SUS estatal – o que isso significa?

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Por PAULO CAPEL NARVAI*

A discussão sobre a estatização do SUS é ociosa, pois o sistema é propriedade do Estado brasileiro

Em meio ao reconhecimento de que o Brasil é o país que registra a pior gestão pública de enfrentamento da pandemia de covid-19, o noticiário e as redes sociais digitais vêm mostrando crianças que, em várias localidades, comemoram efusivamente a possibilidade de se vacinarem e ao se imunizarem, protegerem também parentes, amigos, toda a população. Dão vivas à ciência e ao SUS!

É um alento. O povo, por sua notável sensibilidade e adesão às vacinas, está derrotando fragorosamente o negacionismo irradiado diariamente pelo Palácio do Planalto desde o início do fenômeno epidemiológico. Impõe, também, humilhante recuo ao ministro da Saúde, um antivacinista fake – caso inusitado de um médico que acredita em vacinas, mas finge não crer para “puxar o saco” do chefe – e a várias lideranças e entidades médicas que deixariam Hipócrates mais corado do que uma cereja.

O país se insurgiu contra o cretinismo de dar curso a uma consulta pública para saber se a aplicação de vacinas anti-covid-19 em crianças deveria ter como requisito uma receita médica. A medida, evidentemente protelatória, não produziu o efeito que se esperava, mas está registrada nos anais da história como um dos atos mais infames originados no Estado brasileiro contra seu próprio povo.

O apagão dos sistemas de informação em saúde – sob a responsabilidade do Ministério da Saúde – é parte da estratégia necropolítica de deixar morrer e, sobretudo, de “remover provas” para facilitar a narrativa negacionista que se produz no presente e que se reproduzirá futuramente. Sem registros, sem dados, nada terá havido. Será a palavra de uns contra as versões de outros. A incúria sanitária do governo federal, que se expressa como prevaricação, boicote e sabotagem, dentre outras manifestações de incompetência sem precedentes no comando da República, segue produzindo mortes. Mas o apagão de dados torna praticamente impossível estimar, com grau razoável de precisão, quantas crianças morreram no país em decorrência da pandemia, embora a cifra de aproximadamente mil mortes seja mencionada em uma ou outra fonte jornalística.

A onda decorrente da introdução e rapidíssima disseminação da variante Ômicron reativou alertas sanitários e preocupações quanto à vulnerabilidade de crianças sem a proteção vacinal a qual, de algum modo, vêm protegendo adultos e idosos.

A OMS vem alertando para o equívoco de considerar a variante Ômicron mais branda, ou com efeitos menos importantes, embora seja menos letal. No Brasil, em pleno verão as unidades de saúde, estatais e particulares, voltam a registrar a falta de testes e de vagas para consultas médicas, de equipamentos, recursos e equipamentos.

Põe-se em evidência, uma vez mais, a desestruturação e a subutilização da rede pública do SUS – que marcaram todo o período de desenvolvimento da pandemia de covid-19 no Brasil. Nesse contexto, volta-se a falar, de um lado, na necessidade de “estatizar o SUS”, “dar fim à sua privatização” e, de outro lado, de “privatizar os serviços”, “modernizar o SUS”, “aprimorar a gerência”, “levar para o sistema de saúde a experiência privada na gestão de serviços”, mas desde que seja assegurada a “gestão pública”.

Os discursos alinham e empilham palavras e expressões cujos termos parecem não significar muito para quem lê ou ouve. Com efeito, o ambiente das falas anda bem poluído, a tal ponto que cada palavra empregada costuma gerar muitas perguntas sobre o que significa; o que quer dizer. Pior: muitos que as enunciam, solicitados a esclarecê-las, lançam mãos de outras tantas palavras que, ao final, acabam não conseguindo comunicar coisa alguma.

“Estatal” e “público” são duas dessas palavras.

Em meados de janeiro, dois ex-ministros da Saúde foram convidados pelo Centro Brasileiro de Estudos da Saúde, o CEBES, para analisar as perspectivas deste ano de 2022 e, claro, as tarefas que se colocam aos democratas e aos que defendem o SUS e o direito à saúde. José Gomes Temporão e Arthur Chioro expuseram, com o brilho e a clareza intelectual que caracterizam a ambos, sua visão dos problemas nessa área, as perspectivas políticas e, já caminhando para o encerramento do programa, transmitido pelo canal do CEBES no Youtube, surgiu a questão da “estatização” do SUS, algo que ambos prontamente rejeitaram. Expuseram suas razões e o programa foi encerrado.

