O documentário como arma política

Sergio Sister, 1970, ecoline e crayon sobre papel, lápis e caneta hidrografica, 32x30 cm
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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Comentário sobre a obra do cineasta Michael Moore

Pode-se creditar a Michael Moore um feito extraordinário: elevar o documentário às alturas de arma política. Começando por Roger e eu, continuando com The big one e culminando em Tiros em Columbine, para depois completá-los com Fahrenheit 9/11, Michael Moore traça uma trajetória cuja importância se mede pelos temas a que se devota.

Nos dois primeiros, a responsabilidade – jamais cobrada – das multinacionais pelos crescentes índices de desemprego torna-se transparente. Em Tiros em Columbine, a questão da criminalidade infantil, que se espraia pelos Estados Unidos, com crianças assassinando outras crianças, colide com outra até agora intocável, que é o controle da venda de armas. Documentário investigativo e engajado da melhor qualidade é a contribuição desse cineasta, cuja dedicação foi finalmente reconhecida quando o filme obteve os prêmios maiores da 26ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em seguida no de Cannes, e por último o Oscar de melhor filme em 2003. Em Fahrenheit 9/11, volta à carga com os crimes de colarinho branco.

Depois destes e mais um filme de ficção, dois livros e um programa de tevê, o mundo começou a prestar atenção nesse gordo bonachão com seu andar bamboleante de joelhos varos, envergando boné de beisebol e óculos, que pratica a candura. O agitador Michael Moore vem a ser um elo na linhagem da sátira de língua inglesa, que abriga tanto Swift quanto Mark Twain; ou, mais próximo, James Thurber. Até a pouco, nosso autor tinha apenas dois alvos, o desemprego e o armamentismo; mas depois arranjou mais um, o hoje ex-“presidente” George W. Bush, de cujo título jamais retirou as aspas.

Narrador e protagonista de suas obras, ele dedica-se com toda a pachorra a uma variante da desobediência civil que, optando pelo humor, consiste em ser chato e fazer perguntinhas impertinentes. Inaugurou uma novidade no documentário, qual seja a de estar presente diante das câmeras o tempo todo, violando a convenção da objetividade – o que abriu uma discussão sem fim entre especialistas.

Seu livro Stupid white men – Uma nação de idiotas (2002) tem na mira as contravenções de colarinho branco. Logo de saída, conta como foi montada, meses e até anos antes das eleições nos Estados Unidos, a fraude que levaria o perdedor à presidência. É de estarrecer. O candidato republicano desencavou um obsoleto dispositivo legal na Flórida – recapitulando: onde o primeiro-irmão era governador e onde se perpetraria a falcatrua final –, segundo o qual não pode votar quem cumpriu pena. Ora, a maioria dos condenados norte-americanos, como se sabe, é constituída por negros, os quais, como se sabe também, votam no Partido Democrata. Impediu-se de votar até quem tinha multa de trânsito. A própria superintendente das eleições no estado recebeu uma carta proibindo-a de ir às urnas. Tudo isso, muito antes da questão da recontagem. Para agravar o quadro, quem investigou e descobriu a operação, tarde demais, é claro, foi a BBC – inglesa – porque os nativos não se interessaram.

Mas não fica só nisso. Em seguida, dá-nos a radiografia de quem é quem na gangue que se apossou do governo. Mostra como os direitos humanos vão sendo erodidos por um sistema que beneficia os milionários, enquanto míngua o atendimento à saúde e o desemprego avulta. Por seu turno, a instituição educacional vem preparando mais incompetentes e semianalfabetos, ao mesmo tempo em que o racismo persiste sob disfarces insidiosos.

Uma ida aos bastidores da reciclagem do lixo revela como se destina a tapar os olhos do povo, quando na verdade o ar e a água sofrem poluição permanente para aumentar os lucros industriais. Os políticos não passam de uma caterva de asseclas da plutocracia: para compensar, assiste-se à proliferação das penitenciárias, negócio sinistramente em expansão. E ainda mais, muito mais: eis Michael Moore em sua melhor forma, esgrimindo com desassombro a arma que elegeu – o riso.

Seu estilo é cândido. Começou por espantar-se quando sua cidade natal, Flint, no Michigan, viu a única fonte de emprego, a General Motors, fechar a fábrica e transferir-se para o México, deixando para trás 30 mil desempregados. Não custa lembrar que a General Motors é “a maior empresa do mundo”. E a filial de Flint estava batendo seus próprios recordes de lucros nos últimos anos. Michael Moore então formulou uma de suas perguntinhas, que vão à jugular do problema: por quê? Por que mudar-se para o México, deixando atrás de si os escombros de uma cidade entregue ao caos, à calamidade, à anomia, à criminalidade, quando os lucros estão em alta? Para poder economizar dez centavos no salário por hora, descobre ele.

