Capítulo VI (inédito)

Roger Hilton, Sem título, 1953
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Por RICARDO ANTUNES & MURILLO VAN DER LAAN*

Apresentação da edição recém-lançada do manuscrito de Karl Marx

Este novo volume, publicado pela Boitempo na coleção Marx-Engels, era um velho desejo, dotado de motivação dúplice. A primeira delas é apresentar ao público leitor brasileiro, estudioso e interessado na obra de Marx, a primeira tradução feita do original alemão do excepcional texto Resultado do processo de produção imediato, o qual se tornou conhecido no Brasil como Capítulo VI (inédito). A segunda motivação aparece como apêndice ao texto.

Trata-se da publicação do Questionário para trabalhadores elaborado por Marx para uma pesquisa operária na França, que se tornou conhecida como Enquete operária,em tradução feita, também pela primeira vez, do manuscrito em inglês (cotejada com o francês, língua em que foi publicada originalmente). Acompanhando o volume, incluímos ainda a carta de Marx a Friedrich Adolph Sorge, de 5 de novembro de 1880, em que Marx menciona a Enquete operária.

Com esta publicação, a coleção Marx-Engels preenche uma grande lacuna ao possibilitar a leitura dos manuscritos marxianos traduzidos da Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA). Os textos aqui reunidos trazem a marca indelével da obra de Marx. Enquanto o Capítulo VI é um momento analítico de peso de sua produção, a Enquete operária remete à importância da autoconsciência da classe trabalhadora sobre sua própria condição. Dada a densidade da produção marxiana, ambos os textos têm uma longa, rica, plural e polêmica história de interpretação em todo o mundo. Nesta breve apresentação, gostaríamos de indicar apenas algumas das dimensões históricas do Capítulo VI e da Enquete operária e destacar o que consideramos os seus principais movimentos analíticos, convidando o leitor a ele próprio dar continuidade a essa história.

O Capítulo VI (entre os livros I e II de O capital)

O Capítulo VI Resultado do processo de produção imediato foi escrito em meados de uma década crucial do desenvolvimento das reflexões marxianas. O período entre 1857 e 1867 foi aquele em que os estudos críticos de Marx sobre a economia política burguesa e sobre a classe trabalhadora tomaram a forma que aparecerá em O capital. Nessa década, o processo de redação de sua obra principal passou pelo que é comumente considerado como três esboços diferentes: o primeiro, iniciando com os Grundrisse, em 1857-1858, culminará no chamado Urtext [Texto original] e na publicação de Para a crítica da economia política, em 1859; o segundo refere-se aos manuscritos econômicos de 1861-1863, quando Marx redige partes que comporão, posteriormente, os Livros I e III de O capital, e quando faz o enfrentamento teórico que resultará nas Teorias da mais-valia; já o terceiro diz respeito aos manuscritos econômicos de 1863-1865. É nesse último período que O capital é redigido, pela primeira vez, em três livros, que tratam do processo de produção do capital, de sua circulação e de sua configuração global.

O esboço do Livro I, sobre o processo de produção do capital, foi escrito, provavelmente, entre meados de 1863 e meados de 1864. Para os editores da MEGA, a estrutura desse primeiro volume possivelmente diferiria pouco da primeira edição que veio a público, em 1867. Apresentaria, assim, os seguintes capítulos:

Transformação do dinheiro em capital; A produção do mais-valor absoluto; A produção do mais-valor relativo; Investigações complementares sobre a produção do mais-valor absoluto e relativo; Processo de acumulação do capital; Resultado do processo de produção imediato.

Dessa possível configuração e do material que a comporia, apenas o Capítulo VI foi preservado, junto a algumas folhas avulsas do restante do material. Concebido como um texto que encerraria o Livro I de O capital e serviria de “ponte” para o Livro II, o Capítulo VI tem, ao mesmo tempo, uma dimensão de conclusão e recapitulação das reflexões do Livro I e de abertura para o Livro II. Ele apresenta, assim, uma síntese de argumentos centrais da reflexão marxiana, em um período decisivo de sua produção intelectual.

