Por LEONARDO BOFF*
Estamos sempre nos construindo, tendo por opção básica ou a bondade e a inclusão do outro ou da malignidade e a exclusão
A tradicional teologia católica sempre tem afirmado que o ser humano é “simul iustus et peccator”, “é simultaneamente justo e pecador” ou em linguagem mais convencional, ele possui simultaneamente dentro de si a dimensão de bondade e a dimensão de maldade. Ninguém é totalmente mau, nem totalmente bom. Se fosse totalmente mau, não haveria como redimi-lo, apenas recriá-lo. A redenção resgata aquele resquício de bondade que sobra dentro da pessoa maldosa e assim lhe é permitido recuperar sua parte de bondade e sua humanidade.
Igualmente afirma que por melhor e mais santo que seja alguém, jamais é totalmente bom e santo; sempre há uma sombra de imperfeição ou malignidade que o acompanha. Por isso, todos devemos acolher esta condição humana. Ela não é um defeito de criação. Mas exatamente, expressão de nossa finitude e de condição existencial. Estamos sempre nos construindo, tendo por opção básica ou a bondade e a inclusão do outro ou da malignidade e a exclusão. Não se trata de uma visão reducionista, de preto ou branco, mas de gradação de ambos, privilegiando um deles sem poder eliminar totalmente o outro.
Há muitas variantes para esta realidade complexa que marca irremediavelmente o ser humano. Sigmund Freud dirá que somos possuídos, ao mesmo tempo, pela pulsão de morte (thánatos) que responde por tudo o que é sombrio e maldoso em nós; ou a pulsão de vida que significa nosso lado luminoso e bom (éros). Ambos convivem e ele mesmo não saberia garantir quem será finalmente vitorioso, apenas reconhece que tensamente convivem. Edgar Morin prefere a expressão homo sapiens e homo demens. Somos portadores de inteligência e sensatez e ao mesmo tempo de excesso e de demência. Ainda outros, como Carl Gustav Jung, usam as expressões de dimensão de luz e de dimensão de sombra que nos habitam e com as quais temos que nos confrontar ao largo de toda nossa vida.
A opção de fundo que tomarmos, por uma ou por outra, marcará a qualidade ética de nossa vida, conscientes de que nunca será uma opção somente límpida, mas sempre acompanhada pela sombria, em permanente disputa pela hegemonia. Qual será a predominante?
Essa grelha teórica é importante para entendermos o que se está passando no Brasil e também em muitas as partes do mundo: há uma onda de ódio, de discriminações de toda ordem, de violência simbólica com palavras ofensivas que nossas crianças nem deveriam escutar, violência real com matança de estudantes nas escolas, ou de jovens negros e pobres de nossas periferias, de imigrantes de várias partes, fugindo da guerra e da fome. Há guerras em vários lugares com grande letalidade, dando origem, no caso da guerra Rússia-Ucrância, OTAN e EUA, de russofobia, sinofobia e, ao contrário, ódio ao Ocidente secularizado que perdeu referência ao transcendente e ao sagrado.
Pior, a disputa por um mundo unipolar (EUA) ou multipolar (Rússia, China, BRICS) pode levar a uma crescente escalada a ponto de se usarem armas que liquidarão com a própria humanidade, segundo a fórmula:1+1=0, vale dizer, uma superpotência nuclear destrói a outra e põe fim à espécie humana. E há suficiente loucos em ambos os lados que não temem recorrer a um expediente terminal, principalmente os supremacistas brancos e neocons norte-americanos, que ilusoriamente creem serem os portadores de “de um destino manifesto” e de serem o novo povo de Deus na Terra. Algo parecido, com semelhantes argumentos, ocorre também do lado russo.
Como vamos sobreviver a esta situação dramática, nunca antes acontecida, em nossa história global? É inegável que precisamos reinventar o ser humano, de uma renascença que tenha como opção de fundo valores não materiais como o amor, a solidariedade, a arte, a música e a espiritualidade etc. É nesse contexto que me veio à mente a lição de um sábio indígena Cherokee. Ei-la:
“Um jovem se acercou ao velho sábio do povo Cherokee e lhe disse: sofri uma injustiça de outro jovem e não saberia como retrucar. E o sábio ancião, pensou um pouco, e lhe disse: deixa-me contar-lhe uma história. Eu também tive ódio e desprezo por alguém que me fez grande injustiça. E o pior que essa pessoa sequer tinha remorsos pelo mal que me causou. Depois de várias injustiças sofridas cheguei a pensar que a vida foi injusta para comigo”.
“Porém, depois de muito refletir, me dei conta de que o ódio afetava a mim e não ao meu ofensor. Cheguei à conclusão de que odiar é como eu mesmo tomar o veneno imaginando que o outro iria morrer envenenado”.
“Agora vejo as coisas assim: dentro de mim existem dois lobos. Um muito bom, vive em harmonia com outros animais, não ofende ninguém nem é ofendido. Mas se precisa reagir o faz da maneira correta, sem se deixar tomar pela raiva e pelo ódio”.
“Há também outro lobo. Este vive irritado, briga com todo mundo e mesmo sem razão ofende os outros. A ira e o ódio são nele mais fortes que seu autocontrole. É uma fúria sem sentido porque não lhe produz nenhuma mudança. Continua mau”.
“Meu caro jovem, não é nada fácil conviver com estes dois lobos que estão dentro de você, porque ambos querem dominar o seu espírito e o seu coração. Assim ocorre com todo o ser humano”.
“O jovem, perplexo, perguntou ao sábio ancião: quem dos dois ganha nessa luta interior? O sábio ancião Cherokee, sorriu e disse: é aquele que você alimentar”.
Conclusão: a humanidade, você e cada um vão superar o mundo de ódio, de vingança e de guerra, se alimentarem o lobo da paz e da harmonia que está dentro de todos. Caso contrário…
Como diria Jesus de Nazaré: “Quem puder entender essa mensagem, entende-a e pratique-a”. Senão conhecereis a desolação da abominação.
*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de A busca da justa medida (Vozes).
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