De que matéria se faz uma guerra?

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Por RAQUEL VARELA*

O capitalismo, de todos os lados, que está à beira do precipício e dá um passo em frente com a guerra na Ucrânia

A grande maioria dos historiadores é suficientemente virtuoso para esquecer os motivos frívolos que os fautores das guerras apresentam. Discursos dramáticos, propaganda de valores morais auto-atribuídos, tudo com os anos se enche de pó em caixas que acabam, quando muito, num livro de curiosidades à venda num aeroporto. O assassinato do arquiduque Francisco Fernando é o fato menos relevante da Primeira Grande Guerra, ninguém ensina que é a causa da guerra. Mas afinal qual é a razão da guerra em curso?

Durante a Primeira Guerra Mundial, o jornalista John Reed, convidado a discursar num clube das classes dirigentes dos EUA, deu uma resposta contundente à pergunta que os seus anfitriões lhe fizeram: “Quais as motivações desta guerra?” “Profits”, respondeu ele. Lucros. A grande motivação dessa como de outras guerras.

Nem todos os metais raros têm a mesma importância. Esta é definida por três razões: a sua disponibilidade (a sua raridade), localização e importância na cadeia de produção. Metais raros são um grupo de cerca de 60 (segundo dados de 2010 e 2014).

Devido às suas propriedades óticas, químicas e magnéticas, eles são fundamentais para baterias de carros, eólicas, indústria aeroespacial, medicina, robótica, automação, segurança cibernética, biotecnologias, nanotecnologia, iluminação, catalisadores, indústria militar.

Entre eles há 17, os mais estratégicos, considerados como “terras raras”, 15 mais o ítrio e o escândio. Em geral, estes materiais são produzidos em muito pequena quantidade (por vezes escassas toneladas), muito longe da produção de cobre, por exemplo – produzem-se 15 milhões de toneladas de cobre anualmente. Para se ter uma ideia do que falamos, algumas das matérias raras atingem um preço superior ao do ouro (50 mil ou mais euros por quilo).

Parte destes materiais são considerados críticos para a União Europeia devido à “vulnerabilidade do abastecimento”, ou seja, vêm de países onde há conflitos e guerras, há monopólios, ou por fatores ambientais. O grau de vulnerabilidade é ainda definido pelo grau de necessidade nas indústrias mais lucrativas. É o caso das terras raras, do crómio, tungsténio, antimónio, índio, nióbio, gálio, silício, grafite, magnesite, antimónio, entre outros. A produção destas matérias-primas está muito concentrada em poucos países, com a China à cabeça, a Rússia (grupo das platinas) África do Sul, Brasil, Turquia, Congo, Estados Unidos e Cazaquistão.

As terras raras (o conjunto de 17 materiais) não são raras pela quantidade em que ocorrem, mas pelas necessidades mundiais e concentração em poucos países. São aplicadas nos ímanes das eólicas, painéis solares, lâmpadas de baixo consumo, baterias dos carros elétricos, catalisadores, lasers, mísseis, óculos de visão noturna, indústria aeronáutica, aparelhos médicos de diagnóstico, submarinos. Sem eles não há “transição energética”. As reservas mundiais estimam-se em 124 milhões de toneladas, das quais 44 milhões estão na China, 22 milhões no Vietname, 22 milhões no Brasil, 12 milhões na Rússia e 6 milhões na Índia. Recordo que destes cinco países, quatro abstiveram-se de condenar a invasão russa, só o Brasil votou a favor. A China detém não só as maiores reservas, como produz atualmente 90% das terras raras do mundo.

A Rússia e a Ucrânia produzem 25% do trigo mundial e, em alguns casos, a Rússia metade dos adubos, essenciais para a produção de soja no Brasil, carne na Argentina, por exemplo. A União Europeia é dependente do gás e petróleo russos. A substituição do gás da Rússia pelo gás dos EUA tem custos materiais e ecológicos insuportáveis (na produção, porque parte em fracking; na liquefacção, gaseificação, transfer, transporte). Para liquefazer o gás norte-americano e transportá-lo é necessário arrefecê-lo a 162 graus Celsius, com um brutal gasto de energia e poluição.

Os gasodutos europeus estão construídos de leste para oeste e ramificam-se quando entram dentro de cada país, inverter isto tem custos astronómicos. É como uma barragem para um regadio e não o contrário. A anunciada venda dos EUA à União Europeia que fez reluzir Joe Biden não cobre nem 10% do que a União Europeia importa este ano da Rússia. Além disso, a imaculada Noruega, com o parque de automóvel mais eletrificado do mundo, tem como contraponto a cidade de Antofagasta, no Chile, que exporta minérios para as limpas “economias verdes” e que tem uma das taxas de cancro respiratório mais altas do mundo (10%).

