Por HENRI ACSELRAD*
Apenas a interrupção da transferência dos danos àqueles menos representados nas esferas decisórias fará o combate ao risco entrar na pauta do poder
O surgimento da questão pública do meio ambiente alimentou o debate pré-existente sobre riscos e desastres no campo das ciências sociais aplicadas. Diversos autores buscaram teorizar a questão das ameaças à estabilidade ecológica da sociedade. Entre eles, o sociólogo Ulrich Beck sustentou que a categoria risco estaria redefinindo o todo social de modo supostamente distinto daquele que havíamos conhecido antes do surgimento da questão ambiental como problema público.[i] Ao buscar caracterizar o que haveria de totalmente novo, ele deu peso particular às tecnologias de grande impacto e sua potência destrutiva.
Para delinear as novas condições de mobilização crítica da sociedade, baseou-se, em particular, na experiência do movimento ecologista alemão, em sua resistência ao uso da energia nuclear. Dada a força conjuntural demonstrada por aquele movimento, este autor passou a supor que as tecnologias de alto poder destrutivo tenderiam, num futuro próximo, a ser fortemente rejeitadas pela população, dado o caráter espetacular dos desastres que podem produzir. Para ele, a questão do risco se tornaria o novo eixo do conflito estruturante da sociedade contemporânea.
O trabalho de Ulrich Beck foi muito disseminado e foi, também, objeto de alguns questionamentos: faria sentido entender o risco como novo princípio axial de organização do social? Ou a sociedade dividida em classes, gênero e raça seria ainda uma categoria capaz de explicar os processos decisórios relativos às escolhas técnicas, definidas nos centros de cálculos das grandes corporações, sob os imperativos da lucratividade e da competitividade?
A divisão da sociedade em classe, gênero e raça não seria capaz de explicar a distribuição socioespacial desigual dos riscos associados à localização de equipamentos, infraestruturas perigosas, depósitos de resíduos e moradia insegura segundo as lógicas de valorização e desvalorização do mercado de terras? Não seria esta divisão suficientemente explicativa dos processos de vulnerabilização que deixam de atribuir ou subtraem aos grupos sociais não-brancos e de baixa renda, pouco representados na esfera política, suas capacidades de autodefesa frente aos agravos ambientais, tecnológicos, sanitários, de moradia insegura, de insegurança fundiária etc.?
Desde esta segunda perspectiva, entende-se que, nas sociedades de classes, as práticas espaciais dominantes sempre estiveram subordinadas à lógica da acumulação de riqueza e às geoestratégias do poder. Não haveria, portanto, uma autonomia significativa da racionalidade técnica com relação aos propósitos de acumulação de dinheiro e poder. O risco técnico, na perspectiva destes grandes interesses, sempre foi tratado como efeito colateral manejável por estratégias empresariais e governamentais de negação, neutralização ou compensação de danos.
O historiador Alain Corbin mostrou como, já nos primórdios da industrialização, prevalecia, no âmbito das elites, um otimismo tecnológico e uma naturalização da poluição nascente. Toda a ansiedade associada aos supostos males dos miasmas e emanações humanas, dizia ele, contrastava com a tolerância dos peritos frente às emanações industriais. Era grande o otimismo dos sábios e sua confiança na capacidade do progresso técnico limitar os efeitos indesejáveis das fábricas. Os peritos desqualificavam as denúncias de incômodos, davam consentimento e praticavam uma pedagogia do progresso técnico.[ii]
Ademais, o próprio combate à pobreza é, com frequência, evocado para justificar, por exemplo, a construção de equipamentos perigosos como barragens de mineração, nos países do Sul. Ou, nos países do Norte, a busca de independência energética vem servindo, como no caso dos efeitos da guerra na Ucrânia, de argumento para que riscos associados à energia nuclear, sejam impostos e aceitos.
É preciso considerar, portanto, o papel da luta discursiva na disputa em torno aos impactos negativos ou à suposta inocuidade das técnicas, das práticas espaciais, estruturas logísticas ou uso de substâncias perigosas. Negacionismo científico, recurso a contralaudos, desqualificação de evidências ou evocação de causas supostamente maiores de ordem estratégica são meios aplicados, na esfera pública, por coalizões desenvolvimentistas e blocos de interesses geopolíticos. Vale perguntar: não haveria uma certa ingenuidade em acreditar que o desastre em si faria o papel de “uma crítica similar à dos contramovimentos políticos” ou que “a leitura dos jornais diários se torna um exercício de crítica à tecnologia”? [iii]
Ou que “o mais convincente oponente da indústria perigosa é a própria indústria perigosa”? [iv] Sabemos, por exemplo, que a usina nuclear de Fukushima, em 2011 no Japão, foi reaberta apenas um ano após um grande desastre e as promessas de seu fechamento. Vazamentos de óleo, ruptura de barragens, ameaças ligadas à construção de Belo Monte, desastres decorrentes da moradia insegura – sempre haverá disputa entre argumentos e justificativas.
