Desigualdade e polarização

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Por José Luís Fiori*

Ao contrário das guerras, as epidemias não destroem equipamentos físicos, nem tem um adversário visível capaz de produzir uma identidade coletiva, emocional, e uma solidariedade nacional que se imponha acima das classes sociais

“Para além dos acontecimentos, existe uma história inconsciente – ou mais ou menos consciente – que escapa à lucidez dos atores, dos responsáveis ou das vítimas: elas fazem a história, mas a história as arrasta” (F. Braudel, História e Ciências Sociais).

As grandes epidemias repetem-se através da história, mas não existe nenhuma explicação sobre sua periodicidade. No caso da atual epidemia, ainda não se decifraram a origem, as variações do vírus, nem o desenvolvimento provável da própria pandemia, porque não se sabe se poderá haver recidivas nacionais até o desenvolvimento de medicamentos e vacinas eficientes.

Por isso mesmo, nestes momentos de grande medo e imprevisibilidade, é comum que as pessoas utilizem comparações e analogias que parecem úteis num primeiro momento, mas que são parciais e às vezes prejudicam mais do que ajudam, como no caso da referência às duas crises econômicas de 1929 e 2008. Ou também a comparação com algumas pestes que teriam provocado grandes “rupturas históricas”, como foi o caso da Peste de Justiniano, no século VI, ou mais ainda, da Peste Negra, no século XIV, que matou metade da população europeia e parece ter contribuído decisivamente para o fim do sistema feudal.

É importante ter presente que as crises de 1929 e 2008 foram crises econômicas inerentes ao capitalismo, enquanto que a atual está sendo provocada por um fator que não obedece às “leis” da economia capitalista, mesmo quando possa provocar um estrago econômico e social equivalente ao das duas crises econômico-financeiras que são sempre lembradas quando se fala da epidemia do coronavírus. Da mesma forma, com relação à Peste Negra, o historiador inglês Mark Harrison chega a sustentar a tese de que teve um papel decisivo no nascimento dos Estados territoriais europeus. É incontestável que a Peste Negra forçou uma centralização do poder e uma delimitação territorial, necessárias para controlar o contágio e impor novas práticas higiênicas às populações que ainda viviam sob o sistema feudal.

Além disso, a tese de Harrison ajuda a entender a resposta “egoísta” dos Estados nacionais, através dos tempos, toda vez que se depararam com epidemias infecciosas que se expandiam por cima de suas fronteiras territoriais. Mas mesmo que se possa estar de acordo com essa tese acerca do impacto da Peste Negra, é muito difícil dizer o mesmo de outras grandes epidemias mais recentes, como é o caso da febre amarela, do sarampo, da varíola, da malária, da tuberculose, ou mesmo do HIV que já atingiu e matou milhões de pessoas ao redor do mundo. Todas foram extremamente letais, mas não provocaram nenhum tipo de grande ruptura ou inflexão histórica.

Outra analogia muito comum é entre as epidemias e as guerras. É uma comparação muito forte e pode ser útil para mobilizar os atores sociais relevantes, mas existem algumas grandes diferenças entre elas. Ao contrário das guerras, as epidemias não costumam destruir equipamentos físicos e não têm um adversário visível capaz de produzir uma identidade coletiva, emocional, e uma solidariedade nacional que se imponha acima das classes sociais. Ao contrário, as epidemias contagiosas infectam os indivíduos, classes e países com distintas intensidades, e provocam reações defensivas do tipo “cada um por si”, exatamente ao contrário das guerras.

Além disso, as guerras têm vencedores que impõem sua “paz hegemônica” aos derrotados, ao contrário das epidemias, em que não existem vitoriosos nem perdedores absolutos, e não existe nenhuma força material que induza qualquer tipo de acordo ou plano de reconstrução coletiva depois do tufão epidêmico. Hoje, muitos falam de um mundo novo que poderia nascer desta experiência traumática, e até apostam em mudanças humanitárias do capitalismo, mas a possibilidade de que isso ocorra é muito pequena.

De qualquer maneira, a epidemia do Covid-19 terá um impacto econômico imediato, como é no caso das guerras. O que distingue o “novo coronavírus” não é sua letalidade, é a velocidade da sua expansão e seu impacto imediato sobre as taxas de desemprego que explodem em poucos dias. O vírus foi identificado na China no final do mês de dezembro de 2019, e em apenas três meses atingiu 200 países e já contagiou mais de um milhão e meio de pessoas. Alguns infectologistas preveem de 6 a 7 meses de duração da epidemia, e alguns economistas falam num impacto recessivo cuja duração pode chegar de 2 a 3 anos. Tudo dependerá da extensão e duração da epidemia nos Estados Unidos e na Europa, e da existência ou não de recidivas nos países que já controlaram o primeiro surto epidêmico.

É provável que a queda do PIB norte-americano seja maior do que a da crise de 2008/09, mas ninguém deve enganar-se com relação ao próprio futuro americano. O epicentro da crise de 2008 foi nos EUA e, no entanto, durante a segunda década do século XXI, os EUA aumentaram sua participação no PIB mundial, de 23% para 25%, enquanto seu mercado de capitais crescia 250%, ficando com 56% da capitalização financeira global, com cerca de 90% das transações financeiras globais sendo feitas em dólares. Ou seja, não há nada que impeça que os EUA superem esta nova crise e recuperem rapidamente seu poder econômico, na frente de todos os demais países desenvolvidos, com exceção talvez da China.

