General Gonçalves Dias

Imagem: Marcelo Jaboo
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Por TARSO GENRO*

O ex-chefe do GSI não pode servir de bode expiatório do Governo, que não se preparou para reagir a um golpe de Estado, nem pode servir de instrumento para os golpistas

Os tempos europeus e latino-americanos são outros. Os golpes são híbridos e não são mais os mesmos, a subjetividade popular não está mais dividida em classes claramente demarcadas pela economia e o nacionalismo – conservador dos valores culturais históricos das nações em formação – foram transformados em movimentos arcaicos e reacionários, cultivadores das armas e da violência. É assim no Brasil, nos EUA de Trump, na Rússia, na Hungria, em Portugal, na Polônia, na Itália, na Espanha e na Alemanha. O vasto mundo de Drummond trepida numa nova crise de desequilíbrios, guerras, perversões fascistas e mortes gratuitas, fora do contexto das guerras tradicionais que vimos no Século XX.

Ora eles – os fascistas – estão no poder e promovem guerras e armas, ora estão na oposição onde assediam a democracia liberal cansada. Pierre Bourdieu (Contrafogos 2, p. 46) diz – com razão sobre a Europa em construção – que “em torno dos poderes e dos poderosos (esta Europa) que é tão pouco europeia, não pode ser criticada sem que sejamos expostos a ser confundidos com as resistências arcaicas de um nacionalismo reacionário (que sem dúvida existe infelizmente)” como se nós contribuíssemos para fazê-lo “parecer moderno, se não progressista”. Arde a chama do desastre e existem muitas pedras no caminho!

O oito de janeiro passará para a história como um dia chave para o desenho do futuro democrático do país: um governo com uma semana e um dia de vida foi “tomado de surpresa” por uma tentativa de golpe de Estado porque, de uma parte, ainda estava presente nos seus órgãos de informação e nas estruturas de informação de apoio direto à segurança do Presidente, uma ampla maioria de quadros políticos comprometidos com o bolsonarismo e o golpismo e, de outra, porque o centro do governo estava perdido no espaço e no tempo: nem estava no Palácio ocupado nem no tempo dos novos golpes da guerra híbrida.

Todo o povo via estarrecido ocupações de estradas, cerco aos quartéis, orações delirantes, churrascos financiados, apelos para um suposto Deus “bolsominion” e até os pedidos de apoio a extraterrestres, para salvarem o Brasil do comunismo: a possibilidade do golpe crescia no bojo da idiotização coletiva das massas, o que é da natureza do fascismo: Generais da reserva no governo falavam abertamente numa intervenção militar salvadora, a qual – em relação aos poderes tradicionais da República – só resistia o STF, liderado pelo ministro Alexandre Moraes, acompanhado dos seus pares mais dignos daquela colegiado de mediação da legalidade e dos do direitos sonegados.

Visivelmente articulados com a tentativa golpista, grupos dos aparatos de informação do governo ainda não substituídos bloquearam as informações “formais” ao Presidente, o que paralisou o novo entorno político do Chefe da Nação, que não se apropriou, portanto, do que estava acontecendo. Mas os golpistas, que sabiam o que estavam fazendo, entenderam perfeitamente que – falhado o golpe – teriam que tomar uma outra atitude de reação imediata (logo após o fracasso do intento delinquente), para ser exposta no dia posterior ao seu fracasso. A tarefa seria colocar no mesmo no mesmo plano valorativo uma inventada “omissão do governo Lula em bloquear o Golpe” – com 8 dias de governo! – e própria intentona golpista, adredemente preparada pelos governantes do bolsonarismo, durante os seus quatro visíveis anos de subversão política da democracia.

Gonçalves Dias, um militar decente e honesto, integrado dentro da estrutura hierárquica das Forças Armadas, seria o “culpado” ideal para “provar” que Lula “gostou” do iminente movimento golpista e até mesmo da inércia do seu entorno, para obstruir a ocupação do Palácio já bloqueado por um bando de pequenos bandidos e de grandes “chefes” fascistas. O que é estarrecedor é “porque” o entorno presidencial “não entendeu” o que estava tão visível: a articulação era tão clara e tão cristalina, aliás dita e repetida por indivíduos de extrema direita, que estavam tanto no Tribunal de Contas da União, como nos esgotos da informação, bem como igualmente nas redes originárias do parlamento, impulsionadas por (poucos) militares da ativa e (inúmeros) da reserva, como uma extrema direita que sempre é simpatizante de um regime de força.

O general Gonçalves Dias não pode servir de bode expiatório do Governo, que não se preparou para reagir a um golpe de Estado, nem pode servir de instrumento para os golpistas, que apoiados por uma boa parte do empresariado “lumpen” do país – que rezava por um golpe de Estado junto com uma boa parte da população pobre do país – atiçaram e custearam os sociopatas que entendem que a terra é plana, o Palácio é terra de “Mãe Joana” e que Deus é um bolsomito, atento aos seus delírios de grandeza. Que a lei lhe caia em suas cabeças cheias de tormentos e que as penas não lhe sejam leves!

O mais importante – todavia – daquele 8 de janeiro foi que o golpe fracassou. Mas não “pela capacidade de resistência do povo brasileiro”, como chegaram a dizer muitos adeptos da mística existência de uma “fé democrática” no espírito do povo, que aliás se mostra cada vez mais inerte face às promessas não cumpridas pela democracia liberal. O golpe fracassou porque as Forças Armadas, na sua maioria profissionalizadas, não se lançaram na aventura golpista. Alguns porque não tinham unidade em torno de um “chefe”, outros porque efetivamente não querem mais golpes de Estado, outros – ainda – por respeito às normas de hierarquia que regem a instituição. E outros, talvez, que podem até aceitar um regime autoritário, mas não nos níveis de delinquência de um governo tão brutalmente inepto e cretino como foi o de Jair Bolsonaro.

O lado bom da tentativa do golpe é a possibilidade de um pacto político de longa duração no país e, portanto, a possibilidade, que as nossas Forças Armadas descubram que mais além da Guerra Fria, no mundo multipolar de hoje, a guerra mais digna que elas podem travar está muito longe daquela visão salvacionista dos anos 1970. Esta visão certamente ainda tem adeptos dentro das instituições da República e levou, quem sabe uma boa parte delas, a ver com bons olhos um capitão sociopata poder chamar o Exército Nacional de “meu Exército”, humilhando a vocação dele ser um Exército da Nação, que seria perdida no contexto de um golpe de Estado mortal contra a soberania popular.

Sustento que aquilo que não ocorreu – um golpe de Estado que faliu – é mais importante para o futuro dos governos democráticos do país do que o desvendamento das motivações imediatas do golpismo. A busca dos culpados, agora, é função do sistema de Justiça e a busca dos novos caminhos, para que isto jamais se repita, é de todos os democratas e, particularmente, da esquerda que se supõe esteja em parte influenciando o governo. O arcabouço fiscal, a luta para derrotar a fome e a pobreza extrema, uma política externa de dignidade e soberania começaram bem o governo Lula

E estes novos caminhos devem partir da compreensão que a nossa segurança interna e externa estão vinculadas, mais do que nunca e para sempre. No que concerne à segurança do Estado brasileiro – na sua dimensão interna e externa – a guerra híbrida terminou por fundi-las sem volta. E sem dúvida o 8 de janeiro é muito cristalino sobre isso: a falência do golpe foi a vitória da virtude e este tempo, que agora se abre, pode acalentar uma democracia renovada, que recoloque a esperança que a solidariedade, a igualdade e a justiça, ainda tem lugar no coração de uma ampla maioria do povo brasileiro.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).


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