Os seis metais industriais mais produzidos no mundo são o ferro, alumínio, crómio, cobre, manganês e zinco e são fundamentalmente produzidos na China, Rússia, Índia, Brasil, EUA, Canadá, Austrália, África do Sul, Cazaquistão e Turquia. Nenhum país europeu. O urânio, essencial para a energia nuclear, que a UE defende como alternativa, tem no Cazaquistão 43% das reservas mundiais.

Uma curiosidade: cada telemóvel contém 65 a 70 materiais diferentes, parte deles raros, entre os quais oito “terras raras”; cada carro elétrico tem entre nove e 11 quilos de “terras raras”; cada um dos grandes aero geradores precisa de uma tonelada de metais raros.

O Médio Oriente está devastado por ser alvo da disputa pelo petróleo, o Norte de África, do gás, a Nigéria, do petróleo, a guerra de Cabo Delgado é por estes recursos, a do Iêmen e do Ruanda também foi. Há no mundo 82 milhões de refugiados, a fugir das guerras desta disputa mundial. Hoje, tudo indica que a Ucrânia é o palco de guerra por uma redefinição dos blocos econômicos e militares, em que a disputa destas matérias-primas à escala mundial é essencial para uma economia baseada no lucro e não nas necessidades da vida.

A única economia verde sustentável seria a redução do horário de trabalho sem redução salarial, encerramento de fábricas à noite, melhores relações cidade/campo, fim da especulação imobiliária, melhores transportes públicos, tempo de lazer, fim da obsolescência programada. Em vez disso, fábricas laboram noite adentro, retirando o último sopro de força anímica aos milhões de trabalhadores que na UE, sem qualquer necessidade, trabalham de noite. O modelo de acumulação esgota os trabalhadores e esgota os recursos, e leva o mundo para a guerra. É anti-ecológico, com ou sem baterias de lítio. A militarização da UE seria atirar gasolina para este fogo. E, ao contrário do que se pensa, faltam bombeiros na UE.

A União Europeia assegura-nos que a paz duradoura e a estabilidade política no continente e no mundo têm como elo fulcral de mediação a UE, que seria o reduto da democracia e dos direitos humanos, salvaguardando os princípios de um livre mercado regulado enquanto última instância de toda e qualquer liberdade. As suas regras, a um só tempo, “firmes e flexíveis”. Os seus leitmotifs combinariam a solidariedade e a eficiência. Durante 30 anos a fio – de 1992 a 2022 – venderam o peixe da chamada “Cultura de Paz” como produto fresco das águas europeias. Mas há algo de podre neste reino arquetípico: as disputas por matérias-primas, e os maiores conflitos armados do mundo na história contemporânea, tiveram a mão de “oligarcas” e Estados europeus.

A prazo, creio, que iremos olhar esta guerra – que porventura irá parar em breve, mas pode tornar-se mundial dentro de poucos anos – como uma tentativa dos Governos ocidentais de socorrerem as suas empresas para tentarem sair da crise estrutural de acumulação. Crise provocada pela intensificação da concorrência na globalização, avançando para a exploração direta, sem intermediários, de matérias-primas da Rússia, e para a disputa com a China destas matérias e mercados. Sem estas matérias-primas não haverá reconversão industrial 4.0 e acordo “verde”, o “milagre europeu” será impossível (o custo da reconversão verde sem mudar de modelo económico seria a destruição do Estado social pela canalização de recursos da saúde, educação e reformas para a restruturação “verde” e a economia de guerra).

Do outro lado são o capitalismo russo e o capitalismo de Estado chinês e – quem sabe? – o indiano que disputam à escala mundial os lugares no pódio da acumulação. É o capitalismo, de todos os lados, que está à beira do precipício e dá um passo em frente. Os motivos apresentados são a defesa do “mundo livre” de um lado, da “segurança” do outro. A Ucrânia é hoje o palco regional de uma disputa mundial. Quem no terreno morre são os filhos das classes trabalhadoras e médias, quem paga a guerra somos nós, contribuintes, com a degradação da qualidade de vida, saúde, educação. Bem-vindos à barbárie!

*Raquel Varela, historiadora, é pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa. Autora, entre outros livros, de Breve História da Europa (Bertrand).

Publicado originalmente no jornal N.

 

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