Capitalismo planejado

German Lorca. Ícaro (Vista noturna do Parque do Anhangabaú), 1954
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Por Guillaume Azevedo Marques de Saes*

Prefácio do autor ao livro recém-publicado.

O livro Capitalismo planejado: a planificação econômica na França dos “Trinta Gloriosos” (1945-1975) é baseado em pesquisa de pós-doutorado realizada no Departamento de História da USP no período 2018-2020. O nosso objetivo era fazer uma reflexão sobre o dirigismo estatal dentro do capitalismo, tema muito caro, por sinal, aos estudiosos da industrialização brasileira. Em outras palavras, queríamos entender as motivações, as possibilidades e os limites da intervenção do Estado nas economias capitalistas, e a planificação econômica estatal aparecia para nós como um fator fundamental no estudo desta questão, por ser ela a melhor forma de se testar a capacidade do Estado de se impor sobre os agentes econômicos.

Para o entendimento do fenômeno da intervenção do Estado nas economias capitalistas, escolhemos um exemplo peculiar, que é o da planificação estatal na França do pós-1945, exemplo que se distingue daqueles que poderíamos chamar de exemplos “clássicos” da planificação no século XX, isto é, a planificação socialista, a planificação promovida por regimes nacionalistas do mundo em desenvolvimento e a planificação nos regimes fascistas e militaristas voltados para uma economia de guerra.

A planificação enquanto instrumento da política econômica do Estado surgiu na União Soviética e foi praticada nos demais regimes socialistas, a sua execução tendo sido, pelo menos em tese, facilitada por se tratar de economias estatizadas, mais facilmente obedientes ao poder político central. A planificação nos regimes nacionalistas do mundo em desenvolvimento (Nasser no Egito, Velasco Alvarado no Peru, Cárdenas no México, regime militar sul-coreano, regime nacionalista argelino, etc.) tinha a função de promover uma industrialização acelerada de economias ainda agrárias, o seu resultado tendo variado conforme o país.

No caso da Alemanha nazista, houve uma planificação econômica cujo objetivo era preparar o país para a sua política de expansão militar. Já no caso da França do pós-1945, trata-se de uma planificação estatal numa economia capitalista já industrializada (mesmo que não no nível das principais potências industriais) e sob um regime liberal-democrático de tipo burguês, diferente dos outros casos mencionados.

O que teria motivado uma economia capitalista já industrializada a adotar a planificação estatal como instrumento de uma política de desenvolvimento? A planificação foi de fato possível no quadro de uma economia em que os setores-chave estavam em sua maioria nas mãos de grupos privados? Estimulados por estas questões, realizamos uma pesquisa que cobre um período de três décadas da história francesa, os chamados Trinta Gloriosos (1945-1975), período de maior crescimento do país na história de seu desenvolvimento capitalista e período que se notabilizou por um dirigismo econômico apoiado em princípios keynesianos.

O objeto central da pesquisa é o Comissariado Geral do Plano (CGP), órgão planejador criado na França em 1946 e cuja influência se manteria forte até meados da década de 1970. A nossa pesquisa se concentrou, portanto, na planificação francesa no período de crescimento e dirigismo econômico que cobre os trinta anos seguintes ao final da Segunda Guerra Mundial, e, além da historiografia que trata do tema, apoiamo-nos, como principal fonte, na leitura dos seis planos econômicos elaborados pelo CGP entre 1946 e 1975.

A realização da pesquisa nos levou a considerar aspectos conjunturais importantes para a implementação da planificação econômica na França do pós-guerra. A planificação nunca poderia ser compreendida fora do contexto histórico em que surgiu. Assim, fatores como a crise econômica da década de 1930, a estagnação econômica e industrial da França às vésperas da Segunda Guerra Mundial, a derrota militar para a Alemanha nazista na campanha de 1939-1940, a ocupação militar alemã até 1944-1945 e a destruição parcial do país em função dos combates, são decisivos para explicar a ruptura que levou as elites dirigentes francesas a abandonarem o seu tradicional liberalismo econômico e a adotarem o dirigismo e o planejamento estatal.

Este contexto excepcional enfraqueceu politicamente os defensores do liberalismo econômico, assim como as próprias classes dominantes do país, vistas como incompetentes na condução da guerra (e responsáveis pela derrota de 1940) e como colaboradoras da ocupação nazista. Grupos políticos que já na década de 1930 pregavam uma reestruturação da economia francesa e uma modernização do seu setor produtivo ganharam, portanto, a força política necessária para influir na política do Estado francês do pós-1945.

A política de desenvolvimento do Estado francês no período 1945-1975 consistiu, num sentido mais geral, na modernização e na reestruturação de um setor produtivo (agrícola e industrial) já existente; não se trata, por exemplo, de uma política de industrialização de um país ainda agrário, como é o caso das nações do mundo em desenvolvimento (entre elas o próprio Brasil a partir de 1930) que instauraram regimes nacionalistas industrializadores.

