Os paradoxos da globalização

Imagem: Antonio A Costa
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Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*

A globalização deslegitimou os direitos do homem, a democracia e, ao cabo, a própria ideia de uma mesma espécie

Em artigo postado no site A Terra é Redonda, examinei o principal paradoxo da globalização pelo viés econômico, a saber, a mirada otimista do economista Dani Rodrik acerca de uma possível restauração das economias de mercado, após o que ele chamou de “hiperglobalização” e o que chamei de “deslucratização” da economia: o decrescimento da dinâmica do atual modo de produção capitalista de perseguição ao lucro desmedido, ancorado nas ideias de alguns teóricos citados no artigo.

Neste sentido, sempre que precisar voltar à questão desta indispensável moderação dicotômica entre “os desejos ilimitados do ser humano x os recursos escassos do planeta”, no contexto da política, recorrerei a esses pensadores além de introduzir outros importantes como o principal teórico do decrescimento, Serge Latouche, e o principal nome da teoria crítica do valor-dissociação, Robert Kurz.

Este artigo está centrado na contemporânea contradição entre um regime político em franco declínio – a democracia liberal que deveria ter sido vencedor após a queda do último grande bastião dos regimes totalitários da história,[1] a URSS, e o avanço sistemático das forças de extrema direita nessas primeiras décadas do século XXI. Como efeito, o desmantelamento do bloco soviético, no final do século passado, deu a impressão de que finalmente a então guerra fria entre os países ocidentais comprometidos com o neoliberalismo haviam vencido o leste europeu e os países que seguiram a cartilha do Estado onipresente, no palco das ideias políticas. Hoje, em plena terceira década do século XXI, especialmente após a crise econômica/financeira dos subprimes americanos dos anos 2007/2008, a cantada vitória neoliberal parece ter sido precipitada. O que deu errado?

Vamos começar por um pensador, Michael Hudson, já citado no artigo anterior: economista e conselheiro de vários países e agências econômicas do mundo Michael Hudson. Em um artigo traduzido recentemente,[2] a vitória política da variante moderna do regime econômico baseado na dívida – o capital financeiro neoliberal centrado nos EUA – impôs ao mundo ocidental uma nova elite oligárquica de senhores da guerra que está a asfixiar a atual sociedade globalizada. Em outras palavras, estamos a cometer o mesmo erro de dois mil anos atrás, quando a Grécia primeiro, e depois Roma, sucumbiram justamente, ao que os gregos chamaram de philarguria, ou seja, o amor obsessivo pelo dinheiro, pela prata, o consumo exagerado proporcionado pela riqueza obtida através da dependência e subordinação dos mais fracos às dívidas contraídas.

Realmente, mesmo com a história a nos mostrar o desatino dessas duas grandes civilizações passadas que adotaram o modelo político de servidão por dívidas, estamos novamente encrencados por um sistema de crédito financeiro fictício e quase ilimitado que produz uma sociedade doente na sua forma fetichista de consumo até a exaustão. De fato, como Hudson disse, “O que distingue as economias ocidentais das sociedades anteriores do Oriente Médio e da maior parte da Ásia é a ausência de perdão da dívida para restaurar o equilíbrio de toda a economia. Todas as nações ocidentais herdaram de Roma a ‘santidade’ pró-credor dos princípios da dívida que priorizam as exigências dos credores e legitimam a transferência permanente, aos credores, das propriedades dos devedores inadimplentes”.[3]

O atual regime político ainda reinante da democracia representativa liberal na maioria dos países ocidentais, e em boa parte já dos países orientais, está a caducar justamente por não ter superado a austeridade doméstica em prol do imperialismo oligárquico das elites dominantes do mundo globalizado, salvo em breves períodos históricos, como o mais recente denominado “trinta anos gloriosos” do pós-guerra no século passado. Com a devida cautela que devemos ter ao comparar a antiguidade com o atual estágio civilizatório, é preciso concordar com Hudson quando ele reduz a globalização patrocinada pelos EUA a uma forma financeira do antigo modelo colonialista.

Se, como ele diz, “A oligarquia e a dívida são as características definidoras das economias ocidentais”,[4] é fácil constatar que o imperialismo estadunidense segue o mesmo roteiro das dinastias anteriores de gastos militares no exterior e na crescente dívida interna que desembocaram nas duas guerras mundiais do século XX.

Nessa toada, ainda que hoje esteja pacificado que Roma nunca foi uma democracia, e que Aristóteles tinha sérias desconfianças a respeito dessa forma de governo, por acreditar que ela sempre acabaria numa variante oligárquica, é impressionante a incapacidade do Ocidente em finalizar a retórica entre autocracia versus democracia, como parodoxo maior de uma civilização que não soube suplantar o período mercantil e sua forte expansão tempo-espaço além fronteiras, para um vida pautada pelo bem comum.

Ao contrário, saímos de um período histórico de inclemente polarização da distribuição de renda e riqueza com seu ápice na partilha da África, ainda no século XIX, para uma civilização de parasitas rentistas virtuais. A reprodução do dinheiro físico não é mais a base da ganância dos poderosos, nos moldes do que Marx chamou de uma “especulação assombrosa”, mas uma espécie de “planetarização” do dinheiro fictício que ninguém sabe como ele de fato se reproduz.[5]

Destarte, ao contrário do que publicamente o neoliberalismo clama, uma política universal de governos limitados a ações pontuais em que o mercado não possui interesse (ainda) na rotina diária dos cidadãos de segunda classe, mesmo na maioria dos países desenvolvidos, o que esta doutrina econômica, dominante, fez ao longo das últimas décadas, foi assumir o controle oligárquico dos governos mais importantes da terra, impondo não um governo fraco, mas um governo civil forte nos principais palcos de decisões globais que monopoliza o controle das riquezas mais prementes dos países que possuem o dissabor de possuí-las.[6] Donde constatamos que, contraditoriamente, o mundo multipolar cantado em verso e prosa pela técnica publicitária global tão enganosa, reduz-se a uma ordem unipolar, sob os auspícios da potência hegemônica contemporânea, os EUA, que transformou a globalização no capataz da ideologia totalitária.

Como diz SANTOS: “Como as técnicas hegemônicas atuais são, todas elas, filhas da ciência, e como sua utilização se dá ao serviço do mercado, esse amálgama produz um ideário da técnica e do mercado que é santificado pela ciência, considerada, ela própria, infalível. Essa, aliás, é uma das fontes do poder do pensamento único. Tudo o que é feito pelas mãos dos vetores fundamentais da globalização parte de ideias científicas, indispensáveis à produção, aliás acelerada, de novas realidades, de tal modo que as ações assim criadas se impõem como soluções únicas”.[7]

Esta ideologia totalitária subordinada ao mercado é reforçada por uma ciência cada vez mais redutora e reduzida do que existe de verdade no mundo. E continua SANTOS: “Em tais condições, instalam-se a competitividade, o salve-se-quem-puder, a volta ao canibalismo, a supressão da solidariedade, acumulando dificuldades para um convívio social saudável e para o exercício da democracia. Enquanto esta é reduzida a uma democracia de mercado e amesquinhada com eleitoralismo, isto é, consumo de eleições, as ‘pesquisas’ perfilam-se como um aferidor quantitativo da opinião, da qual acaba por ser uma das formadoras, levando tudo isso ao empobrecimento do debate de ideias e à própria morte da política”.[8]

Por consequência, o aviltamento da sociabilidade pela exacerbação do consumo, do egoísmo, dos narcisismos, do imediatismo e da ascensão frenética da ética pragmática do individualismo acarreta a difusão do pensamento e das práticas totalitárias. O que resta da ideologia democrática é apenas um eufemismo para uma oligarquia financeira que se tornou globalmente credora de quase todos os privilégios de monopólio mundo afora, que impõe um controle financeiro, econômico, político e, se for preciso, até militar, predatório externamente aos países menos desenvolvidos, mas também internamente aos segmentos de classes menos favorecidos, até a austeridade suicida.

