Por LUIZ EDUARDO SOARES*
A insensibilidade para as transformações em curso reduz nossa capacidade de compreendê-las e valorizá-las como realidades cruciais que marcam nosso tempo
São inúmeras as possibilidades de abordagem analítica da sociedade brasileira contemporânea. Uma delas resulta do exercício de memória: evocando o passado, iluminam-se, por contraste, características atuais que as rotinas tendem a invisibilizar. Em nossa experiência cotidiana, muitas vezes naturalizamos as inovações, a emergência de novos fenômenos, as transgressões de expectativas consolidadas, a irrupção de diferenças, inclusive aquelas que nos desafiam em todas as dimensões: intelectual, ética, psicológica, política, estética.
A insensibilidade para as transformações em curso reduz nossa capacidade de compreendê-las e valorizá-las como realidades cruciais que marcam nosso tempo. Sem o choque da surpresa e a vivência da perplexidade não há filosofia, não se move o pensamento – sabemos desde a Grécia clássica.
Por outro lado, a ênfase unilateral na continuidade do processo histórico convém não apenas à reprodução das relações de dominação, como à (falsa percepção de) estabilidade mental, porque evita que as teorias e crenças estabelecidas sejam ameaçadas. O que abala a confiança em conceitos tradicionais não esgota seus efeitos na esfera epistemológica, uma vez que perturba o regime dos afetos e subverte autoimagens apaziguadas.
Por isso, é frequente que debates intelectuais, quando submetem a escrutínio crítico categorias e parâmetros consagrados, emocionem os interlocutores e suscitem atitudes defensivas, mais típicas do recalque do que da abertura reflexiva e dialógica. O que não raro está em jogo, embora implícita e indiretamente, são cosmovisões, constelações valorativas, formas de vida, relações sociais, identidades grupais e modos de autoconstituição de sujeitos.
Essas considerações talvez ajudem a explicar hiatos e tensões intergeracionais, no campo do conhecimento social e do debate político. Divergências não dividem apenas gerações, as quais tampouco são homogêneas. Há heterogeneidades transversais e perspectivas diversas, os recortes são múltiplos. Mas é inescapável reconhecer a importância das diferenças entre as gerações intelectuais e suas implicações políticas -assim como seus fundamentos. Essa pluralidade agonística se manifesta sobretudo na linguagem conceitual e na composição das agendas de pesquisa. Mudam as hierarquias de prioridade nas pautas que orientam a produção intelectual e os debates públicos.
Sintetizando numa imagem caricata e reducionista, dir-se-ia que as críticas mútuas entre os grupos aludiriam, por um lado, à inconsequência ou à superficialidade “pós-moderna” e “anarco-liberal” dos (e das) jovens, que teriam renunciado à problemática fundamental das classes, adotando pautas “identitárias”, menosprezadas como “comportamentais” ou relativas a “costumes”, e, por outro, à insensibilidade melancolicamente defensiva dos mais velhos, presos às tradições patriarcais e racistas (porque incapazes de perceber os privilégios de que se beneficiam, enquanto homens, heterossexuais e brancos), relutantes em admitir o esgotamento – ou pelo menos a insuficiência – das categorias com as quais continuam a pensar a realidade, cujas características teriam se transformado radicalmente.
Veremos, adiante, quão grave é o erro de minimizar a relevância das pautas equivocadamente chamadas identitárias ou de costumes, e como esse equívoco foi responsável pelo fortalecimento de perspectivas autoritárias, inclusive neofascistas, na sociedade brasileira. Por outro lado, veremos também quão empobrecedor e equivocado seria abdicar de categorias clássicas para pensar uma sociedade que se construiu historicamente a partir de eixos e processos apreendidos pelas referidas categorias, ainda que mutações radicais tenham acumulado novos eixos estruturantes, alterando profundamente a realidade vivida.
Em síntese, concluiremos pela imprescindibilidade do diálogo intergeracional, que aqui não passa de metáfora que alude à interação entre agentes sociais diferentes e seus modelos cognitivos, simbólicos, estéticos, afetivos e ético-políticos. Ou talvez passe de metáfora, sim, em alguma medida, porque tensões intergeracionais existem e cumprem um papel nada desprezível no esvaziamento da interlocução.
