Por RODRIGO MAIOLINI REBELLO PINHO*
Falar de um solo sem cisões decerto não é tratar deste Brasil, ainda pátria de mercadores sem rubor
O assassinato de Moïse Kabamgabe põe diante dos olhos do mundo, uma vez mais, como em uma anatomia em corpo vivo, as tripas disto que se chama Brasil. Expõe um passado que não foi superado, que tampouco subsiste como mero resquício, mas vive como legado. Como mortos agarrando vivos pelos cabelos, pulsa a via colonial escravista de objetivação do capital.
Ora, o que é o infame quiosque Tropicália senão um empreendimento comercial voltado a satisfazer estômagos e fantasias gringas? O que é o Brasil senão uma máquina de moer a própria gente, que se alimenta de sua carne e de seu sangue, para satisfazer necessidades estrangeiras?
Um Moïse torturado e assassinado à beira da praia, as vagas que vem e vão a marulhar, o vento a assoviar, alvos e turísticos casais a comprar cerveja gelada, passando os olhos com desassombro por um corpo negro amarrado e amordaçado, já inerme e inerte, como se de um componente natural da inútil paisagem se tratasse.
O Atlântico ao fundo do Tropicália talvez não fosse a paisagem mais apropriada ao martírio de Moïse, mas sim a orgânica lama tinta de sangue a escorrer dos morros de Petrópolis pelos braços do capital, que destrói os dois únicos mananciais de toda riqueza: a natureza e o ser humano.
A morte de Moïse Kabamgabe nos dá ganas de clamar que Colombo feche a porta desses mares. Pois Moïse escapou da vida no Congo para encontrar aqui a morte. Antes da realidade última ainda experimentou a exploração. Trabalhou no Tropicália, serviu turistas, dormiu na areia, trabalhou no dia seguinte, não recebeu, exigiu o que era seu e, por isso, morreu. Morreu no passeio público, atrapalhando o tráfego, pois sua mãe, como uma Antígona, não aceitou o silêncio iníquo e parou o trânsito de carros, cujo incômodo assim deu à luz a morte de Moïse.
Além da esperança, estranha nessa terra, Moïse aqui chegou carregando nas malas nada além das marcas todas dos construtores todos estranhos dessa terra: trabalhadores, negros, imigrantes. Mas se Moïse não nasceu expropriado, não nasceu negro e não nasceu imigrante, se foi o mundo quem o tornou trabalhador, negro e imigrante, há de se perguntar, uma e mil vezes, se um solo social que não fosse cindido em classes, que não fosse desirmanado em raças, que não fosse cravejado de Estados nacionais, se seria um tal solo fértil para que vicejassem o fato, os autores e a vítima do crime horrendo?
Mas falar de um solo sem cisões decerto não é tratar deste Brasil, ainda pátria de mercadores sem rubor, ainda terra que já no nome revela o seu rosto sanguíneo, o seu fim mercantil.
De tudo o que se possa dizer, nada há de consolar os que ficam da tão injusta partida de quem se vai tão torpemente tolhido de receber o mínimo que lhe era devido pelo capitalismo bandeirante, liberticida e de butim.
Resta, todavia, aos vivos, viver. E, vivendo, revolver este solo putrefato, a fim de que jamais a ele volte um Moïse em cinza, mas dele brote um Moïse em flor.
*Rodrigo Maiolini Rebello Pinho é mestre em história pela PUC-SP.