Por que o inominável do Planalto permanece?

Clara Figueiredo, sem título, ensaio Filmes Vencidos Fotografia analógica, digitalizada, Florianópolis, 2017
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

Os grupelhos militar e civil em torno do inominável querem aproveitar o banquete até o último dia

Os estudos e as reflexões realizadas até agora sobre a permanência do capitão no Planalto não chegaram à melhor análise sobre o horror vigente no país. Deste modo, ele está a navegar em águas turvas (que o agradam), a saborear férias em meio à morte, a transformar o Estado brasileiro num pastiche e a zombar (em sua prática) da religiosidade e da mítica dos que o apoiam

Parece faltar a melhor sistematização dos distintos componentes da história, antropologia, ciência das religiões, psiquiatria, meio-ambiente, política, linguagens e outros saberes capazes de (talvez) intercambiar com o corpo e o espírito das pessoas que ainda sustentam seu nome para Presidente em outubro de 2022. Evidentemente, fala-se aqui da população desprendida de interesses em cargos e privilégios, porque os demais, envolvidos no mito de interesse, irão até o último ceitil a favor dos seus bolsos. Algum realismo na política ajuda: os grupelhos militar e civil em torno do inominável querem aproveitar o banquete até o último dia. O resto é resto. Até a ideologia virou burla e engano.

Somente o fato de possíveis 25% ainda sustentarem voto na figura do poder palaciano (e talvez na bancada legislativa que se arrasta atrás dele de boca e bolsos abertos) causa estupefação, pois o capitão não realizou em três anos uma única atitude justa e digna de chefe de Estado em face dos clamores do país. Seu percentual de governante e figura estatal é zero, pois tudo o que ele fez foi antigovernamental e principalmente antiestatal.

Evidentemente o colunista não considera gestos de chefe de estado em face de clamores humanos a assinatura de cheques e ordens de serviço. Por quê? Ora, o que vimos é que suas assinaturas foram forçadas, muitas vezes a contragosto, lastimadas, xingadas e equívocas. Assinar ordens de compra de vacina a par de intensa propaganda sobre remédios inócuos provoca um empate desastroso, um sentido do mal, a falsidade. Assinar ordens para auxílios emergenciais para os miseráveis é o sinal maior do desgosto do poderoso para com os infelizes empobrecidos, pois o que os empobreceu é o que o capitão ama, açula e promove: o emprego pessimamente assalariado, a instabilidade na relação de trabalho, a falta de oportunidades aos que estudam e a todos os que buscam trabalho. Fazer passar projetos para o uso geral de produtos altamente tóxicos (com desculpa malandra de produção agropecuária) é um ato de morte e não de vida, o que pesquisadores sérios já provaram.

Por acaso, seus eleitores de 2018 não viram e ouviram, desde o começo, que o capitão havia prometido destruir uma porção de coisas? Assim se fez. Visto que a cabeça do capitão é desregulada, o que aconteceu foi que ele procedeu à destruição aqui, ali e acolá, áreas e setores da vida nacional. Então terminou por destruir tudo o que fosse uma direção para o Estado brasileiro. Bolsonaro fez do Brasil um brasilzinho.

Aos que dizem que não há remédio para esses 25% de aficionados-eleitores do capitão, a questão não está no remédio – porque remediar em política é sempre má atitude – pois o que importa é o entendimento, a melhor explicação do fenômeno e consequente análise comparada do Brasil que ele conspurcou, humilhou, degradou, diminuiu e avacalhou diante do Brasil necessário, ou de um projeto exigente do Brasil profundo, que não é o dos jornais e da mídia, dos latifundiários, dos pobres em seu silêncio, dos intelectuais e suas múltiplas leituras, das organizações e instituições em si mesmas. Esse Brasil que irromperia da humilhação e da degradação perpetrada por ele, o inominável (pois de nada interessa seu nome, Jair, o mito e sim os atos representativos do mal) também seria resultado comparado dos saberes que trouxessem análises integrativas desse mal.

Ato contínuo, veríamos o mal em sua inteireza e seus detalhes. Doutro lado, o Brasil necessário.

Os atos comparativos em metodologia científica são difíceis e exigentes, mas sempre brilhantes quando se honra o hodos, o caminho sendo feito. Nesse movimento, não é possível trabalhar a pesquisa pela pesquisa, pois as populações, em sua maioria, sentem e demonstram seu sentimento diante do que se faz desde janeiro de 2019. Tais demonstrações de uma enorme população devem ser tidos e havidos como documentos de pesquisa. Além disso, os atos do inominável são óbvios em sua malignidade. Daí se parte. E a nova caminhada demonstrará o que não se fez, os abismos e vazios da governança, bem como os resultados que vão muito além da crise entre poderes, pedacinho do iceberg da falência do país. Compartilhar tal conhecimento é indispensável. Sem desculpa de pandemia, que se abateu sobre o mundo. O que ocorreu aqui foi por conta da desgraça do governante.

Reconheça-se que pessoas, grupos e movimentos sociais estão sendo repetitivos diante do horror representado pelo presidente. Até a linguagem e seus repertórios estão estanques, o que piora o estado de horror dos corpos e das mentes. E diante de comportamentos indesculpáveis (para sempre!) de figuras como Augusto Aras, setores da Polícia Federal, centrão ou centrões do Congresso, paus-mandados da mídia etc, arrefece o ânimo das pessoas, como se de fato tivéssemos de palmilhar o fado e seguir às urnas em outubro com o peso de uma brutal impotência. O inominável tem duas tropas, uma de ação direta e outra manobrável, o suposto eleitorado “cativo”. O conjunto das duas tropas, que vai do campo militar para o campo político e comunicacional, é volumoso (como também ocorreu na Ditadura, 1964-1985), foi arregimentado por ele.

A primeira tropa está a governar porque ganha vantagens, dinheiro, viagens, luxo, cargos e prestígio. Ainda que venham a ser esquecidos para sempre em breve. Mas para tal tropa importa o hoje, importam os próximos meses, as mudanças, acertos e inserções em cargos e prestígios mais altos. Mais tarde ela dará um novo jeito para não cair no opróbrio. Pior ainda é que essa gente encastelada (que dá carona farta ao capital e ao mundo da riqueza) tem muito pouco a ver com os 57 milhões de votos de 2018 no capitão. Comparada com à grandiosidade dos votos, trata-se de um grupelho de poder, presente nas três instâncias do governo e do estado. Uma gente que não teve uma única ideia inteligente sobre os negócios de estado e governo que fizesse o país avançar para um destino feliz e bonito. Nenhum deles e nenhuma delas, dos graúdos aos miúdos.

O bizarro e o catatônico neste governo não tem limites. Guilherme Amado noticiou no portal Metrópoles, em 28 de fevereiro, que organizações do Exército brasileiro responsáveis pela doutrina militar comparam a guerra na Ucrânia com a Amazônia, isto é, comparam melancia com queijo prato. O resultado da comparação leva a fortes apreensões pela pobre Amazônia, atacada pelas potências e seus aficionados de fronteiras ao norte. Mais e pior: a autodeterminação dos povos indígenas poderá provocar um projeto de secessão, a ruptura da Amazônia e sua apropriação externa. Nenhuma palavra de censura ao desgraçado grileiro graúdo, para o minerador sempre ilegal ou injusto (em razão dos materiais usados) e dirigida aos tantos incendiários.

O fim da picada, que não ocorreria em governo sério. Um ataque direto aos povos que garantiram o país, sua terra, suas narrativas, sua mundivivência, sua mística, sua gastronomia e seus muitos valores étnicos.  Só eles são atacados e, por extensão, os perigosos invasores. Conversa para amedrontar criancinhas ao pé do fogo em noite enluarada. Nada mais. Coisa para esquecer. Pena que ainda exista. De qualquer modo, a palavra autodeterminação é outro pastiche linguístico que nada tem a ver com os povos indígenas. Mas cabe dizer que um dia louvaremos com garganta forte nossos povos indígenas em razão do alto papel civilizatório que eles representaram e representam, agindo ao contrário do mundo branco e garantindo as florestas. A bênção, povos da floresta!

Quanto aos eleitores de 2018, hoje amargam dúvidas sobre seu futuro breve, seus dilemas de cidadania, seus remorsos e inquietações. Esses conterrâneos já fazem comparações, pois é impossível que o Brasil que se vê e se sente exale justiça, dignidade, serviço ao público eficaz. Mas muitas vezes a subjetividade das comparações leva ao nó na garganta e não aponta soluções. Carece-se da objetividade, de novos e adequados fatos diante dos olhos. E não se deve descrer das pessoas que depositaram um voto distinto do nosso, pois, de algum modo, nos compõem. São o nosso outro, nossa outra. Reverberam no eu. De algum modo sofremos juntos. Ainda que tenhamos justificativas diferentes. É possível que nos encontremos na transversalidade de novas análises e novas demonstrações e nos entendamos um pouco melhor.

O Brasil não pode ser entendido nos termos da sua velha mitologia. E menos ainda pelos momentos bons da solidariedade a favor da minoração dos dramas humanos e naturais, sempre piorados. A mitologia do brasileiro cordial, dos fortes sentimentos em relação ao outro, das conciliações, do caminho do meio e tanta coisa mais não existiu, como força, na realidade da vida colonial, imperial e republicana, exceto como fenômeno conhecido em qualquer lugar do mundo onde se deu algum diálogo e onde alguém deu atenção ao semelhante. Nada que nos caracterizasse, pois o contrário de todos os supostos valores já foi fartamente demonstrado pelas investigações científicas.

Quem nos formou foram os confrontos e as duras interações. Daí, as aprendizagens e os compartilhamentos, quer difusos, quer direcionados. Seguiu-se a construção das instâncias instituídas. Entende-se, pois, que as bárbaras diferenças salariais entre grupos sociais, os tribunais empacados por litígios de toda ordem, a legislação que desorienta o suposto cidadão, a crueldade dos assassinatos por tostões e sinecuras, tudo isso (e mais!) mostra cotidianamente o país real que construímos, especialmente na República de pés-de-barro, pois não se pode falar de Império e de Colônia sem, de imediato, entendê-las como excrecências.

As excrecências ainda estão a passar seu diapasão sobre a república diminuída. Por sua vez, não se viu um único gesto republicano do inominável, o que significa que ele fez piorar a república em muito, com apoio de seus grupelhos de poder nas diversas áreas e agências de governo. É o caso em que a governança ataca violentamente o Estado. Não o mata, mas deixa manco e parcialmente estuporado.

Nada pior para as próximas eleições que a presença do inominável. Tudo seria mais digno sem ele e seus asseclas, bem menos do que 56 milhões dos eleitores. É verdade que se tivéssemos tido competência e justiça para mandá-lo para casa e julgá-lo devidamente pela imensidão de males que causou ao Brasil, os estudos e investigações caminhariam noutra direção e mesmo os eleitores de antes teriam compreendido o fenômeno. No entanto, milhares de documentos negados, escondidos e pinchados no lixo pelo Lira e sua gente; outros tantos metidos nos escaninhos do suposto sistema de justiça e sua indecorosa “letra da lei”; tudo isso pareceu um carnaval do horror, que dá razão às profundas dúvidas na cabeça dos eleitores e cria a besta sensação de que existe bipolaridade eleitoral, receptiva de uma tal terceira via.

No entanto, não é mais justo discursar sobre polarização no rumo das eleições de outubro. Quem polariza? O mal contra o bem? o certo e o errado? esquerda e direita?  Não há polarização. Os acertos e os acordos ainda esperam melhores decisões e tudo se dará no campo liberal, light, leve para quem enuncia e dramático para quem trabalha, estuda, procura emprego e vive o cotidiano violentado pelo liberalismo.

O asfaltamento de candidaturas rumo a outubro considera o suposto “espírito” do povo, pensado genericamente, seu escorvamento de posições ideológicas e sua falta de interesse por elas. Daí avulta o pragmatismo, que até pode permitir novas candidaturas com algum novo caminho e apoio, mas a partir do quase nada. Será, se houver, um acontecimento. O tertius possível exigirá o máximo de confronto com a realidade e não será um prêmio; ao contrário, um tremendo desafio.

O mal da história é o candidato ainda no poder. A rigor não é uma candidatura e sim um estigma, um mal-feito, uma promessa do pior, do horror sem atenuação. Nessas águas não poderão navegar os pais que pensam em filhos que sorriam e creiam no seu país, em trabalhadores e trabalhadoras que confiem em seus talentos e vocações, em estudantes que exijam universidade com qualidade acadêmica e social, assim como as pessoas que respeitam a vida de todo o povo brasileiro e os territórios da diversidade que garantam um futuro digno, solidário e bonito.

Ruim, ruim demais que tenhamos sido incapazes de destroná-lo, a ele e seu séquito. Deveria, no entanto, ser natural seu desastre eleitoral, pois para além do voto, importa a vida. Que o inominável desconhece e com a qual brinca, especialmente a vida dos outros e outras.

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

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