O texto permaneceu inacabado, no entanto, e não foi incorporado em nenhuma das edições de O capital. Não há indicações conclusivas de por que Marx não finalizou a redação do capítulo e não o incluiu no Livro I. Ernest Mandel, em meados dos anos 1970, arriscou a hipótese de que o Capítulo VI não se encaixaria no modo como Marx concebeu a estrutura de O capital, isto é, como um “todo artístico” dialeticamente estruturado.

Por sua vez, em 1988, os editores da MEGA argumentaram que possivelmente Marx teria descartado o texto porque as discussões presentes nele já estariam nos demais capítulos do Livro I. Ademais, a teorização da mercadoria como um produto do capital, realizada ali por Marx, demandaria análises que seriam feitas somente no Livro III.

De todo modo, a primeira publicação do Capítulo VI ocorreu simultaneamente em alemão e russo, em 1933, no volume II (VII) do periódico Arkhiv Marksa i Engelsa [Arquivo de Marx e Engels] editado pelo Instituto Marx-Engels-Lenin, ligado ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética. O texto ganhou projeção, no entanto, somente com a publicação de excertos organizados por  Maximilien Rubel, em 1967, seguidos da versão integral em edições alemã e italiana (em 1969), francesa (em 1971) e inglesa (em 1976). No Brasil, o Capítulo VI foi publicado (em 1978) pela Livraria Editora Ciências Humanas, em tradução do castelhano para o português, cotejada com a edição alemã.

Essa grande difusão editorial, que teve continuidade no século XXI, deve-se à riqueza analítica e sintética do texto. Tamanha é a força do Capítulo VI, que aqui destacaremos somente alguns pontos, de modo a convidar os/as leitores/as a mergulharem nas múltiplas e ricas dimensões do manuscrito.

Nele, Marx refere-se à mercadoria de maneira bastante concreta, não somente como um pressuposto para a produção capitalista, mas como resultado de seu processo produtivo e, enquanto tal, usualmente como uma parte singular de uma massa de mercadorias similares, que tem sempre como horizonte a geração de mais-valor. Por outro lado, Marx analisa as formas diversas do fetichismo típicas da sociedade do capital, expressão da peculiar divisão social do trabalho mediada pelas coisas, mostrando os reflexos desse fetichismo nas interpretações dos economistas burgueses.

Um dos momentos mais expressivos do Capítulo VI está na detalhada elaboração marxiana acerca do que é trabalho produtivo e improdutivo para o capital. Podemos dizer, sinteticamente, que o trabalho produtivo é definido como aquele que tem como atributo central a geração de mais-valor. Sua conceituação é categórica: o trabalho produtivo é aquele que valoriza o capital e gera mais-valor. Marx chega, inclusive, a afirmar que o trabalho produtivo é aquele que cria diretamente mais-valor (formulação repetida em O capital, excluindo,entretanto, a palavra diretamente).

Marx acrescenta também que o trabalho produtivo é aquele pago pelo capital-dinheiro, diferenciando-o da renda, que é a modalidade de pagamento destinada ao trabalho improdutivo, que gera valor de uso, mas não valor de troca.

Essa rigorosa e complexa definição das diferenciações entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo para o capital, que aqui tão somente indicamos, é questão nodal, a efetiva intelecção não só do funcionamento do modo de produção capitalista como também dos inúmeros desafios presentes quando se tem como objetivo central a sua superação, em especial neste momento em que o sistema metabólico do capital atinge o maior nível de letalidade e destrutividade.

