Recados para os norte-americanos

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Por RUBEN BAUER NAVEIRA*

Considerações sobre o discurso anual ao parlamento russo de Vladimir Putin

O presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, proferiu no dia 21 de fevereiro o seu discurso anual ao parlamento russo, amplamente repercutido no Ocidente por conta da guerra em andamento na Ucrânia. Dentre todos os temas abordados no discurso, qual terá sido o de maior impacto? A maioria dos analistas dirá que foi a saída da Rússia (definida por Putin como “suspensão”) do tratado New START (sigla para Strategic Arms Reduction Treaty, ou Tratado de Redução de Armas Estratégicas) com os Estados Unidos, firmado em 2010 para a redução dos arsenais nucleares de ambos os países.

Sem dúvida trata-se de um anúncio de impacto e repercussão imensos, porém, em termos de vir a ocorrer uma guerra nuclear entre Rússia e Estados Unidos (que devastaria todo o planeta), não foi o de maiores impacto e repercussão do discurso – dois outros anúncios ainda mais significativos passaram largamente despercebidos aos analistas ocidentais.

O primeiro deles foi este (nota: para não incorrer em interpretação má ou ambígua de textos primeiramente traduzidos do russo para o inglês e então traduzidos do inglês para o português, optamos por sempre utilizar ao longo deste artigo as transcrições oficiais, em inglês, pelo Kremlin ou pela Agência Tass; seguem traduções para o português em notas ao final do texto):

We know the truth. We are aware of the fact that certain types of US nuclear weapons are reaching the end of their service life. In this regard, we know for certain that some politicians in Washington are already pondering live nuclear tests, especially since the United States is developing innovative nuclear weapons. There is information to that effect. Given these circumstances, the Defence Ministry and Rosatom must make everything ready for Russia to conduct nuclear tests. We will not be the first to proceed with these tests, but if the United States goes ahead with them, we will as well”.(1)

Desde os anos 1990, ambos os países adotaram uma moratória de testes nucleares, e ambos ratificaram o tratado CTBT (sigla para Comprehensive Nuclear Test Ban Treaty, ou Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares), o qual contudo não entrou em vigor por não ter sido ratificado por outros países do clube nuclear (China, Israel, Índia, Paquistão e Coréia do Norte).

Fato é que armas nucleares têm vida útil, afinal são baseadas em materiais radioativos. Como então poderiam ser “repostas”? Se não é possível realizar novos testes de armas nucleares, o único modo é pela preservação dos saberes (conhecimento) tecnológicos históricos a respeito. Acontece que a maior parte dos arsenais nucleares tanto dos Estados Unidos como da Rússia foi constituída anteriormente à década de 1990. A Rússia conseguiu preservar o conhecimento tecnológico no campo (Vladimir Putin mencionou em seu discurso que o índice de modernização no arsenal nuclear russo atingiu 91,3%), mas, e os Estados Unidos?

Esse trecho do discurso de Vladimir Putin foi um duro recado aos militares americanos: os russos sabem que uma parte significativa do arsenal nuclear americano já expirou sua validade ou encontra-se próximo de expirar. E eles também sabem que os americanos não têm hoje outra alternativa que não retomar seus testes nucleares, o que eles farão em breve (muito provavelmente ainda em 2023). A propósito, há mais de dois anos os russos vêm reformando o antigo sítio de testes nucleares soviético, no arquipélago de Nova Zembla no círculo polar ártico. Assim que os americanos retomarem os seus testes nucleares os russos farão o mesmo, em mais um momento de choque para o mundo.

O outro anúncio que passou ainda mais despercebido é, sem dúvida, o mais assustador. Quem apressadamente lê o trecho, contudo, nele não vê a princípio nada mais que a retórica anti-Ocidente usual de Putin: “The Western elite make no secret of their goal, which is, I quote, “Russia’s strategic defeat.” What does this mean to us? This means they plan to finish us once and for all. In other words, they plan to grow a local conflict into a global confrontation. This is how we understand it and we will respond accordingly, because this represents an existential threat to our country. […] I would like to stress that the United States and NATO are openly saying that their goal is to inflict a strategic defeat on Russia.(2)