Retomemos o fio do argumento. Para tornar este preâmbulo mais objetivo, recorramos a um experimento mental: suponhamos que um grupo de intelectuais brasileiros, atuantes no campo das ciências sociais e das humanidades – formados, portanto, nas principais tradições do pensamento social crítico e progressista –, fossem transportados de meados dos anos 1980 para 2023. Observando o entorno, o que os surpreenderia no Brasil atual, além da permanência da miséria e das desigualdades, no quadro da urbanização selvagem e das novas formas de comunicação? Eis algumas hipóteses:
(i) A presença da população negra nas Universidades públicas e em diversos outros espaços socialmente valorizados, o que revelaria quão significativa era sua ausência anterior e quão espantosa e perversa era a normalização daquela ausência. Essa presença, fruto da luta de movimentos sociais antirracistas e da adoção de políticas voltadas para ações afirmativas, como as cotas, demonstraria a relevância da agenda -o racismo, o racismo estrutural, o racismo institucional – e de seus agentes coletivos. Se nossos personagens viajantes no tempo são majoritariamente brancos, terão de lidar com a nova questão emergente, sua “branquitude”, em um país estruturalmente racista.
(ii) A transformação das relações de gênero, tornando perceptível a magnitude e a violência insidiosa do patriarcalismo, assim como seu relativo apagamento prévio. A transformação impacta todas as esferas da vida individual e social, de múltiplas formas, demonstrando a centralidade dos movimentos feministas como novos grandes atores históricos, cujos temas e bandeiras já não podem ser subestimados. Se os intelectuais imaginários, abduzidos nos anos 1980 e subitamente atirados entre nós, são majoritariamente homens, terão de lidar com a nova questão emergente, sua “masculinidade tóxica”, em uma sociedade eminentemente patriarcal.
(iii) A revolução no mundo do trabalho, complexificando as estruturas de classe, como um dos efeitos devastadores do neoliberalismo, em crise permanente. A precarização impactou as formas de organização sindical dos trabalhadores, redefinindo as dinâmicas geradoras de consciência política e fragmentando os interesses em jogo. O que, hoje, poderia agregar trabalhadores? O que poderia unificá-los sob um projeto político comum? As velhas respostas permanecem parcialmente válidas, mas já não bastam. Como se recolocam, nesse quadro, as relações entre interesses e valores, economia e crenças, política e ideologia?
(iv) O novo perfil das tensões geopolíticas, em uma economia capitalista globalizada, que deslocou questões relativas a nacionalidades e soberania, implodindo referências ideológicas da guerra fria e abalando modelos utópicos tradicionais. Como se reposicionam os projetos nacionais estratégicos em um mundo hegemonizado pelo capital financeiro e, na melhor das hipóteses, multipolar? Como todo esse contexto se complexifica ainda mais, em decorrência da nova divisão internacional do trabalho, em que o Brasil, desindustrializado, recua para o lugar de provedor de matéria prima, exportador de commodities?
(v) A revolução em curso na cultura popular, especificamente no campo religioso, e seus efeitos políticos, fragilizando a tradicional supremacia católica e impulsionando a expansão de comunidades evangélicas neopentecostais, sobretudo nos territórios populares.
(vi) A centralidade das questões ambientais e climáticas, impondo-se às agendas regionais, nacionais e subnacionais, embora refratadas por condições específicas. Novas categorias como antropoceno e justiça climática passaram a ocupar posição de destaque nos debates públicos, desnudando tanto a insuficiência das velhas fórmulas que antepunham natureza a cultura, quanto a gravidade dos efeitos sócioeconômicos da emergência climática. Tais efeitos intensificam as desigualdades, em todas as suas manifestações: entre classes sociais, raças, gêneros e nações. O horizonte futuro, a persistir o modelo de desenvolvimento capitalista dominante, torna a fome, os conflitos migratórios, as pandemias, a escassez de água e energia, temas humanitários estratégicos, revelando a incompatibilidade entre o capitalismo e a salvação da vida (não só humana) no planeta.
