Hermengarda, a baratinada

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARILIA PACHECO FIORILLO*

Em sua viagem psicodélica pela Terra de Santa Cruz

Minha amiga Hermengard von Niemand está passando uns dias aqui na terrinha. É alta, magra, se veste como tardo-hippie e curiosa a mais não poder. Aterrissou bem no dia da divulgação da carta dos economistas Edmar Bacha, Pedro Malan e Armínio Fraga, na qual os egrégios apoiadores de última hora passavam um pito preventivo no futuro governo sobre o tal estouro do teto anual em 200 bilhões.

Prussiana no porte e xereta de índole, ela me via (mais que ouvia, pois só fala uma meia dúzia de palavras em português) deblaterando sobre o absurdo ao telefone: ‘Mas o inominável gastou 800 bilhões nos quatro anos e ninguém piou, agora saem atirando por causa de 200”. Xereta, alegre e muquirana, ela pode ser preguiçosa com palavras, mas é bem esperta com números, porque veio pronta para comprinhas.

Me cutucava:“Achthundert Milliarden? Zweihunder? Oitocentos bilhões? Duzentos?

Desliguei o telefone e contei mais ou menos do que se tratava. Hermengarda (com o”a”, abrasileiramos o nome vetusto) não sabe nada de economia e menos ainda de Brasil, mas ficou intrigada. Na sua infalível cachola germânica, quatro vezes duzentos dava exatamente os tais oitocentos.

E aí começou minha dura, embora aprazível e frustrante, jornada para tentar explicar-lhe o inexplicável.

Natural de Berlim, minha hóspede não compreendia bulhufas do que eu me esforçava para esclarecer. Não fazia sentido. Parecia raciocínio de lunático. Puro piro. O que só aguçou ainda mais sua xeretice. Bisbilhotava sem parar, com aquelas perguntas simplórias e imperiosas, e a perplexidade natural de qualquer pessoa estrangeira aos atavismos brazucas.

Vale dizer que, além de aritmética, Hermengarda havia aprendido um tiquinho de lógica na escola, como a noção elementar de sofisma. Quando eu tentava me esgueirar pretextando que suas dúvidas remetiam a questões muito complexas, como a Teoria Mutante das Pedaladas ou a Lógica Reversa Paralógica da Geschäft (business is all), temas muito além de meu miserável cabedal, ela nem dava bola. Não desanimava. Piorava, até. Insistia: “Na und?” E daí?

Como uma discípula desavisada de Guilherme de Ockham, filósofo medieval franciscano que usava óculos às escondidas e escolheu a “navalha” como metáfora de raciocínio claro e satisfatório, Hermengarda acha que a explicação mais simples é a melhor. E não me dava trégua. E não me dava paz. Para tentar sair da sinuca de bico (pois um dia não bastava para que ela introjetasse coronelismo, enxada e gincana financeira), fiz uma maldade. Tergiversei. Aleguei que a língua portuguesa tem palavras intraduzíveis. Por exemplo, zum Beispiel, sofisma aqui não significa um argumento enganoso, mas uma malandragem deliberada e envernizada que cola como verdade eterna e universal.

Mas me saí mal. “Das ist dasselbe” saudade”? Não, Hermengarda, não é como saudade. É outra jabuticaba intraduzível, menos romântica e mais tóxica. Então ela quis que eu resumisse o conteúdo da carta. Afora a ausência do elementar 4 x 200=800, encasquetou com uma passagem: “Warum nobre anseio de responsabilidade social (sic carta)? Por que nobre, e não legítimo, urgente, premente, inalienável?

Sind sie Aristokraten“? quis saber sobre os signatários. “Genau“, concordei, os três são da nobreza, barões das finanças, haja vista o sotaque nobiliárquico deles, como na pronúncia da expressão partido-omnibus, ônibus é muito chinfrim. (Ah, escapei de entrar na longa e cansativa história do patrimonialismo nativo.)

Como ela veio de Kreuzberg e viveu os anos Angela Merkel, embora seja links, de esquerda, no dia seguinte se espantou ao saber que boa parte da esquerda brasileira é devota de Vladimir Putin a apoia a invasão da Ucrânia. Sim, boa parte da esquerda brazuca admira sem reservas Vladimir Vladimirovich, o cleptocrata envenenador de opositores. “Ist das möglich? Wahrheit oder Scherz?“. Mas é possível? Verdade ou está me gozando?

Verdade, Hermengarda, aqui uma parcela (da) Die Linke crê que as tropas brancaleônicas (e sádicas) que invadiram a Ucrânia ainda pertencem ao valoroso Exército Vermelho. E que a queda de Kyev seria uma reedição da heróica resistência de Stalingrado na II Guerra.

Aber… (agora ela franzia o cenho, ressabiada) der Kommunismus ist kaputt!” Ich verstehe nicht”. Mas…o comunismo acabou, já era, não estou entendendo nada!