Outro ponto de destaque é aquele em que o autor conceitua o processo de valorização do capital como resultante sobretudo da produção material, mas podendo ocorrer também, esporadicamente, na produção não material. Isso porque o trabalho produtivo ou improdutivo é uma relação social, uma dada forma social que permite a valorização do capital.  Isso o leva a dizer que trabalhos iguais, quanto à sua natureza, podem ser tanto produtivos quanto improdutivos. O que em essência os define e diferencia é a sua participação (ou não) no processo de criação de mais-valor. 

Com base nessa formulação, Marx apresenta a seguinte conclusão: se todo trabalho produtivo é assalariado, o inverso não é verdadeiro. Nem todo trabalho assalariado se torna produtivo para o capital. Mas acrescenta que, mesmo quando ele é improdutivo, isso não elimina o fato de que essa forma de trabalho é imprescindível para a manutenção e reprodução do modo de produção capitalista.

Entre tantos outros pontos que poderíamos aqui mencionar, temos as definições categoriais de subsunção formal e de subsunção real do trabalho ao capital. A subsunção formal do trabalho ao capital encontrou vigência na fase manufatureira, quando o trabalho preservava sua perícia produtiva e sua destreza, enquanto a subsunção real do trabalho ao capital se tornou expressão típica da fase que Marx denominou como grande indústria. Com o advento da maquinaria, a atividade laborativa converteu os trabalhadores e as trabalhadoras em apêndices da máquina, espécies de autômatos em relação à maquinaria e ao capital. Essa categorização é certamente um dos momentos analíticos mais preciosos do Capítulo VI.

Há, por fim, mais um ponto que gostaríamos de indicar e que se tornou absolutamente essencial para uma melhor intelecção do capitalismo atual: menos que resultado de um trabalho isolado, o trabalho produtivo que o capital cada vez mais desenvolve é aquele resultante de uma capacidade de trabalho socialmente combinada. Isso significa que o mais-valor é um processo social e, consequentemente, que a classe trabalhadora é um complexo social amplo, heterogêneo, múltiplo e compósito.

A importância dessas teses fica mais evidente na medida em que um amplo leque dos serviços está cada vez mais desenhado pela lógica da mercadorização, isto é, participa crescentemente do processo de geração de mais-valor, seja de modo predominantemente material, seja por meio de seus crescentes traços de imaterialidade, ambos presentes, cada vez mais imbricados e inter-relacionados, nas novas cadeias produtivas globais.

Entre as hipóteses que apresentamos anteriormente com base em alguns estudiosos da obra marxiana, podemos sugerir, então, que o Capítulo VI não foi publicado na íntegra pelo autor porque algumas de suas formulações foram reelaboradas nos anos posteriores. É sempre bom recordar, como encontramos em conhecido diálogo com suas filhas, que um dos preceitos fundamentais de Marx era de omnibus dubitandum (duvidar de tudo).

Mas sabemos também que, mesmo não sendo incluído integralmente no Livro I de O capital, várias das teses ali presentes são mantidas, como se pode constatar, por exemplo, no Capítulo XIV (“Mais-valor absoluto e relativo”, Livro I, Seção V), e em outras indicações esparsas nos Livros II e III, bem como nos manuscritos das Teorias da mais-valia.

A Enquete operária: autoinvestigação da classe trabalhadora

Mais de quinze anos separam a data provável da redação do Capítulo VI daquela em que foi escrito o texto que consta como apêndice ao presente volume. O manuscrito de Marx intitulado Questionário para trabalhadores foi redigido na primeira quinzena de abril de 1880. Com o título de Enquete operária (Enquête ouvrière), foi publicado em La Revue Socialiste, n. 4, em 20 de abril de 1880 e, simultaneamente, em 25 mil cópias endereçadas a “todas as sociedades de trabalhadores, todos os grupos ou círculos socialistas e democráticos, a todos os jornais franceses e a todas as pessoas que o requisitarem”.