(vii) Nesse novo contexto, os intelectuais recém-chegados dos anos 1980, que estavam profundamente engajados na luta pela redemocratização do Brasil e francamente otimistas quanto à possibilidade de que a institucionalidade democrático-liberal, a ser criada pela Constituição de 1988, conviveria em harmonia com o reformismo social, impulsionando uma economia de mercado porém socialmente domesticada e submetida à lógica redistributiva, esses nossos personagens, trânsfugas da transição política, lançados pela máquina do tempo ao redemoinho do Brasil atual, não teriam como ocultar sua perplexidade: (a) ante a permanência das desigualdades e da miséria (a despeito de mudanças inegáveis e alguns avanços); (b) ante o retorno dos espectros da ditadura (seu discurso, suas práticas inclusive alguns de seus personagens); (c) ante os atritos aparentemente insuperáveis- entre o novo arranjo econômico capitalista, o neoliberalismo, e a democracia liberal; (d) ante a continuidade das práticas policiais e de encarceramento, típicas da repressão ditatorial, que eles julgavam incompatíveis com a democracia reconstituída pelo pacto constitucional; (e) ante o esgotamento do modelo nacional-desenvolvimentista, seja por conta da globalização e da financeirização, seja por conta dos limites materiais da natureza.
(viii) A dissolução do que se vivia e entendia como sendo o espaço público, o conflito ideológico-político democrático, a disputa argumentativo-racional, substituídos pela espantosa predominância do que lhes pareceria, à primeira vista, “irracionalismo”, mas que exigirá novos conceitos e o refinamento dos instrumentos analíticos. No âmbito do colapso do mundo público e da redefinição do papel atribuído ao ator outrora denominado “intelectual público”, nossos personagens egressos dos anos 1980 tentarão ajustar suas virtudes cognitivas para dar sentido à surpreendente articulação entre novas linguagens e meios técnicos originais, nas redes sociais, e para compreender o funcionamento dos novos protagonistas da comunicação, dos quais alguns e algumas rivalizam com a mídia tradicional ou mesmo a ultrapassam, em alcance e influência.
Reinam, nessa nova esfera, individualidades singulares, histrionismos, idiossincrasias, hibridismos ideológico-políticos, “realidades paralelas” e conflagrações violentas, alheias a intervenções ou controle por métodos convencionais. Nossos viajantes no tempo ouvirão falar em fake news e provavelmente custarão a entender que o fenômeno não significa apenas “notícias falsas” (passíveis, portanto, de mera retificação, ou facilmente corrigíveis pelo processo educacional institucionalizado), mas construções de mundos alternativos, envolvendo fantasias conspiratórias, valores, afetos, desejos, velhas crenças reprocessadas, além de renovadas experiências de pertencimento.
Há muito mais que oito itens no repertório das perplexidades provocadas pelo acúmulo de mudanças das últimas décadas. Entretanto, os tópicos referidos são suficientes para indicar o abalo sísmico que resultaria do súbito confronto entre intelectuais brasileiros progressistas típicos dos anos 1980 e a realidade nacional (e não apenas) contemporânea. Quando mencionamos intelectuais, aludimos a modos típicos de pensar, sentir, agir e viver a vida. Afetos, valores, crenças, expectativas, visões de mundo, formas de conhecer e de raciocinar formam o espírito humano, imerso em corpos e relações, inscritos em coletividades historicamente constituídas.
Eis aí um modelo para análise, um tipo ideal para que se possa refletir com alguma distância crítica, e objetividade, sobre determinada geração intelectual, moldada sobretudo na têmpera de seus anos formadores, aqueles mais marcantes para a construção de identidades, alianças, antagonismos e trajetórias.
Viagens no tempo não existem. Portanto, intelectuais ou pesquisadores do social não são lançados em décadas futuras; eles e elas atravessam os anos, acompanhando as mudanças e buscando adaptar-se, pessoal e intelectualmente, com maior ou menor flexibilidade, maior ou menor criatividade – inclusive identificando tendências e se antecipando, quando possível. Contudo, ainda assim faz sentido insistir no experimento mental da viagem no tempo como um meio de sublinhar quão desestabilizador pode ser o processo em curso, desencadeado nos últimos trinta e cinco anos, dado o caráter veloz das transformações e a multidimensionalidade de seu impacto, que atinge desde o mais radicalmente íntimo e subjetivo (como a descoberta de que sexo, gênero e corpo são entidades separadas, suscetíveis a recombinações, segundo diferentes estéticas de si, como demonstram movimentos libertários cada vez mais importantes, como os das mulheres e dos grupos LGBTQIA+), até a realidade mais ampla, que escapa ao cálculo e à imaginação, quando a referência é, por exemplo, a escala geológica do antropoceno.