Começou a me olhar torto. Não fosse meu empenho como anfitriã, e a comidinha caseira, acho que Hermengarda estava prestes a se mudar para o primeiro hotel da vizinhança, assustada com o que eu dizia e desconfiada de que sou uma mentirosa patológica que pode surtar a qualquer minuto.

Mas ficou. O Brasil é uma viagem psicodélica. E ela continua a perguntar, não se conforma, minha Hermengarda desentendida e baratinada.

Vai piorar. A cada dia virão mais notícias e fatos estrambóticos. E o orçamento secreto, então? Este é uma jabuticabeira em flor: intraduzível, inconcebível, indecifrável, insondável. Tenho de me preparar.

*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). Autora, entre outros livros, de O Deus exilado: breve história de uma heresia (Civilização Brasileira).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ricardo Fabbrini Manchetômetro José Geraldo Couto Francisco Pereira de Farias Maria Rita Kehl Benicio Viero Schmidt Chico Alencar Lincoln Secco Jean Marc Von Der Weid Jean Pierre Chauvin Marcelo Guimarães Lima Thomas Piketty Julian Rodrigues João Sette Whitaker Ferreira José Machado Moita Neto Carla Teixeira Luis Felipe Miguel Salem Nasser Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Renato Martins Michael Löwy Heraldo Campos Luiz Eduardo Soares Andrew Korybko Rodrigo de Faria Liszt Vieira Ricardo Musse Ronald León Núñez Daniel Costa João Feres Júnior Boaventura de Sousa Santos Tales Ab'Sáber Luiz Marques Lorenzo Vitral Dennis Oliveira João Adolfo Hansen Antonino Infranca Flávio Aguiar Kátia Gerab Baggio Gabriel Cohn Marcus Ianoni José Luís Fiori Daniel Afonso da Silva Mariarosaria Fabris Tarso Genro José Micaelson Lacerda Morais Eduardo Borges Manuel Domingos Neto Anselm Jappe Alysson Leandro Mascaro Priscila Figueiredo Luís Fernando Vitagliano Renato Dagnino Yuri Martins-Fontes André Singer Luiz Bernardo Pericás Marjorie C. Marona Eleutério F. S. Prado Marilena Chauí Gilberto Maringoni Francisco Fernandes Ladeira Eliziário Andrade Leda Maria Paulani Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Paulo Martins Ronaldo Tadeu de Souza João Carlos Salles Michel Goulart da Silva Marcos Aurélio da Silva Luiz Werneck Vianna Alexandre Juliete Rosa Remy José Fontana Matheus Silveira de Souza Marcos Silva Atilio A. Boron Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Roberto Alves Bernardo Ricupero Paulo Fernandes Silveira Lucas Fiaschetti Estevez Fábio Konder Comparato Flávio R. Kothe Ricardo Antunes Caio Bugiato Alexandre de Lima Castro Tranjan Samuel Kilsztajn João Lanari Bo José Dirceu Everaldo de Oliveira Andrade Jorge Luiz Souto Maior Henri Acselrad Mário Maestri Denilson Cordeiro Annateresa Fabris Ronald Rocha Bento Prado Jr. Gerson Almeida Henry Burnett Alexandre Aragão de Albuquerque Michael Roberts Francisco de Oliveira Barros Júnior Érico Andrade Osvaldo Coggiola Sandra Bitencourt Leonardo Sacramento Vinício Carrilho Martinez Alexandre de Freitas Barbosa Ladislau Dowbor Marilia Pacheco Fiorillo Claudio Katz João Paulo Ayub Fonseca Marcelo Módolo Leonardo Avritzer Elias Jabbour Paulo Sérgio Pinheiro Andrés del Río Antônio Sales Rios Neto Walnice Nogueira Galvão Otaviano Helene Paulo Capel Narvai Fernão Pessoa Ramos Slavoj Žižek Luciano Nascimento Dênis de Moraes Chico Whitaker Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ricardo Abramovay Afrânio Catani Carlos Tautz Milton Pinheiro João Carlos Loebens Gilberto Lopes Berenice Bento Jorge Branco Bruno Machado Rafael R. Ioris Airton Paschoa Fernando Nogueira da Costa Antonio Martins Ari Marcelo Solon José Costa Júnior Vladimir Safatle Valerio Arcary André Márcio Neves Soares Sergio Amadeu da Silveira José Raimundo Trindade Igor Felippe Santos Eugênio Bucci Eugênio Trivinho Rubens Pinto Lyra Juarez Guimarães Celso Favaretto Paulo Nogueira Batista Jr Vanderlei Tenório Celso Frederico Eleonora Albano Daniel Brazil Armando Boito Tadeu Valadares Leonardo Boff

NOVAS PUBLICAÇÕES