Esta política francesa do pós-1945 consistiu, globalmente, nos seguintes aspectos: modernização das unidades industriais; aceleração da mecanização da agricultura; política de concentração do capital, isto é, estímulo às fusões de empresas com o objetivo de criar grupos mais fortes e competitivos a nível internacional (procurando romper assim com a tradição francesa da pequena e da média empresa); implementação de um modelo econômico misto com forte presença tanto do setor estatal (financiamento, energia e infraestrutura) como da iniciativa privada que controlava o setor produtivo; maior abertura econômica do país, rompendo com o tradicional protecionismo francês, abertura que seria acentuada a partir da criação da Comunidade Econômica Europeia (CEE) em 1957; política de bem-estar social (surgimento do famoso welfare state), com a criação da seguridade social no imediato pós-guerra.

Apesar da instabilidade política do pós-1945, decorrente de mudanças de regime (Governo Provisório do pós-guerra em 1944-1946, Quarta República em 1946-1958 e Quinta República a partir de 1958), a orientação da política de desenvolvimento do Estado francês permaneceu praticamente a mesma (com mudanças de ordem secundária e por razões conjunturais) até meados da década de 1970.

Com base nos seis planos econômicos que analisamos, constatamos que as linhas gerais da política de desenvolvimento pregada pelo CGP correspondiam às linhas gerais da política de desenvolvimento do Estado francês durante os Trinta Gloriosos, e que, portanto, a planificação francesa foi de fato um instrumento de formulação da política econômica vigente. A influência da planificação na trajetória econômica da França do pós-1945 pode ser também verificada na semelhança entre os resultados da economia francesa e as previsões dos planos; alguns planos eram mais bem-sucedido do que outros, e, portanto, a semelhança entre a previsão e os resultados podia ser um pouco maior ou um pouco menor dependendo do caso.

Além do mais, a planificação exerceu um papel ideológico importante no sentido de contribuir para uma arregimentação da nação francesa em torno da ideia do desenvolvimento. É importante ressaltar que a função política do CGP era a de promover análises e de apresentar diagnósticos da situação da economia francesa, de formular políticas de desenvolvimento e fixar metas a serem atingidas em determinado período (entre três e quatro anos dependendo do plano), e não de executar ele mesmo a política econômica; esta última função cabia ao governo, por meio de seus ministérios econômicos.

Os planos econômicos franceses, mesmo preservando as linhas gerais ao longo dos trinta anos estudados, se distinguiam entre eles em função de questões conjunturais, como a diferença entre os setores priorizados – dependendo do momento em que o plano era elaborado, alguns setores da atividade nacional eram privilegiados em detrimento de outros – e a evolução de uma orientação mais fortemente estatizante no imediato pós-guerra para uma liberalização relativa na década de 1960, quando a situação do país já voltara à normalidade, superando as penúrias e as destruições provocadas pelo conflito militar.

Se a situação excepcional do país em 1945 tornou possível uma ruptura na gestão dos problemas econômicos, com a adoção de um dirigismo estatal que as elites econômicas francesas numa situação normal não aceitariam, o contexto mudou com a refiguração do contexto internacional a partir do início da década de 1970, e mais especificamente com o desgaste e a estagnação econômica da União Soviética.

Este novo contexto motivaria o abandono do modelo keynesiano e de bem-estar social adotado ao final da Segunda Guerra: com uma ameaça de expansão comunista menor em relação às décadas anteriores, as elites dirigentes ocidentais da década de 1970 procurariam a partir daí promover, por meio do projeto neoliberal, um desmonte do modelo econômico misto até então vigente e um desmonte do welfare state, o declínio do perigo comunista tornando menos necessária uma política de concessões às classes trabalhadoras e às populações pobres em geral. O modelo social e econômico francês do pós-1945 não escapou à regra e de lá para cá tem passado por um desmonte progressivo.

Finalmente, o nosso objetivo era, com este livro, trabalhar um tema pouco conhecido pelos estudiosos brasileiros do desenvolvimento econômico, e discutir uma questão que por coincidência se tornou atual com o contexto da crise sanitária da Covid-19, que por sua vez tem exigido mais planejamento e mais ingerência estatal por parte dos diferentes governos.

Acreditamos que por trás do chamado negacionismo – isto é, a negação, feita às vezes de forma histérica, da periculosidade desta nova doença – há uma tentativa desesperada de salvar um modelo neoliberal ameaçado por um desafio para o qual ele não está habilitado. A luta contra a Covid é uma guerra, que exige uma economia de guerra, com um Estado interventor e planejador, assim como uma política social que traga a estabilidade necessária para os novos desafios que vêm pela frente.

*Guillaume Azevedo Marques de Saes é pós-doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP).

Referência

Guillaume Azevedo Marques de Saes. Capitalismo planejado: a planificação econômica na França dos “Trinta Gloriosos” (1945-1975). São Paulo: Independtly published, 2021, 132 págs.

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