De qualquer maneira, deve-se incluir neste ponto a outra grande dimensão desta crise mundial, a crise da indústria do petróleo, provocada pela queda da demanda mundial em consequência da própria epidemia, começando pela desaceleração da economia chinesa, e depois alastrando-se para toda a economia mundial, com um baque imediato do preço do barril de petróleo, que caiu de U$ 70 para U$ 23 b/p/d, flutuando depois em torno de U$ 30 b/p/d. Não se sabe ainda quanto tempo durará a epidemia, nem tampouco a recessão da economia mundial, tampouco é possível prever o tempo da recuperação econômica depois da pandemia. Mas mesmo que as novas negociações entre a OPEP+ e o G20 cheguem a um acordo sobre novos níveis e produção e o rateio do corte entre os países produtores, é muito pouco provável que o novo preço seja superior a U$ 35 b/p/d.

Esse novo valor deverá ter um impacto gigantesco sobre a geoeconomia da produção mundial de petróleo. Neste nível de preços, é muito provável que a indústria americana do shale oil tenha que ser protegida pelo governo para não quebrar, e assim mesmo, o mais provável é que os EUA percam sua posição atual como maiores produtores mundiais de petróleo. Poderá haver uma grande perda de mercado por parte dos países produtores de mais altos custos, com a perspectiva imediata de uma nova crise da dívida externa soberana de países como Equador, México, Iraque, Nigéria, etc. Esses preços afetariam também a capacidade fiscal da Rússia e da Arábia Saudita, e atingiriam em cheio países que já estão sofrendo sanções dos Estados Unidos, como é o caso da Venezuela e do Irã, para não falar da própria Rússia. Seja como for, as perspectivas pela frente são muito ruins para o mercado mundial do petróleo e, como consequência, para o mercado financeiro globalizado.

Num primeiro momento, como em todas as grandes catástrofes e guerras, o Estado está sendo obrigado a centralizar as decisões e o planejamento sanitário e econômico do país, e está sendo obrigado a realizar intervenções econômicas “heterodoxas”, por meio do aumento de seus gastos em saúde, e ainda através da multiplicação pura e simples do dinheiro disponível para pessoas e empresas. Mas nada disso garante que depois da crise os governos desses países mantenham essa mesma política econômica, e esse mesmo “voluntarismo estatal” que se encontra na contramão do neoliberalismo dominante nas últimas décadas, no capitalismo ocidental.

É muito provável que, depois da tempestade, as grandes potências revejam sua participação nas cadeias produtivas globais, sobretudo no caso de bens estratégicos. É também bastante provável que a China e a Rússia, e mais alguns países europeus, procurem aumentar seu grau de liberdade com relação ao sistema financeiro norte-americano, e aumentem o grau de proteção mercantilista de suas economias. Entretanto, no caso dos países periféricos, o mais provável é que, apesar de tudo, decidam enfrentar suas “dívidas da epidemia” negociando com o FMI e retornando a suas políticas anteriores de austeridade fiscal, com a venda acelerada de seus patrimônios públicos na “bacia das almas”, para poder “pagar as contas” deixadas pelo coronavírus.

Apesar da devastação econômica imediata provocada pela epidemia, o mais provável é que não ocorram grandes rupturas geopolíticas dentro do sistema mundial. O que ela fará é acelerar a velocidade das transformações que já estavam em curso e que seguirão se aprofundando. Alguém já disse que é na hora das grandes pestes que se conhece a verdadeira natureza das sociedades, e o mesmo se pode dizer desta pandemia que está apenas desvelando o que já estava na nossa frente e que muitos não conseguiam ver, inclusive a retirada do último véu de hipocrisia da “ordem liberal” e da “hegemonia americana” do século XX.

O epicentro da epidemia já se deslocou para a Europa, e agora para os Estados Unidos, e não se sabe quanto durará, mas de fato a grande incógnita e o grande medo é com o que possa acontecer quando ela se expandir para os países mais pobres da África, do Oriente Médio e da América Latina. Até porque, como sempre acontece nas grandes crises, serão as grandes potências que se recuperarão na frente, começando pela China e pelos Estados Unidos.

Por isso, o mais provável é que essa epidemia aumente a desigualdade e a polarização do mundo, que já vinham crescendo de forma acelerada desde a crise financeira de 2008. E deve acentuar a nova virada nacionalista do sistema interestatal que já vinha se manifestando desde o início do século XXI, e assumiu alta velocidade depois da eleição de Donald Trump. A Rússia deverá sofrer um novo baque econômico com a epidemia e com a crise da indústria do petróleo, mas isto não deverá afetar a nova posição que ela readquiriu como grande potência militar dentro do sistema mundial.

No caso da União Europeia, entretanto, a pandemia deve acelerar o seu processo de desintegração que entrou em alta velocidade depois do Brexit. A China, por sua vez, não deve alterar o curso do seu projeto expansivo programado para a metade do século XXI; pelo contrário, deve acelerá-lo aproveitando as oportunidades e brechas abertas pela decomposição europeia, e pelo distanciamento norte-americano de seus antigos aliados europeus. Por fim, depois da pandemia, a competição e os conflitos entre a China e os Estados Unidos devem aumentar em escala exponencial, sobretudo se Donald Trump for reeleito no mês de novembro de 2020, e se seguir em frente com sua decisão de estrangular a economia e a sociedade venezuelanas, através de sanções comerciais e financeiras, e agora através de um bloqueio naval que pode se transformar, em breve, no pé de apoio de uma invasão militar, ou de um bombardeio aéreo feito a partir de seus próprios navios que já estão mobilizados no Caribe. Seria a primeira guerra na América do Sul envolvendo as grandes potências militares do mundo. E seria talvez a primeira grande tragédia da história da América do Sul no século XXI.

*José Luís Fiori é professor do Programa de pós-graduação em economia política internacional da UFRJ. Auror, entre outros livros, de Sobre a Guerra (Vozes).

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