem dúvida. As fronteiras são fluidas. Os protagonistas trocaram polêmicas bastante azedas entre si, a partir de projetos ideológicos diversos, disputando espaços de produção. Torquato Neto, poeta que interpreta o protagonista de Nosferato no Brasil, tomou partido e foi um dos polemistas aguerridos da contracultura, com voz ativa na chamada imprensa nanica e em colunas como “Geleia Geral”, do jornal carioca Última Hora. Quando Ivan Cardoso publica uma Geleia Geral desancando o Cinema Novo, o título garrafal da coluna foi ‘Mixagem Alta Não Salva Burrice” (1972).
Ivan Cardoso era um jovem de 19 anos em 1971, tendo como principal ponto em seu currículo haver trabalhado no ano anterior como assistente de Rogério Sganzerla na direção de Sem Essa Aranha – uma produção longa-metragem, com traços comunitários, na famosa e breve Belair. Cardoso irá lançar seu primeiro longa, O Segredo da Múmia, somente dez anos depois (1982). Nosferato no Brasil foi feito em Super-8 nas escaldantes praias cariocas, compondo uma série de pequenos filmes, com mesma bitola e condições de produção, que o diretor apelidou “Quotidianas Kodak”. Possui a graça e a espontaneidade do estilo do cinema direto (mas sem som direto) que dominou mentes e mãos naqueles anos.
Dirigido com forte abertura para o improviso e a contingência na tomada, lida com o mundo sem culpa existencial, na base do avacalho e do comportamento da ‘curtição’, a ação liberada no turbilhão de sua potência no novo quadro ideológico da época. Em termos estilísticos traz a densidade e o deslumbre intertextual com citações recorrentes em cascata, tendo o tropicalismo como pano de fundo e a referência ao cinema clássico de gênero (particularmente o horror).
Assim, além do Nosferatu de Murnau, Cardoso se remete ao primeiro cinema de Sganzerla, à experiência da Belair e, certamente, à grande figura inspiradora dessa turma, José Mojica Marins, com seu personagem Zé do Caixão. Também Bressane andou por estas águas ao filmar Barão Olavo, o horrível (1970) e Elyseu Visconti, depois, com O lobisomem, o terror da meia-noite (1974). O cinema de gênero (musical, horror, ficção científica, noir) é uma forte presença para a turma do Marginal.
Isso era ‘udigrudi’, como Glauber Rocha gostava de chamar, polemizando num misto de atração ideológica pelo modo de vida libertário; identificação estilística oscilante, com olho na agilidade da produção; e rejeição por motivos pessoais (particularmente com o trio Sganzerla, Bressane, Helena Ignez, e outros, como Trevisan (João Silvério). Era o Cinema Marginal, uma geração de 15 ou 20 diretores e cerca de uma centena de atores e técnicos (cineastas) que atuam de modo recorrente em torno de 40/50 longas em 35mm e 16mm (e também Super-8), com características de estilo bastante coesas, durante um período de 6/7 anos, entre 1968 e 1973/1974. Com continuidades individuais autorais que vão além disso, a influência deste ‘core’ marginal no cinema brasileiro é ampla e duradoura.
Conjuntos particulares, muitas vezes, não permitem nas artes em geral o estabelecimento de categorias definidas, ou substâncias que tem modos homogêneos de ser no mundo. Isto incomoda a análise que precisa de fronteiras claras para se orientar. O Marginal, na realidade, tem no decorrer do tempo a forma das constelações moventes e uma consistência fílmico-estilística de estabilidade variável. As configurações são bem visíveis, claras, mas nem sempre trazem definição suficiente para serem fotografadas pelo espelho da identidade. Não possuem equivalência num desenho do panorama historiográfico com figuras de ‘ciclos’, de estabilidade epistemológica mais positivista.
A quebra geracional do Marginal ocorre com a eclosão do comportamento da ‘curtição’ e do ‘avacalho’ (a ação afirmativa chamada de ‘desbunde’), em oposição à demanda mais existencialista do primeiro momento do Cinema Novo que ainda traz o peso do engajamento e a densidade pegajosa (como náusea) da culpa pela dimensão necessariamente ambígua que cerca a decisão da ação na práxis.