Dito tudo isso, vamos buscar agora um enfoque mais crítico da globalização em si mesma. Para tal desidério, ninguém melhor, no nosso entendimento, do que Robert Kurz. Ele foi um pensador alemão que morreu prematuramente fruto de um erro médico, e que ficou conhecido no Brasil na década de 1990 com o livro O colapso da modernização.[9] Nele, diante da derrocada do bloco soviético, dois anos antes, Kurz vai na contramão do discurso triunfante da vitória final do modelo ocidental, portanto da democracia e do capitalismo, para dizer que o fim da URSS foi apenas uma etapa do colapso mundial da sociedade mercantil, na qual os países “socialistas” eram apenas um ramo menor. De fato, assumindo uma postura marxista da inevitável falência do “socialismo real”, Kurz denunciou que o fim da URSS não abriria um período de prosperidade global e de paz universal, ou mesmo um feliz “fim da história”, mas significaria a entrada em uma era mais conturbada do que antes: o colapso global do sistema capitalista.

Realmente, para Kurz, a diferença entre a economia planejada e a economia de mercado era apenas relativa, posto que a sua base comum, a saber, o “trabalho abstrato”, pesava muito mais. Assim, embora a URSS tenha conseguido, no período stalinista, reproduzir a acumulação extensiva do período inicial do capitalismo, ela se mostrou incapaz de passar para os estágios posteriores, já que a acumulação tinha agora de ser intensiva. Este problema se repetiu com os novos países independentes das décadas de 1950 e 1960.

Contrariando a crença então difundida de que bastava substituir um modelo econômico “errôneo” – o socialismo – por um modelo “justo” – a economia de mercado – para alcançar a mesma prosperidade em todos os espaços econômicos, Kurz afirmou que a economia de mercado não é extensível à vontade: ao contrário, ela se afigura como uma besta condenada a se autodevorar. Qualquer aumento de produtividade nos centros mais avançados invalida a produção de valor nos países que não conseguem manter o mesmo ritmo, portanto, nenhuma autarquia econômica é verdadeiramente possível. Nessa corrida, as economias do terceiro mundo entraram em colapso, seguidas pelas do Oriente “socialistas”, enquanto uma luta final passou a ocorrer entre os próprios países ocidentais.

Nesse sentido, Kurz descreveu em detalhes as aporias que solapavam as próprias bases das duas novas “locomotivas” da economia mundial durante as décadas de 1980 e 1990, Alemanha e Japão, que, juntas com o resto da Europa Ocidental e da América do Norte faziam parte da “tríade” capitalista. Não se tratava de falar de uma crise cíclica, mas do último salto de um modelo de produção baseado no trabalho abstrato; agora, um altíssimo nível de produtividade está cada vez mais em flagrante oposição à sua subordinação ao auto-movimento do dinheiro. O final do livro chega a ser apocalíptico, pois, para ele, uma parte cada vez maior da humanidade, especialmente nas periferias destruídas da América do Sul, África ou Oriente Médio, já não servem mais para serem exploradas, pois estão sendo desligadas de qualquer vínculo com a economia central e com a civilização. O que é impressionante é que a crise global da sociedade produtora de mercadorias das últimas décadas em grande parte confirmou as previsões de Kurz. Ele foi além.

Até sua morte, em 2012, Kurz foi muito prolífico na sua crítica ao capitalismo. Escreveu vários livros e artigos. Em um desses artigos, publicado pela Revista Krisis, em 1994, ele escreveu algumas teses sobre a crise do sistema de regulação da forma mercadoria para anunciar “O Fim da Política”.[10] Este longo artigo trata de duas coisas muito importantes: (1) a diferenciação que os conceitos básicos entre “economia” e “política” tomaram ao longo da história, até a atual modernidade. Enfatiza, sobremaneira, as mudanças nesses dois conceitos desde a sociedade pré-capitalista, até o que ele chamou de “universalidade abstrata nas sociedades modernas determinada pela forma mercadoria”; (2) A esquizofrenia estrutural pronunciada na modernidade baseada na produção de mercadorias, como a forma da totalidade (dinheiro e mercadoria) que aparece ao mesmo tempo como “esfera funcional” particular dessa economia.