Bateu então de porta em porta, tentando avistar-se com o presidente da General Motors, o Roger Smith do título de seu primeiro documentário, Roger e eu (1989), e naturalmente foi sendo barrado. Mas vai disparando a perguntinha a quem encontra pela frente e registrando os resultados, os negaceios dos executivos, a truculência dos seguranças, o visível vexame dos relações públicas. E, embora o assunto seja tétrico, o espectador não consegue deixar de rir.

O documentário seguinte, The big one (1997), focaliza a turnê de lançamento de seu primeiro livro, Downsize this! (1996), que poderia ser traduzido para: Enxugue isto! Trata de aprofundar a perquirição, penetrar em outros conglomerados, tentar entrevistar seus empresários, para dar uma ideia do processo desta fase da globalização que cuida de enxugar, flexibilizar, terceirizar, eliminar a redundância etc. Dê-se o rótulo que se dê, aponta na mesma direção: o desemprego.

Seu único filme de ficção tem passado várias vezes na tevê a cabo, enquanto os dois primeiros documentários bem menos, e só na calada da noite. Operação Canadá (Canadian bacon,1995) ataca a mania armamentista interna dos Estados Unidos, onde as pessoas acham que a livre aquisição, posse e porte de armas é um direito democrático, qualquer limitação sendo um ultraje à Constituição. E nem a ocorrência de atos de terrorismo como o de Oklahoma City ou os assassinatos em massa cometidos por crianças, que se avolumaram recentemente, pode dissuadi-las. O filme põe em cena um presidente pacifista que só pode obter reeleição em tempos de pós-Guerra Fria – como sua equipe logo diagnostica – declarando uma guerra.

Segue-se a correria para escolher o inimigo. A Rússia, que aguentou meio século e se arruinou por isso, não topa. O alvo afinal selecionado é o Canadá. Os motivos, todos divertidíssimos, vão desde a limpeza do país, ausência de criminalidade e conflito racial, até a tradição de paz, que o estigmatizam como socialista. Os serviços secretos então se encarregam de encenar atentados terroristas e atribuí-los aos relutantes canadenses, para arrastar a opinião pública norte-americana à guerra. O humor, convenhamos, é um tanto negro, e às vezes fica meio difícil divertir-se com o cinismo dos dirigentes e a sanha belicista dos cidadãos comuns. Esse filme, de escassa repercussão, depois inspiraria muitos outros que copiam seu esquema central de criar uma guerra imperialista para reforçar posições políticas internas.

Tiros em Columbine, centrado na proliferação das armas na sociedade civil, traz, entre outros achados, um depoimento de Charlton Heston, que tem a honra de ser o presidente da Associação Nacional do Rifle, a qual defende com furor a liberdade de compra e posse de armas, como cabe a uma peça do lobby da poderosa indústria bélica. O ator tem um desempenho hidrófobo, que as más línguas estão dizendo ser o melhor de sua carreira de canastrão. Informações nada inocentes que Michael Moore avança: a Lockheed – fabricante de mísseis nucleares e beneficiária do maior contrato de defesa do governo – é também o maior empregador em Littleton, distrito da cidade de Denver (Colorado) onde o massacre ocorreu. E assistimos ao cineasta, atendendo ao anúncio do North Country Bank, que tem agências na região setentrional de Michigan, seu estado, ganhar legalmente um rifle automático como bônus por abrir uma conta.

No histórico dos documentários de língua inglesa, Roger e eu foi campeão absoluto em número de espectadores, até ser superado por Tiros em Columbine. Os livros, cada um a seu tempo, encabeçaram durante meses a lista dos mais vendidos do New York Times. Os prêmios se sucedem, seja em Cannes, seja em São Paulo, ou até mesmo em Hollywood. Só se pode torcer para que Michael Moore, após tornar-se uma celebridade, mantenha-se firme nas veleidades libertárias. Enquanto isso, podemos acompanhar suas peraltices pelo site www.michaelmoore.com. Entre elas, para surpresa do espectador, a engraçadíssima ponta que faz em Bilhete premiado (2000). Impagável como um onanista carola e por convicção por motivos religiosos, isto é, para proteger-se do sexo e ficar imune às tentações. Além do mais é asmático e a todo momento usa a bombinha para debelar suas crises de asma.

Ultimamente, o movimento pacifista que condena a invasão do Iraque multiplicou as vozes a se elevarem em protesto. Quanto a Michael Moore, após as invectivas na cerimônia do Oscar e um clipe contra a guerra, veio com chumbo grosso. Já que seu último filme rendeu quinze vezes o orçamento, os investidores se engalfinharam para financiar o novo projeto, Fahrenheit 9/11, sobre as consequências do atentado ao World Trade Center. Mel Gibson saiu vencedor da disputa, através de sua produtora Icon. Ao ser lançado antes das eleições presidenciais de 2004, o filme fez, lamentavelmente em vão, campanha contra a reeleição, revelando o envolvimento dos Bush com os Bin Laden em transações de petróleo e de indústria bélica.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac/Ouro sobre azul).

 

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