Richard Rorty define bem o abismo do buraco negro sobre o qual dança o Cinema Marginal ao criticar, com ironia, a vitória da filosofia de corte analítico sobre a poesia na história do pensamento – e aproximar as dilatações de uma pragmática poética, da potência e da metáfora, sobre o domínio da teoria, da inferência e da percepção: “a diferença entre investigação (inquiry) e poesia, entre lutar pelo poder e aceitar a contingência, está naquilo que poderia ser uma cultura em que a poesia, em vez da filosofia-com-ciência, fosse a atividade humana paradigmática” (Philosophical papers, vol. II).
O conjunto que compõe o Cinema Marginal é forte. Apresenta, durante os anos de produção contínua no Brasil, e no exílio, filmes de qualidade autoral bastante homogênea, com quadro de atores e cineastas recorrentes que interagem entre si em locais diversos como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, Bahia. O principal motivo da dificuldade com o nome Marginal talvez esteja na rebeldia intrínseca dos jovens que fogem ao esquadro ideológico mais regular, estabelecido em dualidades opositoras.
Revoltados na raiz, em coerência com o espírito desconstrutivo mais radical da época, recusam, na própria cristalização da denominação, a formalização em linguagem, daquilo que os designa – o que não deve impedir, no entanto, a constatação do crítico esclarecido. Junta-se o fato que o qualificativo ‘marginal’, embora possuindo carga conotativa negativa neutra na poesia ou nas artes plásticas (caso da ‘poesia marginal’, da mesma época), traz no cinema uma conotação negativa mais carregada. Arte coletiva, o cinema envolve um movimento colegiado de produção no qual a marginalidade eventualmente pesa noutra perspectiva.
Ivan Cardoso estava no centro deste rodamoinho. O que se chamou de contracultura, ou mais imprecisamente movimento alternativo ou hippie, ocupava as praias cariocas e os principais bares e espaços culturais de São Paulo e outras metrópoles brasileiras. Por ser jovem (Hélio Oiticica apelidou a turma de Ivan, que frequentava sua casa, de ‘The Kids’), além de talentoso, Cardoso tinha acesso mais fácil a expoentes maduros da cultura brasileira do início dos anos 1970, como o próprio Oiticica (que encenaria para ele o belo HO, de 1979), Torquato, Caetano, Gal, Bressane, Sganzerla, e diversos outros.
As produções das ‘Quotidianas Kodak’ também abriram diversas portas e Ivan começou a brilhar no meio da produção alternativa que borbulhava nas ‘dunas do barato’ como o “rei do super-8”. As exibições das Quotidianas eram uma espécie de happening informal bastante disputado, com trilha musical de discos improvisada na hora, conforme descrito pelos cronistas. Aparentemente, Torquato aceitou imediatamente o convite para protagonizar o filme do colega mais jovem, encarnando o personagem do vampiro Nosferato. As filmagens foram feitas rapidamente, em cerca de 10 dias, em outubro de 1971, sem esquema maior de produção seguindo a disponibilidade dos protagonistas. Torquato iria cometer suicídio um ano depois, em novembro de 1972.
O curta possui esquema de produção ligeira, mas com densidade de cinema maduro estilisticamente, o que o torna, na simplicidade de um curta-metragem improvisado, referência de uma época na cinematografia brasileira. Incorporar este espírito do tempo (como num Zeitgeist), é seu principal feito trazendo, ainda imberbe, o espírito que irá fazer régua e compasso ideológico nas próximas décadas. As temáticas da contracultura têm na produção do Cinema Marginal uma manifestação pioneira, antes de sua eclosão mais densa e orgânica em discurso afirmativo das minorias na sociedade como um todo.
É nítido que este campo ideológico original da contracultura possui forte evolução contemporânea. Mostra-se como uma das raízes que forjam a emergência do discurso político das afirmações identitárias. É seu momento emergente, final dos anos 1960, 1970. A consistência histórica revela densidade para além de uma diluição redutora no mercado das ideias ou na indústria cultural. Não é um produto de consumo que pode servir como faca de dois gumes em eixos distintos do quadro ideológico.
