Ódio e violência: o perverso legado do bolsonarismo

Clara Figueiredo, série_ registros da quarentena, av. prestes maia, São Paulo, 2020.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

O legado pior e mais perverso deixado pelo presidente fujão e ladrão de presentes oficiais foi o de atiçar o ódio e a violência nas relações sociais

Quem durante quatro anos nos governou não foi bem um presidente mas um cappo com sua família, cuja característica principal, utilizando as redes sociais, a linguagem chula, os comportamentos grosseiros, a mentira como método, a vontade de destruir biografias, a distorção consciente da realidade, a ironia e a satisfação desumana sobre a doença do Presidente Lula e da Presidenta Dilma, a omissão consciente no trato do coronavírus que sacrificou pelo menos 300 mil pessoas, o genocídio consentido do yanomami, a aquisição praticamente ilimitada de armas letais, a difusão do ódio e da violência, geraram o que ultimamente assistimos: alguém invade uma creche e assassina quatro inocentes crianças e deixa outras feridas.

Há outros casos de alunos que esfaquearam uma professora e um estudante, outro que mata seu colega de escola e outros tantos crimes desse jaez praticados no âmbito escolar, sem referir a violência policial nas periferias das cidades onde jovens negros e outros pobres são abatidos impunente. Mata-se por motivos fúteis como a disputa por um pedaço de pizza.

O legado pior e mais perverso deixado pelo presidente fujão e ladrão de presentes oficiais, doados por autoridades de outros Estados, além de inúmeros outros crimes políticos, foi este: atiçar o ódio e a violência desbragada nas relações sociais.

Nem chorar nem só lamentar, mas procurar entender: donde nos vem a violência bárbara que tantas vítimas fez em nosso pais? Observemos um pouco a história: Alfred Weber,i rmão de Max Weber, em seu resumo da história universal, nos relata que dos 3.400 anos de história documentada, 3.166 foram de guerra. Os restantes 234 anos não foram certamente de paz, mas de trégua e preparação para outra guerra. As guerras do século passado, ao todo, mataram 200 milhões de pessoas. Como se depreende, a violência e seus derivados estão enraizados em nossa história. Ele levanta uma interrogação, expressa na troca de cartas entre Albert Einstein e Sigmund Freud em 30 de julho de 1932.

Einstein pergunta ao fundador da psicanálise, Freud: “há um modo de libertar os seres humanos da fatalidade da guerra…é possível tornar os seres humanos mais capazes de resistir à psicose do ódio e da destruição?”. Freud realisticamente responde: “não existe a esperança de poder suprimir de modo direto a agressividade dos seres humanos. Contudo podem-se percorrer vias indiretas, reforçando o Eros (princípio de vida) contra o Tánatos (princípio de morte). Tudo o que faz surgir laços afetivos entre os seres humanos, age contra a guerra. Tudo o que civiliza o ser humano trabalha contra a guerra”.

A cultura, a religião, a filosofia, a ética e a arte foram sempre expedientes para frear ou sublimar o impulso de morte. Mas mostraram-se insuficientes. Por isso entendemos a resposta resignada de Freud a Einstein: “esfaimados, pensamos no moinho que tão lentamente mói que podemos morrer de fome antes de receber a farinha”.

Na verdade das coisas, os sábios da humanidade nos fizeram entender que somos seres ambíguos. No dialeto religioso dizia Santo Agostinho: “somos simultaneamente Adão e simultaneamente Cristo”. Não dizia outra coisa Lutero quando afirmava: “somos simultaneamente justos e pecadores”. Nos tempos atuais foi um sábio de 103 anos, Edgar Morin que continuamente nos recorda: pertence à condição humana, sermos ao mesmo tempo sapiens e demens. Isso não é defeito de criação, mas a nossa constituição enquanto humanos. Em outras palavras, somos seres portadores da dimensão de amor e de ódio, de luz e de sombra, da pulsão de vida e da pulsão de morte, do sim-bólico (que une) e do dia-bólico (que desune). Somos a unidade dialética destas contradições.

A opção de base que tomarmos, se o amor, se a luz, se a vida, se o sim-bólico funda nossa ética humanitária. Se assumirmos o contrário instauramos a ética desumana e cruel. Embora ambos os polos convivam e sem podemos eliminá-los nem recalcá-los, é a centralidade que conferimos a uma destas polarizações que define nosso percurso de vida, vital ou letal e nossos comportamentos éticos.

Se o que dissemos é verdade, então importa sermos realistas e sinceros e reconhecer que a violência que se aninha dentro de nós, irrompeu na figura sinistra do presidente anterior. Ele conseguiu que seguidores tirassem a dimensão de ódio que estava neles e deu-lhe franco curso. Utilizou todos os modos possíveis, desde a calúnia, a mentira, as fake news, a violência verbal através dos vários meios digitais, a violência direta, ameaçando de morte pessoas e efetivamente matá-las.

O humano “demasiadamente humano” vale dizer, a porção sombria e dia-bólica ganhou visibilidade e exercício impune sob o regime bolsonarista e com seu incentivador.

O mais grave do bolsonarismo e de seu cappo é ter deseducado os jovens, promovido a linguagem de baixo calão, os comportamentos agressivos, os preconceitos contra os mais vulneráveis, os pobres, os negros, os quilombolas, os indígenas, as mulheres, vítimas de incontáveis feminicídios e pessoas de outra opção sexual. Todos estes foram difamados, perseguidos, violentados e não poucos assassinados, especialmente estes últimos.

Basta esta história de horrores vividos durante quatro anos. Mas o povo deu-se conta de que assim não se pode viver e conviver. Elegeram, pela terceira vez, alguém, um representante da senzala social: Luiz Inácio Lula da Silva. Seu governo se confronta com uma tarefa ingente: reconstruir uma nação devastada no seu corpo e no seu espírito. As raízes desse desumanismo estão ainda aí e estarão sempre, pois, são parte de nossa condição. Mas as mantemos sob controle. O povo e a nação optou pela luz contra a sombra, pelo amor contra o ódio, pelo sim-bólico contra a dia-bólicos.

Devemos nos manter sempre vigilantes, para que os demônios (que junto com os anjos) que nos habitam, inundem a consciência dos bolsonaristas e destruam sistematicamente o que gerações e gerações com suor e sangue construíram. Eles não passarão. Como não passaram outros chefes de estado criminosos e inimigos da vida.

*Leonardo Boff, é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Brasil: concluir a refundação o prolongar a dependência? (Vozes).


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES