Por FLÁVIO R. KOTHE*
Ser solitário permite se tornar solidário com os menos livres. A coação que quer impedir a liberdade busca impedir que se pense a verdade
Ter uma noção mais clara sobre o que possa ser a verdade é central não só para a ciência, também não só para a filosofia, mas também para a arte. Há uma longa tradição filosófica que diz, com Tomás de Aquino, que o belo é o resplendor da verdade ou, com Hegel, que o belo é a aparição sensível da ideia. Para o idealismo alemão, a ideia tinha de ser verdadeira, pois se não ela seria apenas um palpite infeliz. Como a verdade permite distinguir o que é justo e correto, o que vale e o que não tem valor, ela também é central para a vida das pessoas, para as grandes decisões que precisam tomar e para a estruturação do seu dia a dia.
Há castas que acreditam que a verdade seja proporcional às dragonas do uniforme, aos nós do cordão ou às cores da batina. O que aí se tem são hierarquias de comando, não verdades. Um padre ou um pastor que estão fazendo um sermão nunca são interrompidos pelos fiéis. Quando se lê uma ordem do dia num quartel, não está em discussão o que é ordenado e dito, os perfilados não estão convidados a debater. O que vem de cima pode estar errado, como pode estar errado e ser falso o que é decidido por maioria. Um sozinho e marginalizado pode estar mais perto da verdade que os empoderados.
Na Universidade, tornou-se habitual que os alunos possam interromper o que o professor está dizendo e perguntar algo ou sugerir outra interpretação. É o contrário do que ocorre nos púlpitos, nas ordens do dia e nas vozes de comando. As decisões na Universidade brasileira pós 1988 tenderam a ser tomadas em órgãos colegiados, geralmente por consenso. Nos últimos semestres, porém, quando se pedia que os alunos se manifestassem, todos calavam. Não argumentavam, não questionavam. Foram treinados a repetir e decorar. Nas provas, só a minoria mostrava que era capaz de acompanhar a matéria. Pensar não é fácil, parece não ser para todos.
Verdade não é aquilo em que se crê. Nem aquilo que se diz de modo solene. Na verdade não se acredita. Só se crê quando não se tem acesso ao verdadeiro. A crença é uma aposta, uma projeção do desejo que perde noção de si. O crente acha que aquilo em que crê seja verdade, mas a única verdade aí é que ele está crendo. Todo crente é um negacionista, não importa a religião pela qual opte. Ela é, sobretudo, abdicação da razão.
A tese cartesiana da verdade como noções claras e distintas parece ter tido por modelo o catecismo, que reduz questões complexas – como a origem do universo, a estrutura do divino e a natureza do ser humano – a respostas simplórias que não se sustentam. O que a uns parece claro não é tão evidente para outros. O mais transparente costuma não ser visto. O negacionista nega o evidente e quer impor sua falta de visão como luz. Excesso de luz ofusca. O crente tem explicações simples que são simplórias, clarezas que escondem obscuridades, distinções que muitas vezes são errôneas ou não percebem outras que deveriam ser feitas, levando a novas conclusões.
A verdade também não é o que a escolástica dizia, ou seja, verdades eternas na mente divina, algo imutável, absoluto. Ninguém nunca chegou lá, nem chegaria se houvesse. O próprio Deus de Tomás de Aquino passou por mudanças: (1) solitário; (2) com ideias puramente espirituais; (3) dando materialidade às ideias; (4) separando terras e mares: (5) fazendo o homem; (6) interferindo na história etc. Livros sagrados não são acesso a essa mente suprema, mas produtos da escrita, criação humana, literatura. Deveriam ser estudados nas Letras como ficção, mas não são.
A conceituação de verdade como “adaequatio rei et intellectus”, de Tomás de Aquino, é falsa, pois o que a coisa seja e aquilo que está na mente não são o mesmo, ad-aequum, não são iguais nem são uma coincidência. Nunca o que está na mente é o mesmo que as coisas são. O modelo X = Y permeia o pensamento ocidental, mas iguala o desigual e busca reduzir o real ao quantitativo. Aí se iguala o que é apenas parecido, deixa-se de lado a diferença. Saber se ideias são copiadas em coisas ou se coisas são representadas em ideias, ou seja, a opção entre idealismo e materialismo, está sob o mesmo esquema: X = Y. Há uma estrutura profunda que precisa ser desvelada e desvendada.
Escritores sabem que não há sinônimos, que a mesma palavra em posições diferentes do texto não é idêntica. Na ironia, o que se diz não é idêntico ao sentido do que se diz. Portanto, não só não se tem X =Y, como aí também X não é = X.
A verdade também não é apenas uma adequação formal interna da mente, desprendida das coisas. Nesse processo, encontra-se como resultado apenas o que está contido e escondido nas premissas. Finge-se pensar, para realmente não pensar.
A verdade também não é simplesmente aquilo que uma autoridade esbraveja. Ela não se reduz ao discurso. Não se pode perder a referência à realidade. Os autoritários querem que a verdade seja aquilo que eles afirmam, mas sua visão é limitada, exercem a falácia da sinédoque, quando tomam sua parcialidade como todo, sem verem o restante.
Hegel propôs que a verdade seria a captação do objeto em suas múltiplas determinações. Ela seria, portanto, cambiante, pois tanto mudam os vetores captados quanto sua interpretação. Às vezes, um dado novo altera completamente o quadro da avaliação. Nunca se consegue, no entanto, captar a totalidade das determinações. A verdade se torna uma busca utópica, só acessível a um deus onisciente. Tanto muda o Natal quanto o eu muda. Não se entra duas vezes no mesmo rio, mas há muita gente que ano após ano entra do mesmo jeito num rio que muda sempre, dizia Nietzsche.
Verdades afloram com o desencobrimento da coisa, mas ao mesmo tempo isso encobre dimensões não mostradas ou faz com que se veja tudo a partir de certo ângulo como se fosse o ângulo certo. Apontar algo serve para desviar a atenção de outros aspectos. Mostrar é um modo de ocultar. Verdade é revelação, no duplo sentido de desvelar e novamente velar, mas não é a revelação feita por uma divindade para o crente, como os gregos antigos pretendiam com a Alétheia, pois isso era antes a projeção de uma fantasia.
Quando muitos repetem a mesma crença, gera-se uma coação coletiva e o espírito de rebanho se sobrepõe à razão. Joseph Goebbels sugeriu que a mentira muitas vezes repetida acabaria gerando algo que fica. O que fica e continua sendo repetido não é, no entanto, só por isso verdadeiro nem correto, embora perdure e tenha apoio coletivo. A razão não é uma simples ferramenta de que se pode dispor para alcançar a verdade. Uma ferramenta é algo externo, que se pode ou não utilizar. A razão, pelo contrário, é algo interno, que vai diferenciar o ser humano. Muita razão leva, porém, a muita solidão.
A mentira muitas vezes repetida pode parecer verdade, mas não é. Isso ocorre nas ditaduras, mas também nos dogmas da crença vistos como verdades da fé. São teses sacralizadas que se tornam tabus inquestionáveis. Mentiras podem ser impostas à força, com punições públicas, como fez a Inquisição, que se dizia santa por ser pouco cristã e muito autoritária. O reprimido acaba retornando: tanto mais quanto menos se quer.
As palavras afloram verdades, mas também servem para mentir e enganar. Não se pode confiar nas palavras. Há políticos que acham que podem declarar qualquer coisa para que ela seja tomada por verdadeira: ela é repetida por seguidores cegos, mas isso não significa que seja verdade.
Vivemos imersos na mentira. Fake news são old practices. Hagiografias, histórias sagradas, historiografias oficiais e muitas obras literárias estão cheias delas.
Não, Joseph Goebbels não estava certo, mas isso é fácil dizer aqui, pois ele era alemão e nazista. Reforça-se o preconceito. Se ele dizia que, com a propaganda reiterada, alguma coisa acabaria ficando, ele não estava propondo um exame da tradição metafísica, da estrutura fundante do pensar. Ele nem pretendia pensar isso.
Difícil é admitir a inverdade nas estruturas fundantes do nosso pensamento, da nossa cultura, das nossas celebrações, dos nossos valores. Os fanáticos ficam repetindo inverdades como se fossem palavras absolutas. Pior cego é o que não quer deixar ver. O ensino religioso fazia doutrinação, não treinava a capacidade de argumentar.
Kant achava que liberdade seria a ideia que caracteriza o ser humano. Falava de uma santíssima trindade ideativa: Deus, pátria e liberdade. Era um luterano que não quis ultrapassar a teologia. Caso se exija a liberdade como diferencial humano, a maior parte das pessoas ficaria excluída da humanidade. Estão presas ao que lhes foi doutrinado na família, na escola, na igreja, no Estado. Inclusive Kant. Não pensam por si, não questionam fundamentos.
Kant era analítico: não mostrou nas três Críticas que a liberdade existe como antítese à coação. Tangenciou isso, porém, num ensaio tardio, curto, com o título Was ist Aufklärung?. Cito porque se traduz Aufklärung por esclarecimento, o que não está errado, só que leva a supor que qualquer explicação já seja Aufklärung, embora ela própria possa fazer parte do discurso do poder. Poderia ser traduzido por O que é iluminismo?, só que seria preciso atentar que não se trata apenas do movimento iluminista francês (o Iluminismo). A questão seria: “O que é pensar por si?”
Kant se referia à necessidade de fazermos um mergulho profundo em nós, para superar aquilo que nos foi doutrinado e, assim, alcançarmos autonomia no pensamento.
Daí o sujeito passa a dar normas a si mesmo. Elas podem, no entanto, estar erradas e não serem as mesmas ao longo da vida. Isso questiona o imperativo categórico, que não pode ser tão categórico, já que ele não vale sempre de modo igual para o mesmo sujeito. O imperativo categórico quer se fundar na ideia da liberdade, mas faz, em seu nome, uma interferência na liberdade alheia. Ele é, portanto, uma forma de prepotência subjetiva.
Johann Gottlieb Fichte mostrou que o juízo tético só se constitui como tético quando aflora o antitético, mas o juízo antitético só consegue se manifestar quando existe a possibilidade de ir além dessa contraposição, abrindo-se espaço para alguma forma de superação dialética. A liberdade se torna fundamental para que se tenha evolução e progresso, para que se possa pensar. Caso se fique apenas na disputa entre tese e antítese ou na negação da negação não se abre espaço para superar a estrutura que as ditou.
Liberdade é a essência da verdade. Tanto no sentido de o sujeito estar aberto às múltiplas determinações do objeto quanto no sentido de o objeto poder mostrar a sua multiplicidade, mesmo aquelas que o sujeito gostaria de não ter de ver. Édipo tentou fugir às determinações do destino profetizadas pela pitonisa, mas não enfrentou os fundamentos que eram religiosos, pois, como membro da aristocracia, não podia questionar a existência dos deuses, que legitimavam o domínio de sua classe, já que cada família nobre apregoava ter uma divindade nas suas origens sanguíneas.
Ele não foi, então, apenas um herói da liberdade, como queria Solger, no sentido de buscar a autodeterminação de sua história, mas também vítima de sua incapacidade de descrer. Se ele não acreditasse nos deuses, não teria saído do reino em que estava, não teria daí topado com o pai nem com a mãe. Sófocles queria que se acreditasse nos deuses porque o que eles profetizam acabava acontecendo. É uma falácia, oriunda de um sacerdote. A trilogia tebana pode ser lida decifrando o enigma: o escritor foi mais longe que o ideólogo.
A liberdade é a luta contra as coações, a busca de ampliação de horizontes, a vitória contra a tirania. A razão é uma fábrica de racionalizações, mas também é a instância em que se pode decifrar a razão de ser delas. É preciso coragem para pensar, repensar fundamentos. A maioria só repete a lavagem cerebral que sofreu na escola, na família, na mídia.
Ser livre é se tornar solitário. Ser solitário permite se tornar solidário com os menos livres. A coação que quer impedir a liberdade busca impedir que se pense a verdade.
*Flávio R. Kothe é professor titular de estética na Universidade de Brasília. Autor, entre outros livros, de Ensaios de semiótica da cultura (Ed. UnB).