Somos todos SUS?

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Por PAULO CAPEL NARVAI*

Estão em curso batalhas decisivas sobre o futuro do sistema universal de saúde brasileiro

Após quatro meses e quase duas centenas de conferências livres realizadas em todo o Brasil, encerra-se em São Paulo, em 5 de agosto, a Conferência Livre, Democrática e Popular de Saúde-2022. Lançada em Brasília, na Câmara dos Deputados, pela Frente Pela Vida em 7 de abril, o Dia Mundial da Saúde, a conferência, conforme a expectativa dos organizadores, se constituiu em um amplo processo de participação social que reuniu, presencial e virtualmente, milhares de pessoas para analisar a situação da saúde da população brasileira e as condições de funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS).

Como a saúde está fortemente conectada às condições de vida, aos ambientes e aos modos de produzir bens e serviços, também esses aspectos estiveram na mira dos participantes, tendo como referência as políticas econômicas e sociais em curso no país, sob Jair Bolsonaro e a hegemonia do ultraliberalismo, cujo leitmotiv é o extermínio de direitos, com preferência mortal para os direitos sociais, como educação e saúde.

Nesse período foram realizadas, nas mais diferentes condições e recursos, em todo o Brasil, organizadas por áreas territoriais ou áreas de atuação e modalidades assistenciais, como a saúde mental e a saúde bucal, as conferências que expressaram as preocupações e proposições dos participantes sobre a saúde e o SUS.

Usuários de serviços públicos, gestores, lideranças e ativistas de movimentos sociais, parlamentares, pesquisadores, sanitaristas e profissionais com atuação no SUS destacaram-se entre os cidadãos que, tendo o que dizer sobre saúde, participaram ativamente desse processo mobilizados em torno do direito social à saúde, com o objetivo de propor rumos a seguir para enfrentar os problemas do setor, a partir dos mais variados enfoques e olhares, notadamente os relacionados ao SUS e ao conjunto das políticas públicas que, em seu conjunto, devem ao se efetivarem em suas esferas, produzir saúde e não doenças e agravos à saúde.

Como não poderia deixar de ser, o SUS foi um dos eixos de grande importância estratégica do evento-processo representado pela Conferência Livre, Democrática e Popular de Saúde-2022, pois é em torno dele que estão em curso batalhas decisivas sobre o futuro do sistema universal de saúde brasileiro, contrapondo, de um lado, segmentos vinculados ao sistema financeiro, interessados em aprofundar a transformação de serviços de saúde em mercadorias e, de outro, segmentos sociais para quem o direito à saúde, por suas características, não pode ser objeto de negócios.

É um embate desarmado, mas feroz, travado em meio a tentativas de impor narrativas que, mentindo sobre a atuação do governo Bolsonaro, buscam recontar a trágica evolução da pandemia de Covid-19 no Brasil. Em disputa estão, porém, bem mais do que o destino dos recursos financeiros alocados diretamente ao SUS, mas sobretudo o papel que o conjunto dos serviços públicos de saúde pode desempenhar no conjunto da economia, seja como comprador de materiais, equipamentos e insumos em geral, dentre os quais medicamentos, seja como indutor de políticas e regulador do mercado, no seu âmbito de atuação. Essa característica do SUS o coloca no centro das estratégias de proteção social, com todas as implicações econômicas e, sobretudo, políticas que advém dessa condição.

A esse respeito convém, aos segmentos interessados na defesa do direito social à saúde, aprender com os muitos erros cometidos desde a criação do SUS, em 1988.

Um desses erros pode ser sintetizado na expressão “somos todos SUS”, que ganhou força no contexto de realização da 12ª Conferência Nacional de Saúde (Brasília, 7 a 11 de dezembro de 2003), logo no início do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Embora se trate de uma ilusão, derivada da constatação – esta sim, correta – de que “todos usamos o SUS”, a ideia falsa de que “somos todos SUS” volta e meia sensibiliza corações e mentes, e reemerge com grande poder persuasivo.

Com efeito, as ações realizadas cotidianamente por nosso sistema universal de saúde nos alcançam a todos de algum modo, seja quando recebemos cuidados assistenciais, seja ao sermos irremediavelmente atingidos por suas ações de alcance coletivo, nos âmbitos da promoção e da vigilância, dentre as quais a mais reconhecida e muito valorizada pela população é, para desespero de negacionistas e antivacinistas, a aplicação de vacinas. A mais recente demonstração desse apreço está sendo vista agora, em plena pandemia de covid-19. A população ignorou as muitas manobras antivacinistas postas em prática pelo governo Bolsonaro e buscou por vacinas para se proteger do coronavírus.

Mas se é correta a afirmação de que todos usamos o SUS, não se pode dizer que “somos todos SUS”, pois a vida tem demonstrado o oposto. Aliás, é um risco acreditar nisso e divulgar isso – ainda que esse desejo seja legítimo. É que essa crença, infelizmente, não condiz com a realidade dos fatos sobre o SUS e assim, ao invés de fortalecer, fragiliza os que o defendem, como instrumento institucional indispensável para efetivar o direito de todos à saúde. Nas condições históricas em que o SUS vem sendo diariamente construído – e desconstruído – no Brasil, muita gente que se opõe ao reconhecimento do direito social à saúde, consagrado nos artigos 6º e 196 da Constituição de 1988, aproveita-se dessa ilusão para, fazendo-se passar por defensores do SUS, agredi-lo desde o seu interior, ou externamente.