Nesse contexto, tensionado por metamorfoses nos planos micro e macro, a própria ideia de adaptação parece inadequada e insuficiente. O que se pode requerer talvez seja apenas a consciência de que a abertura à revisão de conceitos e juízos deve ser permanente e ousada, sem que isso implique, evidentemente, abrir mão seja de compromissos sociais e políticos, seja de parâmetros que se mostrem atuais ou resistentes, exatamente por darem conta dos aspectos de continuidade sob a avalanche de mudanças.
As gerações de intelectuais (estudiosos, pensadores, pesquisadores nas áreas sociais) que iniciaram sua formação após a guerra fria e a promulgação da Constituição democrática brasileira, que cresceram sob a égide da complexidade processual contemporânea, sem prejuízo do que devem às tradições de suas respectivas disciplinas e às peculiaridades de suas instituições, tiveram desde cedo de lidar com os estímulos, as provocações e as exigências não apenas de mercados de trabalho específicos, de institucionalidades particulares, mas também e talvez sobretudo com os imperativos e as urgências de seu tempo e de seu mundo, provinciano e globalizado: dizer de si antes de mais nada, fazer-se autoral (autor, sujeito, dono do próprio nariz, senhor e senhora de suas ideias e seus corpos) para impedir a submissão a poderes alheios, encontrar e firmar-se em seu lugar, lugar entendido como fonte única e intransferível de sua voz e de seu desejo.
Privilegiam-se o lugar de fala, o corpo, a ancestralidade, a horizontalidade contra o poder, a repulsa ao Estado e à política, o rechaço às mediações. Idealizam-se os coletivos, nova versão dos movimentos sociais e substitutos prêt-à-porter dos partidos tradicionais de esquerda, constituindo-se em nichos de voluntarismos e espontaneísmos, diria a “velha geração”, instada, esta, a “chamar de mal gosto o que não é espelho”, conforme advertira Caetano Veloso – a ironia é certeira, embora nem sempre a crítica aos experimentos ativistas seja inapropriada, como veremos.
Deduz-se daí por que gerações intelectuais progressistas formadas depois da conquista da democracia no Brasil – e é preciso máxima cautela para evitar generalizações homogeneizadoras – estariam muito mais sintonizadas com questões de gênero e raça, assim como da extinção da espécie (ou da vida no planeta), e porque, para elas, somente a partir dessas questões emergentes poderiam vir a fazer sentido as indagações mais, digamos, convencionais sobre a sociedade e seus destinos econômico-políticos, com base em noções como classe, consciência de classe, etc.
Não se trataria, portanto, apenas de individualismo e triunfo do utilitarismo egóico liberal, mas de novas modalidades de conexão entre a formação da subjetividade, a inscrição no social -a divisão social do trabalho não mais responde, na extensão tradicional, por identidade e pertencimento- e a experiência com a comunicação, com os repertórios acessíveis e com o crescentemente desafiador fenômeno do reconhecimento. Se já não bastam a posição na estrutura do trabalho, a carreira e seu horizonte de ascensão, a recompensa pelo status alcançado ou ambicionado, o itinerário familiar pré-determinado, nem mesmo a anatomia e a materialidade supostamente irredutíveis do corpo, se as comunidades face a face perdem precedência ante as constelações virtuais de perfis e avatares, compreende-se tanto o revival do salvacionismo religioso, quanto a defesa de um espaço psíquica e simbolicamente blindado para respirar e existir, assim como a proliferação de iniciativas que visam marcar lugares, isto é, que visam ancorar ontologicamente sujeitos – e redes de lealdades e antagonismos – em novas e arcaicas iconografias e especulações metafísicas.
O propósito é existir com significado, sobreviver com dignidade – dignidade que é fruto do respeito, aquele que se obtém pelo reconhecimento, a experiência crucial que transcende a individualidade e a insere na sociedade.
Em outras palavras, está se dissolvendo no ar, no século XXI, após a explosão neoliberal e a implosão do bloco soviético, o que era tido como dado e natural no capitalismo do pós-guerra (guardadas as distinções entre metrópoles e periferias coloniais): a construção de si do sujeito, na sociedade, por um lugar na divisão social do trabalho e na organização da reprodução familiar. Ou seja, o que, no passado, estava garantido pela estrutura patriarcal, ao preço de subordinar a mulher no mundo doméstico -não apenas- e o negro e a negra no universo do trabalho, agora precisa ser produzido por outros meios e modos.