Em um debate público realizado uma semana após o desastre da Samarco em 2015, por exemplo, enquanto eram expostos dados sobre a vitimação mais que proporcional de negros e pardos nos distritos mais atingidos pelo rompimento da barragem, representantes empresariais propunham, em paralelo, que o Estado viesse a criar um fundo destinado a salvar empresas responsabilizadas por desastres de grandes consequências. Ou seja, ousou-se propor que a “irresponsabilidade organizada e discriminatória” passasse a ser financiada por todos nós.
Se há uma distribuição desigual do poder de decisão sobre a produção de riscos, o mesmo ocorre com relação à distribuição dos próprios riscos. Em 1991, o economista chefe do Banco Mundial, Lawrence Summers escreveu seu mal-afamado Memorando, vazado na revista The Economist, justificando a economicidade da divisão socioespacial perversa das práticas poluentes.[v] Propunha ele então que as atividades poluentes fossem localizadas em países onde a população fosse mais pobre e tivesse menor esperança de vida.
Esta lógica discriminatória – de uma espécie de economia política da vida e da morte – foi aplicada efetivamente, no plano internacional, com frequência mais acentuada a partir das reformas neoliberais dos anos 1980. Desde então, estas reformas permitiram que os investidores internacionais pressionassem os governos locais a flexibilizar normas ambientais como condição de sua implantação nas economias periféricas. Isto favoreceu a imposição de danos e riscos aos mais despossuídos e fez da desigualdade ambiental um elemento constitutivo da “ambientalidade” do capitalismo neoliberal.
Conforme lembrou a socióloga Norma Valêncio, a respeito do desastre em São Sebastião e em Bertioga, no litoral Norte de São Paulo, “os terrenos geomorfologicamente mais seguros foram os terrenos dos quais as camadas mais abastadas da sociedade se apropriaram”. “O que resta para os pobres é, na maioria das vezes, a ocupação irregular com um mercado de terras informal, paralelo, em áreas não apenas intrinsecamente inseguras, mas onde os infrassistemas públicos são inexistentes, insuficientes ou inadequados”.[vi]
Esta dinâmica inigualitária tem sido apresentada, por movimentos sociais críticos, como uma explicação para a inação de Estados e corporações ante os diagnósticos da mudança climática. Segundo eles, enquanto os que detêm o poder de tomar as decisões relativas a desmatamentos, a projetos agroquímicos, hidroenergéticos, de petróleo e gás puderem se manter afastados dos danos que eles próprios produzem, transferindo estes danos, sistematicamente, para os mais desprotegidos no planeta, nenhuma medida efetiva será tomada.
O filósofo Walter Benjamin havia escrito ser preciso puxar o freio de emergência da locomotiva do progresso para evitar uma trajetória rumo a um possível colapso.[vii] Hoje vemos que os que sofrem os efeitos da emergência e fazem o alarme, não têm correntemente acesso aos freios. Por consequência, somente a interrupção da transferência dos danos àqueles que estão menos representados nas esferas decisórias poderá fazer o combate ao risco entrar efetivamente na pauta do poder.
Um órgão de imprensa consultou recentemente seus leitores sobre o que o poder público deveria fazer para proteger a população de eventos climáticos extremos. Vários responderam: “conscientizar a população sobre os riscos”, “melhorar ferramentas de alerta”, “prover áreas com infraestrutura antes de receber construções”, entre outras propostas. A inclusão de representantes dos grupos vulnerabilizados nas tomadas de decisão sobre as políticas de prevenção dos riscos seria um início de solução para os males das desigualdades ambientais.
*Henri Acselrad é professor titular aposentado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).
Notas
[i] Ulrich Beck, Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade, ed. 34, São Paulo, 2010.
[ii] Alain Corbin. El perfume y el miasma: El olfato y lo imaginario social, siglos XVIII y XIX, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1987.
[iii] Ulrich Beck, From Industrial Society to the Risk Society: questions of survival, social structure and ecological enlightenment, Theory Culture Society, vol. 9, 1992, p. 116..
[iv] Ulrich Beck, op. cit., 1992, p. 115 e U. Beck, Politicas ecologicas en la edad de riesgo, El Roure, Barcelona, 1998, p.165.
[v] Let Them Eat Pollution, The Economist, February 8, 1992
[vi] “Chuva ´não dá conta de explicar o desastre` no litoral norte de SP, diz especialista”
[vii] Em 1940, o filósofo Walter Benjamin falou da necessidade de um freio de emergência à locomotiva do progresso; Gesammelte Schriften, Berlim, Suhrkamp, 1977, I, 3, p. 1232, apud M. Lowy, A Revolução é o freio de emergência – ensaios sobre Walter Benjamin, ed. Autonomia Literária, São Paulo, 2019, p. 145.
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