La Revue Socialiste havia sido lançada em janeiro de 1880 e era dirigida por  Benoît Malon, com a colaboração de Paul Lafargue, Jules Guesde e Gabriel  Deville. Ao número que trazia o questionário redigido por Marx, o periódico acrescentou um pequeno texto introdutório ressaltando que nenhum governo francês, fosse monárquico, fosse burguês republicano, havia aplicado uma enquete séria sobre a situação da classe trabalhadora na França. Segundo essa “Introdução”, a enquete oficial realizada pelo governo da Inglaterra, ao contrário, teria revelado as mazelas da exploração capitalista, e as consequências disso teriam sido a introdução de restrições legais como a limitação da jornada de trabalho a dez horas, a regulamentação do trabalho infantil e das mulheres etc.

Sarcasticamente, o periódico dizia que a iniciativa de utilizar seus parcos recursos para a aplicação de uma enquete operária poderia animar o governo republicano francês a seguir o exemplo da monarquia inglesa e implementar uma pesquisa efetiva sobre a situação da classe trabalhadora na França. Mais importante, o texto introdutório ao questionário ressaltava que apenas os trabalhadores e trabalhadoras poderiam, de fato, descrever sua própria situação e que somente a luta deles conseguiria superar suas mazelas, sendo que as respostas dos operários ofereceriam material para pesquisas que seriam publicadas na revista e, posteriormente, reunidas em um volume independente.

La Revue Socialiste não fazia referência à autoria de Marx. Entretanto, na carta de 5 de novembro de 1880 a Friedrich Adolph Sorge, que integra este volume, Marx menciona que havia redigido o questionário para o periódico. Essa primeira redação foi feita em inglês e possui uma adição de Charles Longuet, o que, para os editores da MEGA, seria também um indicativo de que Longuet teria providenciado a tradução para o francês.

Entre o original e a publicação de La Revue Socialiste há algumas diferenças. Marx dividiu a enquete em quatro grandes seções, que foram mantidas pela revista. Nesta, no entanto, optou-se por uma numeração contínua, não reiniciando a contagem a partir de cada seção, como se faz no original. Duas questões foram adicionadas pelo periódico: a no. 88 pedia aos trabalhadores que relatassem as ações dos tribunais que lidavam com as questões relacionadas ao trabalho; a no. 101 remetia a observações gerais que os trabalhadores quisessem fazer. Além disso, algumas alterações do texto de Marx foram feitas pela revista, que estão aqui registradas no trabalho de tradução e cotejamento cuidadoso de Ronaldo Vielmi Fortes.

A Enquete operária delineia um fértil caminho de pesquisa sobre as condições de vida da classe trabalhadora. Tornou-se um roteiro precioso e um percurso metodológico basilar de como melhor apreender a vida cotidiana da classe operária, de como “se apropriar da matéria em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno”, para que, em seguida, se possa “expor adequadamente o movimento real”.

O questionário de Marx acompanha sua concepção de que a ciência só pode ser efetivamente rigorosa se for capaz de superar o “invólucro místico” e assim caminhar em direção a uma análise dialética. Ao contrário de uma aparente neutralidade axiológica, a formulação marxiana sempre foi incisiva ao indicar que as abstrações e o desvendamento do real só poderiam ser efetivados por meio de uma ontologia que, ao contrário de todas as anteriores, fosse simultaneamente dialética e materialista. Os dois textos aqui publicados são expressões vivas dessa proposição.

Hilde Weiss, em um artigo clássico sobre a Enquete operária, publicado em 1936, oferece uma boa introdução ao questionário, destacando os novos elementos nele presentes, com “seu método de obter dados diretamente dos operários”, bem como de oferecer pioneiramente “uma verdadeira e rigorosa descrição das condições da classe operária e do caminho de sua libertação”.