Por conseguinte, Kurz vai dizer que a antiga sociedade pré-capitalista que era oriunda de uma estrutura religiosa profunda, e que comportava uma universalidade abstrata tendencialmente imediata, difusa e relaxada, numa totalidade pouco diferenciada do processo vital e social, cindiu-se com a transformação da sociedade moderna de constituição fetichista num sistema de esferas separadas, em que a mercadoria se torna a mediadora dela mesma. Com isso, institucionaliza-se a esquizofrenia estrutural na aparição de esferas separadas em pares antagônicos, a saber, “economia-política”, mas também “indivíduo-sociedade” e “público-privado”. Assim, o processo de metabolismo com a natureza antes característico das sociedades pré-capitalistas não é mais codificado por tradições do tipo religioso, mas pelo processo abstrato da forma mercadoria.

Todavia, como as mercadorias não podem ser “sujeitos” de si mesmas, surge a necessidade de uma regulamentação diferente e superior do que existia nas sociedades pré-capitalistas, a ser transferida para a esfera funcional separada da “política”. Daí o aparelho estatal assumir funções de regulação da produção totalizada de mercadorias. É esta esquizofrenia estrutural exponencialmente agravada pela sociedade fetichista da forma mercadoria que desemboca no seu próprio terreno de um sistema produtor de mercadorias ininterrupto e transforma o sujeito humano num duplo homo oeconomicus e homo politicus. Kurz também critica o que chamou de “netos da Teoria Crítica” e o “resto da esquerda”, por não conseguirem compreender que não basta alertar para o perigo que a democracia corre pelo risco de um novo fascismo ou de uma nova forma de “dominação total. É preciso ir além desse processo que permeou boa parte do século passado para perceber que a democracia hoje está ameaçada pelo acirramento da forma totalitária do mercado.

Como diz Kurz: “A “dominação total” foi um estágio preparatório da democracia e não o seu contrário, nem uma constelação histórica destinada a regressar. Não será a “política” a efetuar de novo um pretenso controle sobre a “economia” ou uma pretensa suspensão totalitária da circulação, mas, precisamente ao contrário, estamos perante o fim catastrófico da “política”. A perda progressiva da capacidade de regulação política indica a extinção da capacidade de reprodução econômica, social e dos “gêneros” do sistema produtor de mercadorias. No seu fim história não está a renovação da “dominação total”, como um retorno de uma forma passada da ascensão, mas antes a decomposição, após a barbárie secundária, da civilização baseada na dominação”.[11]

Seria bastante cômodo para este escriba se o texto fosse finalizado agora. Contudo, dez anos após a morte de Robert Kurz, o mundo já mudou demais, para melhor e para pior (na minha visão mais para pior, infelizmente). Nesse sentido, é verdade que o processo de contínuo crescimento inesgotável da economia mundial, estimulado pelas agências internacionais, acarreta um cenário de incertezas e medo. Portanto, penso ser importante também apontar caminhos alternativos para esse crescimento desmedido. É verdade que o Relatório Meadows já apontava, lá no começo da década de 1970, para o esgotamento dos recursos naturais pelo ritmo do atual sistema produtor de mercadorias, o qual mencionamos acima (XIV). É bem possível que já tenhamos, por assim dizer, “dobrado o cabo da boa esperança”, mas ainda não estamos no fim da história. Logo, também podemos nos apegar a um adágio mais salutar, a saber, “enquanto há vida, há esperança”.