São muitas as táticas usadas com esse objetivo e quem efetivamente defende o SUS deve estar sempre atento aos subterfúgios e postergações utilizados para enfraquecer institucionalmente o sistema. O melhor a fazer, nesse enfrentamento, é identificar as armadilhas e, não perdendo tempo com conversa pra boi dormir, contrapor proposições que melhorem a qualidade das ações desenvolvidas pelo SUS e o fortaleçam institucionalmente.

No encerramento da Conferência Livre, Democrática e Popular de Saúde-2022 a expectativa não pode ser outra que não a indicação clara de como o SUS deve esquivar-se das “contribuições” que os setores pró-mercado lhe querem dar, supostamente “levando para o serviço público a excelência da administração privada”.

Para isso, é muito importante que a Conferência identifique os principais “nós críticos” da atual conjuntura do SUS e indique possibilidades para desatá-los.

Um desses nós, diz respeito à fragilidade administrativa do SUS, que não conta com um órgão federal para apoiar os municípios em suas limitações para fazer a gestão do SUS no seu âmbito territorial. Capitais estaduais e grandes cidades não se ressentem tanto dessas limitações, mas algumas centenas de municípios simplesmente não dispõem de capacidade administrativa, na chamada administração direta, para dar conta da gestão do SUS nos seus territórios, sobretudo em tempos de saúde digital e de complexos sistemas de processamento de dados.

Ao bem-sucedido modelo de governança do SUS, com as comissões de gestão interfederativas respondendo muito bem às demandas da dimensão política da gestão, não corresponde, porém, até hoje, uma potente organização da administração pública com a missão de apoiar os entes federativos municipais, fazendo cumprir administrativamente as decisões tomadas pelos gestores. Comissões intergestores não fazem compras, nem mantém vínculos trabalhistas, para dar apenas dois exemplos de competências administrativas cruciais à gestão no nível local.

A extinção do antigo INAMPS pela Lei nº 8.689, logo após ser incorporado à estrutura do Ministério da Saúde, em 27 de julho de 1993, deixou um vazio jamais preenchido em termos administrativos. O pressuposto daquela extinção, de que os municípios teriam capacidade administrativa, direta, para gerir seus sistemas municipais de saúde, revelou-se um equívoco, cometido por defensores do SUS. Vem acontecendo exatamente o oposto: os municípios vêm privatizando crescentemente seus serviços e sistemas e o que se constata é que se reproduz, de modo acelerado, justamente o que se buscava com a extinção do INAMPS, em 1993: dar um basta à privatização dos serviços e à corrupção que sempre acompanhava a privatização, ambas toleradas pelos governos da ditadura civil-militar imposta ao país em 1964.

O nível regional de gestão é, no presente, o que mais se ressente dessa ausência da administração pública. Nesse contexto, é crescente o número de municípios, grandes e pequenos, que pensam estar resolvendo essa dificuldade ao privatizar serviços e até mesmo todo o sistema municipal de saúde do SUS. Mas enganam-se profundamente, conforme demonstram várias pesquisas de boa qualidade sobre o tema. Exceções, e decerto que as há, apenas confirmam a regra de custos ampliados, qualidade questionável e insatisfação dos usuários.

Outro “nó crítico” se refere a uma Carreira de Estado para os profissionais do SUS, conforme enfatizei em artigo publicado no site A Terra é Redonda. É urgente avançar em proposições que preencham esse vazio, seja porque não há SUS sem os profissionais que lhe dão vida, seja porque é preciso fixar, sempre em diálogo interfederativo democrático com as entidades representativas desses profissionais, parâmetros para vínculos trabalhistas a serem observados em todo o país. Em milhares de municípios brasileiros não são precários apenas os vínculos trabalhistas com o SUS, via administração direta municipal ou por entidades de propriedade particular – como as denominadas Organizações Sociais de Saúde –, mas é também precaríssima a proteção previdenciária desses profissionais.

Por essa razão, é preciso criar, com urgência, um quadro próprio de previdência social, de base federal, para esses trabalhadores e seus dependentes, pois isto não será resolvido, adequadamente, por pequenos e médios municípios. Sem uma intervenção previdenciária federal, os profissionais do SUS seguirão desprotegidos, sem qualquer dúvida, na imensa maioria dos municípios brasileiros. Fala-se, a propósito, de modo ainda mais ampliado, em uma Carreira de Estado da Seguridade Social, da qual a Carreira-SUS seria um dos pilares, ao lado da própria previdência e da assistência social, na perspectiva da valorização e profissionalização do conjunto dos servidores públicos da República Federativa do Brasil.

Os “donos do poder”, os patrimonialistas e os que concebem o Estado como um grande balcão de negócios não querem, decerto, nem ouvir falar dessas carreiras e da profissionalização de servidores públicos. A virulência com que esses setores e seus ideólogos reagem a essas proposições dá, por outro lado, a dimensão do acerto político que é lutar por elas.

Ao lado do subfinanciamento crônico do SUS, agravado pela aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como “teto de gastos”, a falta de um órgão administrativo nacional para o SUS e a carreira de Estado para seus profissionais, devem ser enfatizados dentre os problemas que o vêm atingindo fortemente no presente. É preciso dar solução adequada a esses problemas. Sem enfrentá-los, será inútil reiterar que “somos todos SUS”, pois, de fato, enquanto muitos defensores do SUS repetem isto, na vã esperança de que fazendo-o seu desejo se realizará, os inimigos do SUS não se iludem e tratam de impulsionar seu projeto mercantil de negação do direito à saúde.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica).

 

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