A questão identitária tem fundo histórico e lutas próprias, às vezes no eixo das classes, às vezes atravessando, que não devem ser sobrepostas em equivalência de extremos ao novo nicho do motor midiático nivelador, que dá fôlego ao autoritarismo de direita. Só uma gimmick intelectual arrogante e má intencionada pode sustentar, como esclarecida, uma comparação que em si é uma falácia retrógada – pois parte de uma premissa que o argumento, por estar muito bem situado em circunstância contextual, não fornece.
Nas imagens de Nosferato respira-se a leveza e a sensualidade destes ‘anos dourados’ que caminham junto ao fantasma do horror e o sangue derramado na barbárie política que os cerca. Se aqui o horror surge sob a capa do gênero e da beleza figural da curtição (como improvisação na vida cotidiana), em outros filmes Marginais é explícito, descambando para a exasperação e a representação do corpo dilacerado e abjeto.
Em Nosferato no Brasil tudo é curtição e o sangue é plástico – como no belo plano que introduz a segunda parte do filme, escorrendo de um quadro abstrato na parede, espécie de bolsa negra que é cortada com uma gilete, caindo a substância vermelha sobre um cartaz com as letras num formato gráfico que introduz o título.
A referência do sangue escorrendo lentamente pela parede é certamente a famosa cena da baba de sangue de Helena Ignez que finaliza A família do barulho (1970), produção Belair de Júlio Bressane. Ao fundo, como trilha musical, uma versão edulcorada instrumental de Aquarela do Brasil dá o tom. Segue-se a expressão manuscrita na areia, ‘Rio 1971’, indicando o tempo e a circunstância que o filme mostra: imagens de praias ainda vazias, estreitas, com as bandeiras nacionais verde-amarelas da época e o ‘este é um Brasil que vai pra frente’ da canção de propaganda (com atualidade aterrorizante) junto ao onipresente logotipo da Esso, empresa multinacional petrolífera que dominava o mercado.
Nosferato/Torquato Neto atravessa a passarela do MAM carioca e as ‘dunas do barato’ ainda estão lá, com seu o píer em eterna construção e os surfistas aproveitando as ondas maiores: “Você me chama, eu quero ir pro cinema, você reclama, mas de repente a madrugada mudou… não tenho tempo a perder”. O universo diegético da narrativa começa propriamente com o vampiro na transilvânica ‘Budapeste Século XIX’ (que abre o filme em preto e branco), onde Nosferatu é morto e ressurge – pronto para viver em cores o espaço da curtição tropical. O Nosferatu morto, como no romance Drácula de Bram Stoker e no filme de Murnau, submerge para poder viajar e aqui aparece no verão do Rio de Janeiro, sem medo de sol. O barato é curtir o texto.
Nosferato é esta curtição e, neste tempo de horror, todos parecem se divertir muito na mise-en-scène do vampiro que vem das montanhas geladas e noturnas (“onde se vê dia, veja-se noite” diz o letreiro debochado que facilita a produção precária) e termina em Copacabana. A trilha sonora, criação posterior pois o filme dos happenings de 1971/1972 é em Super-8 sem som, pontua a ação e cria o clima. Vai, conforme a demanda, de um belo Roberto Carlos ao rock pesado lisérgico, da melodia mais lírica a guitarra agoniante de Jimmy Hendrix. Uma bossa nova anuncia a chegada do vampiro ao Rio. Não há falas ou diálogos.
A trilha sonora era improvisada na hora do happening da projeção, com duas vitrolas. Ivan diz em sua autobiografia, O mestre do terrir (Remier/Imprensa Oficial), que as trilhas foram se “depurando”, mas que o essencial já estava nas primeiras sessões. É preciso frisar que circulam mais de uma versão deste filme, com durações distintas. Variam entre 26 e mais de 30 minutos, e uma mítica, ou improvável, versão longa com quase uma hora, que teria sido apresentada na estreia – um evento com ampla cobertura nas colunas underground de Torquato e Daniel Más (o príncipe que mata Nosferato na Transilvânia) e que resultou em quase 200 pessoas se apertando numa cobertura da Lagoa, segundo descrição de Ivan. A variedade entre versões é relativamente comum no cinema, não só em Super-8, mas também em bitolas de grande público, como 35 mm. Sendo uma arte tecnológica, versões de filmes clássicos se sobrepõem na história do cinema num modo distinto do que ocorre na literatura ou nas artes plásticas.