A autora acrescentou: “simplesmente ao ler as cem questões, o trabalhador seria levado a perceber os fatos triviais e evidentes ali mencionados como elementos de um quadro geral de sua situação”. Por isso, a “simplicidade e o rigor das questões da Enquete operária representam um progresso em relação às pesquisas anteriores”, que “eram privadas e oficiais”, o que ocorria porque os pesquisadores precedentes, “mesmo que tivessem a intenção, não podiam perceber o verdadeiro caráter dos males sociais, porque utilizavam-se de meios inadequados para colher suas informações. Dirigiam-se quase exclusivamente a donos de fábricas e seus representantes, a inspetores de fábricas, onde havia essas pessoas, ou a funcionários do governo”.

A importância da Enquete operária se encontra, reiteramos, em oferecer um fértil caminho de pesquisa sobre as condições de vida da classe trabalhadora. O conjunto das questões – das mais simples às mais complexas, das mais empíricas àquelas que exigiam reflexão – englobava quase tudo o que dizia respeito à classe trabalhadora. Não anteciparemos aqui seus tantos pontos, mas convidaremos vivamente à sua leitura.

Não foi por acaso, então, que esse pequeno texto teve tanta influência, entre pesquisadores e pesquisadoras, assim como entre militantes da ação operária. A Enquete apareceu em um momento particular da organização da classe trabalhadora na França. Quase dez anos antes, a experiência da Comuna de Paris havia estremecido a Europa, mas sofrido uma forte derrota. As condições de trabalho na França estavam, obviamente, longe de serem idílicas: os trabalhadores franceses tinham jornadas de trabalho entre dez e doze horas, recebiam salários aquém do custo da reprodução de suas vidas e de suas famílias e estavam proibidos de se organizarem em sindicatos.

Não obstante, à época da publicação do texto, as greves proliferavam em Paris e em outras grandes cidades da França. Na carta a Friedrich Sorge reproduzida neste volume, Marx refere-se com otimismo às perspectivas de organização da classe na França. Diferentemente das seitas e das lideranças burguesas radicais do passado, despontaria então, segundo ele, “o primeiro movimento real de trabalhadores na França”.

O questionário buscava, assim, subsidiar essa potencial organização a partir de uma investigação profunda das demandas da classe. Não se tratava, no entanto, de uma ideia nova de Marx e dos movimentos operários. Em meados de 1866, enquanto membro do Conselho Central da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), Marx redigira o documento intitulado “Instruções para os delegados do Conselho Geral Provisório. As questões singulares”, que foi lido como relatório do Conselho Central da AIT no Congresso de Genebra, em setembro de 1866. Entre os diversos pontos tratados, o texto sugeria uma combinação de esforços internacionais para uma “investigação estatística da situação das classes trabalhadoras de todos os países, investigação esta que deve ser realizada pelas próprias classes trabalhadoras”. Um esquema geral da enquete, muito menor que o questionário de 1880, acompanhava o documento, com o comentário de que ele poderia ser adaptado às realidades de cada país. As respostas seriam reunidas pelo Conselho Central da AIT e publicadas em um relatório geral.

A recomendação de Marx sobre a investigação estatística foi aprovada por unanimidade pelo Congresso de Genebra. Os congressos em Lausanne (1867), em Bruxelas (1868) e na Basileia (1869) ressaltaram a necessidade de levar a cabo a proposta aprovada em 1866. Sua implementação, contudo, foi dificultada, entre outros motivos, pela falta de recursos da organização.

Quase quinze anos depois, os obstáculos à aplicação da pesquisa permaneceram na França. Se os editores de La Revue Socialiste haviam conseguido distribuir um número significativo de questionários pelo país, as respostas a eles parecem ter sido escassas. Na edição de 5 de julho de 1880, o periódico publicou uma nota em que afirmava que já havia recebido algumas respostas, mas exortava os leitores e os amigos da revista a apressarem o envio para que pudessem, então, começar o trabalho de elaboração do que chamaram de “Cadernos do trabalho”. Depois disso, contudo, não houve mais referências à Enquete operária ou a seus resultados em La Revue Socialiste.