Acontece que, em junho de 2020, Putin assinou um decreto (Basic Principles of the Russian Federation’s State Policy in the Domain of Nuclear Deterrence) atualizando a doutrina do país para o emprego de armas nucleares, a qual passou a dispor que: “The Russian Federation retains the right to use nuclear weapons in response to the use of nuclear weapons and other types of weapons of mass destruction against it and/or its allies and also in the case of aggression against the Russian Federation with the use of conventional weapons, when the very existence of the state is put under threat.(3)

De forma bastante explícita, ao recorrer à expressão “existential threat” (amaça existencial), Putin define a situação atual como uma em que a Rússia se atribui o direito ao recurso às armas nucleares (e nem seria preciso, digamos, algum ataque a Moscou; cabe lembrar que, após os plebiscitos ocorridos nas quatro províncias ucranianas anexadas à Rússia, as mesmas passaram a ser legitimamente consideradas território russo).

Os americanos, desde sempre, se outorgaram o direito ao que chamam de “first strike” (primeiro golpe), um ataque nuclear devastador e de surpresa para decapitar a liderança russa sem lhes dar tempo de reação e para destruir os mísseis russos ainda nos seus silos de lançamento – por isso a eventual instalação de mísseis em território ucraniano era uma “linha vermelha” para os russos e um anseio para os americanos, dada a proximidade geográfica (o tempo de voo de um míssil até Moscou cairia para cerca de quatro minutos). Os russos, a partir de agora, se outorgam exatamente o mesmo direito, sem recorrer a expressões do tipo “first stike” que chamam a atenção e causam alarme. Num momento em que a escalada militar de parte a parte avança na Ucrânia, não poderia haver novidade pior para o restante do mundo.

Na verdade, Vladimir Putin já havia deixado transparecer essa nova postura quando, em 9 de dezembro de 2022, ao falar aos jornalistas após a reunião de cúpula no Quirguistão da União Econômica Eurasiana, ele disse de forma irônica que “a respeito de um ataque preventivo para desarmar o inimigo, coisa que os nossos parceiros americanos há muitos anos não se inibem de aventar, quem sabe nós devêssemos também nos inspirar nesses conceitos que eles adotam para garantir a segurança deles, agora que nós temos os nossos mísseis hipersônicos?”. Naquele momento esse chiste acabou tomado como blefe, porém, pouco mais de dois meses depois, Vladimir Putin mostra que estava falando muito a sério.

Especificamente quanto à atuação internacional do Brasil, que se propõe ao papel de mediador para a guerra da Ucrânia, já tivemos aqui a oportunidade de alertar quanto à importância crítica de informações de inteligência para subsidiar essa atuação, afinal estamos todos diante de um quadro por demais complexo, bem como por demais perigoso para com o próprio destino da Humanidade.

*Ruben Bauer Naveira é ativista político. Autor do livro Uma Nova Utopia para o Brasil: Três guias para sairmos do caos (disponível em http://www.brasilutopia.com.br/).

Notas


(1) Nós sabemos a verdade. Nós estamos a par do fato de que certos tipos de armas nucleares dos Estados Unidos estão chegando ao fim da sua vida útil. Nesse sentido, nós sabemos com certeza que alguns políticos em Washington já estão ponderando testes nucleares de campo, em especial dado que os Estados Unidos estão desenvolvendo armas nucleares inovadoras. Existe informação comprobatória. Diante disso, o Ministério da Defesa e a Rosatom devem deixar tudo pronto para a Rússia realizar testes nucleares. Nós não seremos os primeiros a proceder com esses testes, mas, se os Estados Unidos forem adiante com eles, nós também iremos.

(2) A elite no Ocidente não faz segredo do seu objetivo, qual seja, eu aqui os cito, “a derrota estratégica da Rússia”. O que significa isso para nós? Isso significa que eles planejam nos liquidar de uma vez por todas. Em outras palavras, eles planejam alimentar um conflito local até uma confrontação global. É assim que nós entendemos isso, e nós responderemos em consonância, porque isso representa uma ameaça existencial ao nosso país. […] Eu gostaria de enfatizar que os Estados Unidos e a OTAN estão dizendo abertamente que o seu objetivo é infligir uma derrota estratégica à Rússia.

(3) A Federação Russa se reserva o direito de utilizar armas nucleares em resposta ao uso de armas nucleares e outros tipos de armas de destruição em massa contra si e/ou contra seus aliados, bem como no caso de agressão contra a Federação Russa com o uso de armas convencionais, quando a própria existência do estado for posta sob ameaça.


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