O caráter disruptivo do neoliberalismo ajudou a romper grilhões – as contradições movem processos históricos, como sabemos –, mesmo que suas dinâmicas de precarização, despedaçando laços e direitos, apontem para a intensificação das desigualdades, o aprofundamento da alienação e a exacerbação das taxas de exploração do trabalho. No contexto convulsionado atual, em que estruturas econômicas, familiares e políticas, outrora sólidas (provisoriamente estáveis), se decompõem – dessa fragmentação participam a globalização das cadeias de valor, a financeirização e a aceleração do desenvolvimento tecnológico –, dar conta de si (entre, com e para outros e outras) converteu-se em empreendimento titânico, por vezes épico, envolvendo mais do que intervenções estéticas no corpo e adaptações nas gramáticas afetivas e valorativas.
Não bastam tatuagens, neologismos, novos rituais coletivos, celebrações comunitárias, novas linguagens da arte e o antigo dispositivo agregador das festas populares. Tem sido necessário marcar o lugar de si e para si no desfiar das lutas pela apropriação do comando sobre o processo de revogação do patriarcalismo e do racismo (comando que pertence, por outras motivações, ao neoliberalismo), levando esse movimento às últimas consequências, em benefício do conjunto das classes subalternas, mesmo que o vocabulário negligencie a referência às classes.
A reação defensiva dos agentes das classes dominantes que lideram a implementação da agenda neoliberal tem sido a difusão da ideologia meritocrática, propagada como capaz de prover critérios éticos e objetivos teleológicos aos milhões que se encontram perdidos na tempestade. A meritocracia reza que a fortuna espelha a virtude individual, o destino está sempre certo, é sempre justo, expressa com exatidão a qualidade e o esforço investido por cada indivíduo, sendo a sociedade uma quimera na selva hobbesiana das cidades.
Contra o cinismo meritocrático, as novas gerações de intelectuais e ativistas progressistas (adoto o adjetivo na falta de uma qualificação melhor) afirmam o compromisso de tocar em frente a tarefa iniciada pelo capitalismo em seu estágio neoliberal: a revogação de estruturas patriarcais e racistas, efeito não intencional da avalanche que se precipitou, rompendo as precedentes estruturas do trabalho, reprodutivas e familiares.
E aqui vemos com clareza um dos mais graves e problemáticos mal-entendidos no diálogo intelectual e político intergeracional: a defesa das bandeiras dos trabalhadores típicas da fase anterior do capitalismo soa aos mais jovens muitas vezes regressiva, inclusive com o risco de trazer consigo as manchas passadistas patriarcais e racistas, por não as nomear e porque essas bandeiras estiveram, no passado, articuladas à velha divisão social do trabalho.
Pensemos em um exemplo que não é mais do que lateral, mesmo assim significativo: o que representam as imagens de assembleias sindicais dos anos 1980? Não sejamos reducionistas, mas não deixemos de enxergar o óbvio: lá não estão as mulheres. Elas estavam em casa. O mundo em que havia operários e sindicatos era também aquele em que as mulheres pertenciam ao universo doméstico, subordinadas a seus maridos, ou se esfalfavam em três turnos, como empregadas (duplamente) domésticas. Isso não merece menção? Só tem importância a luta de classes estampada na foto?
O que dizem as fotos dos palanques nas manifestações pela redemocratização? Onde estão as negras e os negros? Nem mencionemos a questão indígena, que complexificaria ainda mais essas reflexões.
Retomemos aqui o fio narrativo: o primeiro item entre os espantos destacados em nosso experimento mental referia-se às universidades. Voltemos a elas e concluamos esse breve exercício reflexivo. Nas bibliotecas e nas salas de aula, em que se formaram os intelectuais dos anos 1980, assim como nos comitês centrais dos partidos de esquerda, havia poucas mulheres, poucas autoras e menos professoras do que professores. E quantos eram negros ou negras?
Ao custo de alguma redundância, reiteremos: o período do pós-guerra, até o fim da guerra fria, parecia mais suscetível a ser descrito como a continuidade histórica de padrões, seja pela simples reprodução, seja por sua reversão, sob o modo de reforma ou revolução. Variavam os caminhos de modernização, as vias de desenvolvimento do capitalismo, as sendas de edificação do socialismo, as derivas social-democratas. Não estavam em jogo as figuras arquetípicas do homem e da mulher; e as lutas contra o racismo eram refregas por direitos iguais, modalidades da resistência anticolonial.