Pois, sendo um incansável defensor da estatização do SUS, sinto necessidade de desenvolver um pouco mais o tema, pois o discurso e as análises sobre gestão do SUS acabam por vezes sendo truncados, em razão do uso superficial ou mesmo inadequado de termos que na linguagem coloquial assumem muitos, e até mesmo opostos, significados, como é o caso de estatal, público, privado, particular e privativo, dentre outros.

Em aulas e atividades acadêmicas sobre gestão em saúde, tenho assinalado que a despeito de ser possível atribuir muitos significados para cada um desses termos, é muito relevante levar em consideração, para atribuir-lhes significados apropriados, as dimensões da “propriedade” e do “tipo de uso” envolvidas necessariamente quando se trata de prestação de serviços.

Enfatizo sempre que os termos “estatal” e “particular” remetem à dimensão da propriedade, pois é a propriedade que é estatal ou pertence a algum particular. Para a gestão da saúde, porém, além da propriedade importa, e muito, o tipo de uso que se faz da propriedade e do que ela produz, que pode ser “público”, “privado” ou “privativo”.

O uso de algum recurso, bem ou serviço, pode ser público para a propriedade particular (um hospital qualquer, por exemplo), pois independentemente de quem é “o dono”, qualquer cidadão pode, segundo regras públicas e amparadas em legislação, ter acesso e fazer uso do referido recurso.

Mas o uso pode ser privativo para a propriedade estatal (um hospital militar, por exemplo), pois embora a propriedade seja “de todos”, por meio do Estado, para ter acesso e fazer uso do referido recurso, um cidadão precisa atender a requisitos específicos, que o tornam privativo. É o caso do hospital militar deste exemplo: para usufruir dos benefícios que presta, o usuário precisa ser militar ou dependente. Registre-se, por exemplo, a propósito, que em plena pandemia de covid-19, com notória escassez de leitos para internação de doentes graves, hospitais militares se recusaram a internar não militares e dependentes.

É por isso que, no âmbito da gestão, o oposto de estatal não é, necessariamente, privado, mas particular, pois é isso que diz respeito à forma que a propriedade assume.

Há, também, propriedades estatais que deveriam ser de uso público, mas que acabam sendo apropriadas por usuários privados, como é o caso de alguns trechos de praias, ilhas fluviais e marítimas que, ilegalmente, são ocupadas por poderosos que se valem dessas propriedades do Estado como se fossem propriedade particular, e que as tornam de uso privado e até mesmo privativo, ou exclusivo.

O SUS é, por definição, um sistema do Estado brasileiro. Nesse sentido, ele é estatal. Mas, como se sabe, o SUS é uma organização complexa, que se constitui em rede, comportando e articulando serviços, cujas propriedades podem ser estatais ou particulares. As ações e os cuidados prestados são, contudo, sempre, de acesso e uso público, segundo regras e normas operacionais. É, portanto, a meu juízo, ociosa a discussão sobre a estatização do SUS, pois, reitero, o sistema é, enquanto tal, propriedade do Estado brasileiro.

Outra questão, conectada ao “problema” da estatização do SUS, é a determinação constitucional de que os entes federativos (a União, Distrito Federal, Estados e Municípios) devem exercer o comando do sistema no âmbito territorial que lhes corresponde. A Constituição de 1988 é, a esse respeito, muito clara: é competência desses entes federativos realizar a administração do sistema de saúde e, dado que essa competência é uma função essencial do Estado brasileiro, deve ser exercida pela administração direta, não podendo ser delegada a particulares. Se o ente federativo subnacional alegar incapacidade, incompetência ou expressamente se recusar a realizar diretamente a gestão do SUS, comandando-o no seu âmbito, então o Estado, ou em último caso a União, devem assumir esse comando, sendo os recursos financeiros correspondentes alocados não mais ao ente que se recusa a comandar o sistema, mas ao que o substituir nas funções.

Isso não significa que organizações de propriedade de particulares não possam “prestar serviços ao SUS”, mas significa que não podem substituir o respectivo ente federativo nas funções de comando do sistema estatal, o que vem acontecendo em centenas, talvez milhares de municípios, em flagrante violação não apenas da legislação ordinária, mas da própria Constituição da República.

É essa a privatização que precisa ser contida imediatamente. É essa a estatização do SUS que o Brasil precisa fazer. Em pelo menos metade dos municípios brasileiros, não há capacidade na administração direta municipal para assumir o comando estatal do SUS. Para que o sistema não seja capturado, ainda mais, pelos interesses mercantis que o vêm golpeando desde que foi criado, é indispensável que a “modernização do SUS” de que se cogita, e que estará nas pautas dos candidatos presidenciais em 2022, contemple alternativas de soluções para esse problema, buscando soluções, simultaneamente, para a viabilização administrativa das regiões de saúde, com vistas a assegurar a todos os brasileiros, acesso universal e integral aos cuidados de saúde de que necessitam.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.

 

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