Isto posto, minha derradeira intervenção neste artigo é para falar sobre o livro de Serge Latouche e a sua proposta de um “decrescimento sereno”. Logo na introdução do livro ele denuncia nosso atual estágio de alienação e egoísmo ao dizer: “Mas, com a nossa refeição desta noite garantida, não queremos escutar nada. Ocultamos, em particular, a questão de saber de onde viemos: de uma sociedade de crescimento – ou seja, de uma sociedade fagocitada por uma economia cuja única finalidade é o crescimento pelo crescimento”.[13]

O que Latouche quer dizer, deveras, com essas palavras, é que se faz necessário uma crítica contundente do modelo tecnoeconômico e científico do progresso humano desgovernado, para além de uma sociedade capitalista, que nos conduziu a um impasse, a saber, um crescimento infinito com um mundo finito. Em outras palavras, é preciso atinar para a capacidade limitada de regeneração da nossa biosfera, frente a um crescimento sistemático e irrestrito do capitalismo mundial, recentemente impulsionado pelo capital financeiro que praticamente eliminou as fronteiras entre os países.

Nesse ponto, para Latouche, a nossa sociedade da acumulação ilimitada está condenada ao crescimento, baseado na “publicidade, no crédito e na obsolescência acelerada e programada dos produtos” (p. 17). Assim, estima-se que a humanidade consome quase 30% acima da capacidade de regeneração da biosfera. Para contornar esta situação coloca-se, inclusive, a possibilidade do “controle massivo da população ou a redução, principalmente do terceiro mundo” (p. 31). Todavia, o problema não é o superpovoamento, mas saber dividir os recursos de maneira equitativa e ética. Latouche afirma que nos encontramos, hoje, na beira da catástrofe e que é preciso uma reação rápida e muito enérgica para mudar o rumo.

A teoria proposta por Latouche do “Decrescimento” é, fundamentalmente, um slogan político com implicações teóricas, que visa acabar com o “jargão politicamente correto dos drogados do produtivismo” (p. 4). É imperativo não confundir o decrescimento com um crescimento negativo. Com efeito, a diminuição do crescimento afunda as nossas sociedades na incerteza, desemprego, abandono de programa sociais, sanitários, educativos, culturais, entre outros. Portanto, entender este conceito é entender, também, que o decrescimento não pode ser reduzido apenas ao desenvolvimento sustentável. Ele surge para sair das confusões desse campo.

Decrescimento é, para Latouche, uma utopia concreta e uma proposta revolucionária para viver melhor. Longe de se esconder no irreal, o decrescimento tenta explorar as possibilidades objetivas de sua aplicação, como um projeto político. Nesse aspecto, o autor faz a sua maior contribuição: uma proposta concreta de como entrar num “círculo virtuoso” de decrescimento sereno, representado por oito mudanças interdependentes que se reforçam mutuamente: reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar, reciclar (p. 42).

São várias as etapas para alcançar esse objetivo. A primeira delas é inventar a democracia ecológica local, para contrapor à periferização, “pari passu” com a tentativa de recuperar a autonomia econômica local, o que implica em autossuficiência alimentar, econômica e financeira. Deve-se, ainda, promover iniciativas locais decrescentes, como já existem em várias coletividades locais em várias partes do mundo.

Segundo Latouche, medidas muitos simples podem dar início aos círculos virtuosos do decrescimento. Para tal objetivo é preciso incrementar várias atitudes como: introduzir uma pegada ecológica igual ou inferior a um planeta; acrescentar, nos custos de transporte, os danos gerados pela atividade; relocalizar as atividades produtivas; restabelecer a agricultura camponesa; converter os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e criação de emprego; incentivar a produção de bens relacionais, como a amizade; reduzir o desperdício de energia; taxar pesadamente as despesas com publicidade e decretar uma moratória sobre a inovação tecnocientífica, com o intuito de fazer um balanço e uma reorientação das pesquisas, em função de novas aspirações. Latouche destaca, especialmente, a redução quantitativa e a transformação qualitativa do trabalho, para devolver sentido ao tempo liberado e levar a uma “reapropriação” da existência.