Dado que poucas foram as respostas obtidas, Hilde Weiss oferece suas hipóteses explicativas: em contraste com o otimismo de Marx sobre a organização dos trabalhadores na França, a autora argumenta que, ainda sob o impacto do massacre da Comuna de Paris, o período era de regressão, o que se estendia para o “movimento operário em geral”. Nossa hipótese, entretanto, retoma com mais ênfase uma pista aludida por Weiss: um questionário daquela dimensão e riqueza exigiria do operário um longo tempo para escrever suas respostas, algo impossibilitado pelas condições da fábrica, pelo trabalho, pela exaustão e pelo quase inexistente tempo livre.

A Enquete operária redigida por Marx, todavia, mostraria uma disseminação e uma vitalidade impressionantes. Como Clark McAllister comentou recentemente, ela teve ampla circulação, ainda nos anos 1880. Dividida em diversas partes, foi publicada entre maio e julho de 1880, em Genebra, no periódico Précurseur com o título de Enquête ouvrière en France, acompanhada da introdução de La Revue Socialiste. Apareceu também na Itália em La Lotta, com o título de Inchiesta operaia, nas edições de 1º e 28 julho do mesmo ano, confiscadas pela repressão.

Também em julho de 1880, a enquete de Marx foi publicada pelo periódico revolucionário Równosc´´, organizado em Genebra pelos militantes poloneses no exílio e enviado à Polônia. Trazia uma introdução própria em que se afirmava que a enquete de La Revue Socialiste fora concebida para o contexto francês e que, por isso, não contemplava todos os aspectos da vida dos trabalhadores poloneses.

Seria preciso um questionário futuro adaptado à situação da Polônia, não obstante os problemas comuns enfrentados pela classe trabalhadora nos diferentes países. Com uma perspectiva revolucionária e uma linguagem calcada no cotidiano da classe, o periódico ressaltava o autoconhecimento dos trabalhadores como um passo necessário para a superação dos preconceitos diversos e para a luta contra as causas de sua miséria e de seu sofrimento. O esforço dos revolucionários poloneses, ainda que não sem problemas, era já um indicativo de como a Enquete operária seria apropriada criativamente no século XX.

O questionário redigido por Marx foi publicado pelo Partido Comunista da Grã-Bretanha em 1933. Apareceu no Zeitschrift für Sozialforschung, do Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt, em 1936. Chegou aos Estados Unidos pelo periódico The New International, em 1938, e encontrou no Correspondence, grupo formado em torno de C. L. R. James, Raya Dunayevskaya, Grace Lee Boggs, Selma James e outros, uma rica formulação, por meio do auxílio e do estímulo ao registro e da análise das experiências de trabalhadores, negros, mulheres e jovens feitos por eles mesmos. O Correspondence teve um importante diálogo com o Socialisme ou Barbarie, na França, que, por sua vez, influenciou o Quaderni Rossi e o Classe Operaia na Itália.

Entre nós, a Enquete operária apareceu em 1964, na tradução dos textos de Marx organizados por Tom Bottomore e Maximilien Rubel e, posteriormente, como apêndice no livro de Michel Thiollent Crítica metodológica, investigação social e enquete operária.

Isso nos remete a um necessário toque da lembrança pessoal de um dos autores desta apresentação: tomamos contato com a Enquete operária, que era bastante desconhecida entre nós, em meados dos anos 1970, no mestrado em ciência política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ao cursar a disciplina sociologia do trabalho, ministrada pelo prof. Michel Thiollent, sociólogo de origem francesa que nos apresentou, pela primeira vez, a força e a potência desse pequeno escrito. Força, não é exagero dizer, que está na razão inversa de seu pequeno tamanho. Não à toa, permanece viva e influente em pleno século XXI.

*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

*Murillo van der Laan é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Sociologia da Unicamp.

Referência


Karl Marx. Capítulo VI (inédito). Manuscritos de 1863-1867, O capital, Livro I e Enquete operária. Tradução: Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo, Boitempo, 2022, 174 págs (https://amzn.to/45etDmQ).


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