No caso de Nosferato no Brasil, o talento cinematográfico de Cardoso vem da econômica beleza plástica dos planos que fazem vibrar um Rio de Janeiro que não existe mais, trazendo o visual do ‘desbunde’ em 1971. As inconfundíveis cores da película Kodachrome, agora para sempre perdidas, brilham fortes na bitola Super-8 que afinal mostra conseguir resistir bem à passagem do tempo e dá um colorido especial às praias e ruas desaparecidas. A cor não é mesma daquela que nos cerca nas imagens-câmera digitais de hoje, onipresentes e que tomamos como cor especular do mundo.
O veio mais plástico dos filmes curtos e médios do começo da carreira de Ivan Cardoso, trazem um diálogo próximo com a vanguarda concreta e neo-concreta da poesia e das artes plásticas brasileiras, mostrando a face experimental de um cineasta que depois enveredaria para o eixo mais comercial que ele chamará de ‘Terrir’. Obra de juventude, as imagens de Nosferato possuem um certo rigor em sua decupagem – planos curtos bem montados na composição das sequências – nem sempre encontrado em filmes de bitola super-8. Esta bitola possui condições tecnológicas difíceis para finalização na montagem – o que dá ensejo a boas obras, mas desleixadas ou excessivamente amadorísticas neste aspecto.
Nosferato é obra de cinema com ‘C’ maiúsculo, já maduro em sua composição, pronto para decolar. O ‘ator’ Torquato Neto é dirigido com leveza para manter intato seu natural ar blasé, dentro das características pessoais que coincidem com a personagem – pelas quais provavelmente foi escolhido constituindo simultaneamente a persona em cena.
Mistura seu tipo, já uma personalidade na época, com a figura ficcional criada pelo filme numa sobreposição própria à encenação na tomada da imagem-câmera, algo que funciona com efeito particular no estilo direto. As meninas vampirizadas, incluindo a ótima Scarlet Moon de Chavalier, entram na sintonia de interpretar a ação no modo ‘curtição’, sempre à vontade no papel, debochando do próprio filme, da história, do horror e da vida.
Um letreiro toma a tela e deixa claro qual é o espírito do ‘barato’ do filme e do sangue-ketchup que abunda: “Sem sangue não se faz história”. A menção dúbia carrega o diálogo para o outro lado do disco que fulgura a tensão da época. Segue-se ao letreiro um plano que forma um quadro com viés ‘pop’, de tom figurativo bem ao gosto daqueles anos: a televisão ligada no eterno Silvio Santos com a voz de seu Lombardi-Baú-da-Felicidade e junto à TV um vidro de ketchup-sangue, em escala mais próxima, em frente ao aparelho com a imagem da imagem.
Assistindo a televisão, o grupo vampiresco folheia gibis de super-heróis e dá risada. Uma sensualidade à flor da pele transpira pelos poros dos jovens atores que acabam de descobrir a liberdade das sensações e da sensualidade e parecem querer explorá-la em todos limites.
Produções caseiras, de vanguarda ou não, em super-8, 16mm ou digital, podem ter sua graça, mas o bom cinema se sente ao longe, na bitola ou suporte que for. Nosferato no Brasil faz parte dessa estirpe. Pequena pedra lapidada que respirou, enquanto arte, o mais genuíno espírito de seu tempo.
Fernão Pessoa Ramos é professor titular do Instituto de Artes da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Cinema Marginal (1968/1973): A Representação em seu Limite (Brasiliense).
Publicado originalmente como um capítulo do livro Curta Brasileiro – 100 filmes essenciais (Ed. Abraccine)