Consequentemente, o decrescimento harmoniza-se na concepção de uma ecologia profunda, pois é a própria sobrevivência da humanidade que está em jogo. Logo, ele pode ser entendido como um humanismo que nos intima a recolocar a preocupação ecológica no meio da preocupação social, política, cultural e espiritual da vida humana. Nesse sentido, o decrescimento é uma das forças que mais tem avançado contra a moderna sociedade produtora de mercadorias nos últimos anos. Ele oferece uma alternativa radical de paradigma ao que está posto e que está a nos conduzir à situação de crise estrutural que a sociedade moderna atingiu.

Como diz Latouche: “A crítica da modernidade, por sua vez, não implica sua rejeição pura e simples, mas sim sua superação. É em nome mesmo do projeto iluminista de emancipação e da construção de uma sociedade autônoma que podemos denunciar sua falência na heteronomia hoje triunfante da ditadura dos mercados financeiros”.[14]

Sem dúvida, o atual impasse dessa situação merece respostas fortes e uma alteração de 180º na sociedade, retirando o foco do consumo de produtos e resgatando os bens essenciais para uma vida em comum. Certamente não é uma tarefa fácil. Porém, como Latouche diz, é a própria sobrevivência da humanidade que está em jogo. A “realização de uma sociedade do decrescimento passa necessariamente por um reencantamento do mundo” (p. 149). É primordial que esse processo de mudança se dê tanto no nível individual como coletivo, em nossa relação com o meio ambiente, com o planeta e com a vida. É preciso “remitologizar” a humanidade, no sentido de mitigar a banalização da vida proposta pelo consumo das coisas produzidas pelo sistema termoindustrial. A superabundância do mundo material e o ser humano “empanzinado” que Latouche se referiu, sequer atingiu a todos nós.

Pelo contrário. Como ele diz: “No fim, o círculo virtuoso se transforma num círculo infernal … A vida do trabalhador geralmente se reduz à vida de um ‘biodigestor’ que metaboliza o salário com as mercadorias e as mercadorias com o salário, transitando da fábrica para o hipermercado e do hipermercado para a fábrica”.[15]

Por tudo isso, concordamos com Latouche que esse paroxismo da sociedade, a globalização, essa forma totalitária de supremacia do mercado sobre as outras formas de vida da humanidade, deslegitimou os direitos do homem, a democracia e, ao cabo, a própria ideia de uma mesma espécie. Não é a primeira vez que o ser humano cria no seu imaginário a divisão dele em mais de um tipo de ser vivente. Talvez nem seja a última. No passado distante, até a pouco mais de um século, a escravidão legalizada distinguia os homens (e as mulheres) apenas pela cor da pele. Hoje, a escravidão ao mercado nos separa pela nossa capacidade de solvência. Amanhã poderemos ser apartados apenas por possuirmos corpos perfeitos, para que o “deus-mercado” possa efetuar transplantes de memórias legalmente.[16]

*André Márcio Neves Soares é doutorando em políticas sociais e cidadania na Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

 

Notas


[1] Na verdade houve até uma celebração dessa vitória através do livro do Politólogo Francis Fukuyama O fim da história e o último homem. Rocco, 1992.

[2] https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/a-nova-guerra-fria-e-o-fim-da-civilizacao-ocidental/;

[3] idem, pág. 5;

[4] ibidem, pág. 7;

[5] Basta ver as transações financeiras globais em moeda virtual que ultrapassam o valor do PIB mundial em torno de 10 vezes de tudo que é efetivamente produzido no planeta;

[6] Aos países periféricos não importa se são governos civis ou militares, desde que acoplados à doutrina neoliberal;

[7] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. 2ª. Rio de Janeiro. Record. 2000, pág. 53;

[8] Idem, pág. 54;

[9] KURZ, Robert. O Colapso da Modernização.

[10] https://www.marxists.org/portugues/kurz/1994/mes/90.pdf;

[11] Idem.

[12] Para quem tiver interesse, basta pesquisar na internet;

[13] Ob. cit., pág. 13;

[14] Idem, págs. 147/148;

[15] Idem, pág. 17;

[16] Para quem tiver interesse, a série “Altered Carbon” mostra isso claramente.

 

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