Os saltos tecnológicos (o desenvolvimento das forças produtivas) e a expansão da consciência crítica dariam passagem à emancipação humana, sob a forma de abolição da exploração do trabalho. Salvo exceções, e até que o movimento feminista (e suas pensadoras) começasse a conquistar espaço, patriarcalismo era visto como tema de etnólogos e historiadores excêntricos -ou poetas extravagantes, como Oswald de Andrade. O racismo era predominantemente visto como uma espécie de epifenômeno da exploração do trabalho: seria superado pelo socialismo.
As novas gerações não podem aceitar esses diagnósticos e prognósticos, de resto já descartados pelos fatos. Não podem e não devem por razões conceituais e existenciais. Este ponto é muito relevante. Conceitualmente, porque são diagnósticos e prognósticos insustentáveis, empírica e teoricamente – e muitos autores e autoras, como Frantz Fanon e Simone de Bouvoir, já o afirmavam no passado, inclusive no Brasil, na contramão das perspectivas prevalecentes.
Existencialmente, porque nosso tempo, como vimos acima, tendo varrido dos mapas geopolítico e sociológico referências macro-políticas modelares, cobra, com brutalidade lancinante, de cada um e de cada uma, as marcas singulares que registrem a resistência à anulação.
Já sabemos por que é indispensável que as gerações formadas antes do fim da guerra fria reconheçam a indispensabilidade de repensar as categorias tradicionais, à luz das mudanças históricas, e que não adotem posturas intelectual e psicologicamente defensivas face ao que talvez ainda não compreendam inteiramente, desqualificando por identitarismo processos sócio-psico-político-culturais muito mais complexos e fecundos.
A pergunta que resta, então, é muito simples: por que seria importante também para as novas gerações de ativistas e intelectuais críticos, que atuam no campo das humanidades, interagir com as percepções críticas dos (e das) colegas formadas em momento histórico anterior? A resposta talvez fosse: tal interação seria valiosa na medida em que ajudasse a compreender os limites que decorrem da perda de contato com a linguagem conceitual e política das classes sociais, linguagem forjada na descrição analítica dos processos de gestação histórica do capitalismo e de suas variantes.
A ausência de referências a processos históricos, às estruturas de classe e às relações entre economia e política tende a invisibilizar o papel do Estado e das mediações institucionais. Ignorar regimes políticos, institucionalidades jurídico-políticas, agências burocráticas e entidades político-institucionais, variações nas correlações de força e as dinâmicas societárias associadas a políticas públicas, impede, por exemplo, diagnósticos conjunturais e prognósticos, sem os quais as práticas políticas se desorientam, até porque táticas e estratégias tornam-se indistinguíveis.
Nesse quadro, passam a imperar o principismo doutrinário, o sectarismo voluntarista, o espontaneísmo inconsequente. Sem o exame das mediações, o que requer elaboração conceitual adequada, as múltiplas camadas em que se arma o novelo complexo que denominamos realidade terminam por ser neutralizadas, o que suscita uma visão unilateral, unilinear e unidimensional, que submete o entrechoque de movimentos, tensões, tendências e conflitos à uniformidade de um contínuo. Esse reducionismo extremo conduz, no limite, à conclusão a um tempo jacobina e imobilista: ou tudo muda, ou nada muda. Na disputa entre tudo e nada, salvo exceções raríssimas, vence a impotência e a conservação do status quo.
Eis alguns motivos para que se disponham a dialogar, em bases francas e sistemáticas, intelectuais e ativistas de origens diversas, inclusive e especialmente aquelas e aqueles que se formaram em momentos históricos distintos. Talvez seja exagero dizer que essa interlocução pode beneficiar a conquista comum da emancipação multidimensional, individual e coletiva. Mas não o será reconhecer, para cada uma e cada um de nós, participantes do diálogo, seus benefícios intelectuais e existenciais.
*Luiz Eduardo Soares é cientista político, antropólogo, professor da UERJ e ex-secretário nacional de Segurança Pública. Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar – Segurança pública e direitos humanos (Boitempo).
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